18 de Maio – Dia da Luta Antimanicomial : uma homenagem a Nise da Silveira

 

(17 de maio de 2011)

No Brasil, o dia 18 de maio é comemorado o dia da luta antimanicomial, um dia onde profissionais da área de saúde mental, estudantes, pacientes e familiares promovem  discussões e manifestações buscando promover  a valorização da vida, cidadania, dignidade e respeito aos portadores de transtornos mentais; e combater o modelo de internação psiquiátrica que promove a segregação e estigmatização dos pacientes, que ainda persiste em nosso país.

Frente a importância e a mobilização deste dia 18 de maio, eu acredito ser importante relembrar e prestar uma homenagem a uma importante personagem da luta pela vida e dignidade dos pacientes psiquiátricos que foi a  Dra.Nise da Silveira.clip_image001

Duas palavras nos ajudam a caracterizar seu trabalho  : Amor e Pioneirismo.  O amor foi a tônica de sua vida, facilmente percebido pela dedicação aos pacientes, que a levou a um pioneirismo sem precedentes em nosso país. Mais de 50 anos antes do “Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental” em 18 de maio de 1987 (marco da luta antimanicomial no Brasil), e cerca de 20 anos antes do inicio do trabalho de Franco Baságlia, a dra.Nise da Silveira iniciou seu caminho na luta pela dignidade e cidadania dos pacientes psiquiátricos.

 

uma lição de vida

Nise da Silveira nasceu em 15 de fevereiro de 1905, em Maceió, Alagoas. Seu pai, Faustino Magalhães Silveira, era professor e jornalista, sua infância foi marca pela presença de artistas e intelectuais em sua casa.

Aos 15 anos, em 1920,  Nise da Silveira ingressou na Faculdade de Medicina em Salvador, Segundo Motta(2005), ela era a única mulher numa turma de 157 homens além de ser a mais nova.

Após a morte do pai em 1927, Nise da Silveira mudou-se para o Rio de Janeiro, onde teve contato com pessoas importantes de nossa história, como Manuel Bandeira, e ingressou no partido comunista brasileiro.

Em 1933 iniciou sua carreira como psiquiatra no Hospital Pedro II. Em março de 1936, Nise da Silveira não era mais filiada ao partido comunista, mas, seu envolvimento com a ideologia socialista, presente em textos que se encontravam em seu quarto fez com que uma enfermeira do hospital a denunciasse.

Nise passou um ano e meio na prisão. Ficou presa com prisioneiras politicas como Olga Benário Prestes, Maria Werneck e Beatriz Bandeira. Apesar de não ter sido torturada, muitas de suas companheiras de prisão foram. Nise viveu o horror da prisão.

Em 1937, Nise foi libertada, temendo ser presa novamente, fugiu do Rio, passando pela Bahia, Pernambuco, Alagoas, e por fim Manaus, onde foi se encontrar com seu companheiro Mario Magalhães.

Somente em 1944, que Nise da Silveira pode voltar ao Rio e retomar o seu trabalho, “Nise foi readmitida no serviço público em abril de 1944 no Hospital Pedro II, do antigo Centro Psiquiátrico Nacional, no Engenho de Dentro”(MOTTA, 2005, p. 65)

Nesse período, além das experiências na prisão, outro fato marcou sua trajetória. Nise tomou conhecimento de um fato ocorrido após sua prisão.

Quando Nise trabalhava no Hospício Pedro II, na Praia Vermelha, ela recebia todas as manhãs uma paciente, chamada Luíza, que vinha lhe servir o café. Nise tinha muita dificuldade para entender o que era dito por aquela que a servia, devido ao quadro de esquizofrenia, caracterizado pela indiferença e embotamento afetivo, segundo os manuais da psiquiatria descritiva. Luíza ao saber da prisão da doutora para quem levava café todas as manhãs, deu uma surra na enfermeira que havia feito a denúncia contra Nise, demonstrando  sua capacidade de discernimento e manifestação de afeto, que contrariavam a nosologia  psiquiátrica tradicional. “Assim aprendi outra lição, que desmentia o que afirmavam os livros de psiquiatria
sobre os doentes mentais…os esquizofrênicos eram indiferentes e sem afeto…Eu não entendia nada do que ela falava, mas ela estava entendendo o que se passava” disse Nise sobre esse episódio (MOTTA, 2005, p.64)

Ao retomar seu trabalho, Nise descobriu que havia “novidades” no campo da psiquiatria. Motta nos relata que,

Em depoimento a este autor Nise conta que, durante seu afastamento do serviço público,

algumas coisas tinham se modificado e nesse meio tempo surgiu o que se dizia como a grande descoberta no tratamento para doenças mentais, o eletrochoque. Prontamente o doutor a quem eu acompanhava em visita ao hospital disse, com muita disposição, que iria me ensinar a grande novidade. Chamou um paciente e, dizendo que eu aprenderia com facilidade aquela  simples e revolucionária operação, acionou o aparelho. Eu não havia sido torturada nos meus tempos de cárcere, mas pude ouvir os gritos de sofrimento de vários companheiros. O médico chamou então outro paciente e disse para mim:
– Viu Nise como é fácil! É só apertar o botão.
Eu havia visto o sofrimento do paciente na primeira demonstração. Olhei para o psiquiatra e disse que não faria aquilo. Ele ainda tentou me convencer das maravilhas daquela engenhoca, mas firmemente eu recusei.
(Motta, 1995)
Nise chegou a fazer uso de um dos novos recursos da psiquiatria, quando aplicou um choque de insulina em uma  paciente e relata  que “a mulher não acordava. Aflita, apliquei-lhe soro glicosado na veia e nada da mulher acordar. Tentei de novo, até que consegui. Aí disse – Nunca mais.”(…) (MOTTA, 2005, p. 66-7)

Contraria as práticas que estavam se popularizando na psiquiatria, Nise da Silveira foi conversar com o diretor do hospital, Paulo Elejalde, que propôs  o Serviço de Terapêutica Ocupacional para Nise, Segundo ela,

“Aceitei a indicação do doutor Elejalde, mas antes que ele saísse, interrompendo no ar o seu movimento de meia volta, disse-lhe com o dedo em riste e um brilho maroto  nos  olhos:  –    Eu  irei  para o Setor de Terapêutica Ocupacional mas…ele vai mudar!” (Motta, 1995).

Sob a orientação de Nise, iniciaram as primeiras oficinas de bordado e costura. Em 1946, iniciaram as oficinas de pintura e desenho, e, já em 1947, ocorreu a primeira exposição dos artistas internos de Engenho de Dentro. A segunda exposição veio a ocorrer em 1949, com trabalhos slecionados por Leon Degand, diretor do Museu arte moderna de são paulo.clip_image002

No início dos anos 50, Nise da Silveira fundou o “Museu Imagens do Inconsciente” para poder reunir o trabalho dos pacientes e poder estuda-los.  Seu  trabalho e suas pesquisas a aproximam da obra de C.G.Jung, em especial do livro “Psicologia e Alquimia”, que fora publicado em 1943. Comparando as mandalas reproduzidas no livro  com as mandalas produzidas pelos pacientes. Nise da Silveira optou por enviar uma carta, em 1954, a Jung, com fotos das produções dos pacientes. Jung respondeu a carta, muito interessado e perguntava informações sobre os autores. Em 1956, Nise da Silveira buscou informações sobre a possibilidade de participar de cursos em Zurique, recebeu a seguinte mensagem:

Senhores, O professor C.G. Jung convida a doutora Nise da Silveira a fazer parte, no semestre de verão  de 1957, do Instituto C.G. Jung de Zurique. Os cursos, os seminários e o contato com meus colaboradores serão de grande importância para  a preparação da exposição de arte psicopatológica, que deverá ser organizada em ocasião do Congresso Internacional de psiquiatria que se realizará em Zurique no ano de 1957. Eu ficaria contente se através da visita da doutora Nise da Silveira, o contato entre os profissionais do Brasil e da Suíça pudesse se aprofundar. Certamente esse encontro será importante par ao futuro da psicologia e da psiquiatria. (em MELLO apud MOTTA  2005, p. 72).

Assim, Nise da Silveira iniciou seu percurso com pioneira da psicologia analítica no Brasil. A partir de seu grupo de estudo, a psicologia analítica começou a se desenvolver no Brasil.

Em 1968, Nise da Silveira publicou seu primeiro livro “Jung: vida e obra” um marco na história da psicologia analítica brasileira, sendo considerado até nossos dias uma das melhores introduções ao pensamento junguiano.

Motta nos conta que o cuidado de Nise da Silveira era tamanho com as atividades do museu imagens do inconsciente, que

Aos 70 anos, em 1975, Nise teve a  sua aposentadoria compulsória no serviço público. Apesar da  idade mantinha o espírito alerta de modo que, no dia seguinte, apareceu no Museu apresentando-se como a mais  nova estagiária. Receosa com as ameaças que o acervo do Museu vinha sofrendo, organizou a Sociedade de Amigos do Museu de Imagens do Inconsciente, que em sua primeira iniciativa apoiou o evento do centenário do nascimento de Jung, que foi amplamente comemorado no Rio de Janeiro, em São Paulo e em Belo Horizonte. O nome  de  Nise  da  Silveira  já  estava  consagrado como a principal divulgadora da psicologia analítica no Brasil (MOTTA, 2005, p. 74)

Nise da Silveria viria a produzir intensamente em suas ultima décadas. Publicando os livros :

Jung Vida e Obra – 1968

Terapêutica Ocupacional – Teoria e Prática, 1979

Os Cavalos de Octávio Ignácio (Organização), 1980 –

Coleção Museus Brasileiros Vol. 2 – Museu de Imagens do Inconsciente, 1980

Imagens do Inconsciente, 1981

Casa das Palmeiras: A emoção de lidar Coordenação e prefácio de uma experiência em psiquiatria, 1986.

A Farra do Boi, 1989

Artaud – a nostalgia do mais, 1989

Cartas a Spinoza, 1990

O Mundo das Imagens, 1992

Gatos: A Emoção de Lidar, 1998

Vários foram os prêmios e homenagens que Nise da Silveira recebeu ao longo de sua trajetória, Motta enumerou esse reconhecimento,

Em 1971 recebe o troféu Golfinho de Ouro do Museu da Imagem e do Som do Estado da Guanabara.

Figura entre as 10 (dez) mulheres do ano em 1973,escolhidas pelo Conselho Nacional de Mulheres do Brasil.

Recebe homenagem do Conselho Regional de Medicina como representante da área de psiquiatria em 19.12.74.

Recebe o Prêmio Personalidade Global Feminina correspondente ao ano de 1974, conferido pelo jornal O GLOBO e REDE GLOBO DE TELEVISÃO.

Em 1975 recebe a medalha do Estado da Guanabara, conferida pelo Governador Chagas Freitas, por serviços prestados à cidade-estado da Guanabara.

1981, Medalha de Mérito Oswaldo Cruz, na Categoria Ouro, concedida pelo Presidente da República João Batista de Figueiredo e Ministro da Saúde Waldir Mendes Arcoverde. Decreto de 14 de abril de 1981.

Comenda Desembargador Mário Guimarães, outorgada pela Assembléia Legislativa do Estado de Alagoas em 1983.

“Benemérito do Estado do Rio de Janeiro”, título concedido pela Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro – 1984.

Ordem do Mérito dos Palmares no grau de Comendador, outorgado pelo Governador do Estado de Alagoas, Grão-Mestre daquela Ordem. – 1985.

Comenda Desembargador Mário Guimarães, concedida pela Câmara Municipal de Maceió – 1987.

Condecorada com a Ordem do Rio Branco no Grau de Oficial, pelo Ministério das Relações Exteriores, em 13 de maio de 1987.139

Homenagem especial da Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, em comemoração ao Dia do Médico – 16 de outubro de 1987

Título de Professor “Honoris Causa”, da Escola de Ciências Médicas de Alagoas – 4 de março de 1988

Título de Professor “Honoris Causa” pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) em abril de 1988.

Medalha do Mérito da Fundação Joaquim Nabuco de Recife (PE) em 1989.

Sócia Honorária da Sociedade de Medicina de Alagoas, em 1989

Medalha Peregrino Júnior da União Brasileira de Escritores em 1992.

Prêmio Personalidade do Ano de 1992, da Associação Brasileira de Críticos de Arte.

Medalha Chico Mendes outorgada pelo grupo Tortura Nunca Mais, em 1993.

Ordem Nacional do Mérito Educativo no grau de Comendador, pelo Ministério da Educação e do Desporto da Presidência da República em 1993.

Prêmio Hors Concours (gênero ensaio) do Concurso Prêmio Alejandro José Cabassa da União Brasileira de Escritores, em 1994.

Prêmio Carmem da Silva – Colóquio das Mulheres Fluminenses, 1995.

Homenagem do Centro Mario Schenberg de Documentação da Pesquisa em Artes – USP – 1996

Associação Médica do Rio de Janeiro – Dia Internacional da Mulher – 1997

Homenagem da Associação Médica de Alagoas – 1997

Homenagem no II Encontro Nacional de Serviço Social e Seguridade. – Porto Alegre, 2000 (MOTTA, 2005, 138-9)

NIse da Silveira faleceu em 30 de outubro de 1999, aos 94 anos.

Sua trajetória foi realmente um exemplo vivo de amor pela vida e respeito pela diferença. Nise compreendeu que os pacientes psiquiátricos eram indivíduos que mereciam respeito e amor. A partir de suas experiências na prisão ela pode sentir na própria pele o que os pacientes sentiam em sua realidade. Nise da Silveira foi uma das primeiras vozes no Brasil a se levantar contra  o Eletrochoque, Lobotomia e choque insulínico e propor uma alternativa que valorizava a vida dos pacientes.

Em 1956, Dra. Nise da Silveira funda a Casa das Palmeiras, uma instituição pioneira,  aberta, voltada para oferecer um espaço humanizado onde os clientes podem realizar espontamente trabalhos expressivos, de forma a facilitar sua relação com os vários aspectos de sua vida.

Nise da Silveira é um exemplo de vida e de luta. Sua militância no campo da saúde mental é um legado que não podemos esquecer.

Sites importantes para serem visitados:

http://casadaspalmeiras.blogspot.com/  –

http://www.museuimagensdoinconsciente.org.br/

Referências bibliográficas:

MOTTA, Arnaldo Alves Psicologia Analítica no Brasil; contribuições para a sua história, São Paulo: PUC, Tese de mestrado, 2005.

(As informações de Nise da Silveria e outros pioneiros da psicologia analíltica podem ser encontrados no livro “As raízes da Psicoogia analítica noBrasi” de Arnaldo Motta. Casa do Psicólogo, 2009).

——————————————————–

Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

www.psicologiaanalitica.com

mandala

Publicado em Aspectos Biográficos, textos temáticos | Com a tag , , | Deixe um comentário

Aspectos Gerais da Psicoterapia e Análise Junguiana – Parte II : A sombra do analista

(2 de Maio de 2011)

Há alguns meses venho gestando este post, pois, a formação de novos psicoterapeutas vem se tornando um tema que tem me feito pensar nos últimos tempos. Muitas vezes, ao falar da formação do psicoterapeuta ou analista, enfatizamos os aspectos necessários a prática e constituição da persona profissional. Contudo, muitas vezes não falamos acerca da sombra que pode envolver esse processo.

O tema da sombra do analista é uma constante em meus pensamentos deste que eu li o livro de Adolf Guggenbühl-Craig, analista junguiano e ex-presidente da IAAP, falecido em 2008, “O Abuso do Poder na Psicoterapia…” no qual o autor discute acerca a sombra dos profissionais que trabalham com “ajuda”.

Não pretendo fazer uma resenha do livro, apenas ressaltar alguns aspectos que me chamam atenção, mas, que certamente servem para indicar a leitura desse importante livro.

Guggenbhül-Craig traça alguns paralelos entre as profissões que visam “ajudar” os indivíduos. Devemos considerar que o oficio ou exercício dessas “profissões de ajuda” emergem de um mesmo solo arquetípico. Para traçar alguns aspectos da sombra do analista, ele, faz um paralelo do analista com o sacerdote, ele afirma que

A sombra do analista se amplia ainda mais devido ao denominador comum existente entre seu oficio e o do sacerdote. Nós analistas, qualquer seja nossa orientação, não defendemos uma fé específica ou uma religião organizada; mas, como o sacerdote, quase sempre recomendamos uma atitude básica frente a vida. Não representamos uma filosofia, mas uma psicologia que abraçamos por convicção, visto que tanto em nossa vida como em nossa própria análise tivemos experiências que nos persuadiram e nos formaram em termos dessa psicologia. O analista junguiano, por exemplo, é alguém que viveu um profundo abalo produzido pela confrontação com o irracional e o inconsciente. Entretanto, poucos insights psicológicos podem ser estatisticamente provados no sentido empírico, só podendo ser confirmados pelo testemunho honesto e sincero dos que se empenham na mesma busca. (…) Sob este aspecto, encontramo-nos em posição similar à do sacerdote. Mas essa extremada confiança na própria experiência pessoal ou alheia, inevitavelmente dá margem a sérias dúvidas. (…) Será que somos capazes de admitir essas dúvidas para nós mesmos e para o resto do mundo? Ou será que nós psicoterapeutas fazemos com nossas próprias dúvidas e medos o que faz o sacerdote, suprimindo-os e pondo uma pedra em cima?

Da mesma forma que o sacerdote, trabalhamos com nossa alma, nosso ser; os métodos, as técnicas e o aparato utilizado são secundários. Nós, nossa honestidade e autenticidade, nosso contato pessoal com o inconsciente e o irracional – são esses nossos instrumentos. É grande a pressão que sofremos para apresentá-los melhores do que são; mas nesse caso, tornamo-nos vitima da sombra do psicoterapeuta(p. 37-38)

O texto de Guggenbuhl-Craig toca num aspecto delicado, que é a perspectiva epistemológica, pois, muitos críticos do pensamento junguiano ou mesmo das práticas analíticas em geral, criticam o fato de a análise não pode ser considerada científica. Não perderei tempo entrando em discussões epistemológicas, afinal, todo e qualquer pessoa que já se submeteu ao processo psicoterapêutico ou mesmo exerce a psicoterapia, tem clareza que há mais envolvido no processo do que puramente o uso de “técnica” científica. A prática da psicoterapia exige muito mais que um conhecimento técnico exige a pessoa do analista por inteiro. Assim como na antiga alquimia, os alquimistas já declaravam que “ars totum requirit hominem” a arte exige o homem inteiro, a psicoterapia faz a mesma exigência.

Os conceitos acerca do inconsciente se baseiam no princípio da experiência imediata com os fenômenos inconscientes, isto é, na descrição metodológica e sistemática dos fenômenos inconscientes. A esse respeito, Jung, em 1938, na conferência acerca da vida simbólica ele afirma “Nossa ciência é fenomenologia. No século XIX a ciência trabalhava na ilusão de que ela podia estabelecer uma verdade. Nenhuma ciência pode estabelecer uma verdade.” (JUNG, 2000, p.) No máximo podemos fazer aproximações ao fenômeno, através de descrições o mais honestas possíveis. Neste ponto, temos o elemento fundamental que une a construção teórica e a prática clínica : honestidade.

A honestidade é fundamental no processo psicoterapêutico. Entretanto, devemos ter clareza que a honestidade, que fundamenta a ética profissional, começa na pessoa do analista ou psicoterapeuta, isto é, a honestidade começa na relação pessoal do analista/terapeuta com ele mesmo. Assim, é fundamental que o analista seja capaz de suportar suas próprias contradições, tensões internas, dúvidas de forma sincera e consciente, pois, se o analista não suportar em si a tensão dos opostos que nos constituem, como ele poderá auxiliar o cliente nessa empreitada?

De forma geral, os psicólogos são exigidos socialmente a uma persona de compreensão, clareza, solicitude, bondade. Sendo exigido, na maioria das vezes, “ser” ou tentar “ser melhor do que se é” ou “se apresentar de modo diferente do que se é”. O que se configura uma enorme armadilha.

Como sempre repetia C.G.Jung, sempre que um conteúdo luminoso se instala na consciência, seu oposto se constela no inconsciente e procura atrapalhar a partir dessa posição estratégica. O médico se torna um charlatão exatamente por querer curar o maior número possível de pessoas; o sacerdote se torna um hipócrita por querer converter as pessoas à verdadeira fé; o psicoterapeuta se torna um charlatão e um falso profeta apesar de trabalhar dia e noite para ampliar sua consciência. (p. 42)

Pode até parecer pessimismo, contudo, o fundamental é compreender que este risco de ser “tomado pela sombra”, está relacionado idealização ou inflação da persona de analista. Isso não significa que o analista não deva buscar seu desenvolvimento, muito pelo contrario. Mas, o desenvolvimento do analista passa necessariamente pelo reconhecimento de suas imperfeições. Conhecer a si mesmo, crescer internamente, significa, sobretudo, viver a própria vida em toda sua extensão.

Pode até parecer bobo ou óbvio, contudo, um fato que se torna um grande peso para os que optam pelo caminho da clínica psicológica é a solidão ou o isolamento. As exigências da vida profissional, podem, pouco a pouco, limitar a vida do profissional e deixa-lo cada vez mais submerso na em sua inconsciência de sua persona profissional.

Talvez o analista se absorva por completo no trabalho com seus pacientes, o que à primeira vista parece ótimo. Sua própria vida privada fica em segundo plano diante dos problemas e dificuldades das pessoas com quem trabalha. Mas isso pode levar a um ponto em que os pacientes, por assim dizer, passam de fato a viver pelo analista, o qual espera que estes preencham o vazio criado por sua perda de contato com o calor e dinamismo da vida. O analista já não tem seus próprios amigos; as amizades e inimizades dos pacientes são como que também suas. Sua vida sexual pode ficar raquítica, encontrando substituto nos problemas sexuais dos pacientes. Tendo escolhido uma profissão tão exigente, vê-se impedido de atingir uma posição política influente; sua energia é investida toda nas lutas politicas pelo poder de um paciente político. Desse modo, pouco a pouco deixa de viver uma vida própria, passando a contentar-se com a de seus pacientes. (p. 64-65)

Os exemplos do “deixar a própria vida” podem se multiplicar, como ignorar os rumos do próprio relacionamento, negligenciar sua própria realidade espiritual, evitar ambientes que possam “encontrar” pacientes dentre outros,a falta da vida real do analista vai gerar a necessidade de compensação no inconsciente, essa compensação é justamente por meio dessa contratransferência, onde, o analista passa a viver a vida dos pacientes. Imerso numa sombra nutrida por sua inconsciência acerca de sua própria persona de analista.

Antes de mais nada, esse tipo de situação é extremamente perigoso para o próprio analista. Seu desenvolvimento psíquico estanca. Mesmo em sua vida não-profissional, ele só poderá falar de seus pacientes e dos problemas que o afligem. Já não será capaz de amar e odiar, de investir a si próprio na vida, de lutar, ganhar ou perder. Sua própria vida afetiva torna-se um substituto. Agindo assim como um charlatão que sobrevive às custas de sues pacientes, o analista pode dar a impressão momentânea de estar florescendo psiquicamente. Mas, na verdade, estar perdendo a vitalidade e a originalidade criativa. (p. 65).

O esvaziamento da própria vida faz com que o profissional se esconda atrás da teoria. Racionalizando e teorizando a própria existência. De qualquer modo, se torna prejudicial ao cliente na medida que, inconscientemente, precisa dele, tornando-se incapaz de investir verdadeiramente no desenvolvimento do paciente. Sua ajuda será sempre insuficiente na medida em que não conseguir integralmente conceber o processo de desenvolvimento do cliente. Simplesmente, porque ele precisa do paciente. Nesse processo, consciente ou inconscientemente, pode reter o paciente em terapia por uma necessidade pessoal – que não podemos reduzir a necessidade financeira.

Nesse caso, o analista identificado com sua persona, onde ele equivocadamente se coloca no papel de “agente da saúde” ou da “cura”, irradiando uma “autoridade” e perfeição, que só pode ressaltar no paciente os aspectos mais frágeis de dependentes da personalidade do mesmo.

Mas, isso seria uma condenação? O exercício da psicoterapia seria destinado a essa experiência? Não. Em primeiro lugar, é importante frisar que o que foi dito aqui, não é uma regra, apenas, uma possibilidade que pode se colocar no caminho do psicoterapeuta. Devemos ter clareza que na posição de psicoterapeutas, somos nosso próprio instrumento. A totalidade de nosso ser é nosso instrumento.

Em muitos casos, o analista ainda é capaz de apreciar e sofrer devido ao dinamismo de sua própria vida chega a sentir a consciência pesada, achando que deveria interessar-se mais por seus pacientes. Mas, na verdade, a longo prazo, somente o analista apaixonadamente envolvido em sua própria vida poderá ajudar seus pacientes a encontrarem seu caminho. Nesse sentido é bastante verdade, como diz Jung, que o analista só pode dar a seus pacientes aquilo que possui. (p. 66)

Seria importante que cada estudante que se proponha ser “analista”, “psicoterapeuta” ou “psicólogo clínico”, compreenda que no processo de formação o estudo sistemático e a psicoterapia/analise individual, não pode estar dissociado com o dia a dia, com a vida vivida. Não se deve ver a análise ou o estudo como “burocracias” necessárias, mas, como elementos importantes para o desenvolvimento individual. Pois, como dizia Jung,”somente o que realmente somos tem o poder de curar-nos”, ao que eu acrescentaria, e de nos ajudar no processo de cura nossos clientes.

Referências bibliográficas

Guggenbuhl-CRAIG, Adolf. O abuso do poder na psicoterapia e na medicina, serviço social, Sacerdócio e Magistério. RJ, Achiamé, 1978.

JUNG, C.G. Vida Simbólica, Vozes, Petrópolis, 2000.

 

——————————————————–

Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

www.psicologiaanalitica.com

mandala

Publicado em Clinica Junguiana, textos temáticos | Com a tag , , , , | Deixe um comentário

O Canto do Cisne: um breve comentário a comentários acerca do filme “Cisne Negro”

25 de março de 2011

Agradeço a colaboração de Kelly Guimarães Tristão (psicóloga, Mestranda em Psicologia/UFES, Especialista em “Teoria e Prática Junguiana” e em “Psicologia Clínica e da Família) que com seu conhecimento e experiência no campo da saúde mental contribuiu bastante para a elaboração das idéias deste post.

Após muitos contratempos, finalmente, consegui assistir ao filme “Cisne Negro”. Realmente, a atuação de Natalie Portman é brilhante. Sobre o filme, eu posso dizer apenas que é um filme mediano e, se não fosse a maravilhosa atuação de Natalie Portman, seria fadado ao esquecimento. Antes mesmo de ver o filme, eu cheguei a ler vários comentários acerca do filme abordando o mesmo pelos mais diferentes ângulos, muitos eram pautados na teoria junguiana. Confesso que alguns comentários me causaram profunda estranheza, pois focalizavam aspectos simbólicos que, de certa forma, distorcia o que era expresso no filme, chegando a comparar o processo psicótico apresentado no filme com o processo de individuação. Assim, o objetivo desse post é uma reflexão indireta e teórica do filme a partir de outros comentários.

Algumas pessoas podem objetar dizendo que um filme é um conteúdo simbólico, que pode ser abordado por diferentes ângulos e pontos de vista, tal qual um sonho. Por mais que eu concorde que não devamos ser radicais, eu prefiro a cautela, e me manter ao que é apresentado pelo filme, e não ao que “poderia ser” se observarmos os símbolos isoladamente, pois é como Jung afirma acerca dos sonhos,

“a imagem manifesta do sonho é o próprio sonho e contém o sonho por inteiro. Quando encontro açúcar na urina, é açúcar mesmo, e não uma “fachada” , um disfarce para albumina.(…) Sendo assim, não temos de interpretar o que poderia existir por trás, apenas temos que aprender a lê-lo primeiro. (JUNG, 1999, p. 20)

Assim vou me deter em apenas dois pontos: a questão psicose de Nina e a função da dança.

A Psicose de Nina

O filme retrata o processo de abertura do surto psicótico de Nina, quando esta é confrontada com uma realidade que excede seus limites, que é ser a protagonista do “Lago dos Cisnes”, interpretando tanto o Cisne Branco quanto o Cisne Negro. Contudo, devemos notar alguns detalhes, prévios que somados ao delírio e as alucinações nos permitem pensar que Nina, seria uma personagem psicótica.

– Relação familiar: A relação de Nina e sua mãe  apresenta características típicas e favoráveis à psicose, uma relação simbiótica e extremamente rígida e ambivalente. Nos primeiros minutos do filme percebemos como a mãe de Nina, “domina” a vida da filha, inclusive  “vestindo” a filha como se fosse uma criança. Ao longo do filme, podemos ver como ela pode ser simultaneamente “cuidadosa” e cruel (com suas exigências e cobranças ).

– Antes da crise se manifestar explicitamente, o filme mostra que Nina era uma jovem de 28 anos que vive num mundo infantilizado (como podemos observar no seu quarto), por outro lado, podemos notar que não há uma clareza a respeito  da identidade sexual, não me pareceu que  Nina possua dúvidas acerca de sua sexualidade, mas, que não foi desenvolvido.

A crise se manifesta justamente quando ela está sob forte pressão, da mãe, do diretor, dela mesma.  Que é consoante ao que geralmente acontece em casos de esquizofrenia , onde o surto se manifesta num momento de forte tensão emocional, como rompimento de relacionamento, vestibular, casamento, nascimento de filho.

O processo de Nina é condizente com um quadro de esquizofrenia paranóide, com sintomas positivos de alucinação visual e cenestésica.

Mas, por que pensar no quadro psicopatológico de Nina? Justamente, porque não podemos falar de conceitos de psicologia analítica sem considerar “a quem” estamos relacionando esse conceito. Especialmente quando falamos de processo de individuação.

Particularmente, eu acho que há um pouco de confusão no diz respeito do processo de individuação e a psicose. Em primeiro lugar, eu compreendo que o processo de individuação comporta dois níveis de compreensão:

a) o primeiro é o basal e compreende a dinâmica do Self, que visa a integração e auto-regulação psíquica. Este aspecto corresponde a manutenção da vida psíquica. E ocorre independente dos processos da consciência, podendo ser observado claramente através na busca da integração e organização mesmo em pacientes psicóticos.

b)  O segundo é um processo que envolve diretamente o desenvolvimento da personalidade, que podemos compreender como alinhamento do eixo ego-Self.  Nesse âmbito, falamos que envolve o confronto com o inconsciente e o desenvolvimento do potencial individuo.

Fazendo essa diferenciação, podemos dizer que, no geral, quando nos referimos ao processo de individuação, especialmente na vida adulta, estamos falando do processo de desenvolvimento da personalidade, onde, o Ego é confrontado tanto com a realidade interior quanto exterior. O desenvolvimento se dá, justamente quando o Ego tem força suficiente para suportar a tensão entre os opostos (mundo interior x mundo exterior; inconsciente x consciência ) de modo a atingir um equilíbrio dinâmico entre essas instâncias. No caso do individuo psicótico, a fragilidade do Ego impede esse desenvolvimento ocorra, justamente, por não ser capaz de suportar essa tensão, que geralmente ocasiona a invasão de conteúdos do inconsciente e/ou a ruptura com a realidade exterior.

Von Franz no diz, no livro Psicoterapia, “[…] o ego é como o olho do Si-mesmo,somente ele é capaz de ver e vivenciar como o Si-mesmo nasceu” (FRANZ, 1999, p.232).

Assim, no processo de individuação o Ego é elemento fundamental.

No filme, podemos perceber os elementos que geralmente discutimos acerca da individuação, como a persona, sombra, animus. Obviamente eles estão presentes porque a Nina é humana. Contudo,devemos observar sua função. Por exemplo, podemos falar que o Cisne Branco, como uma persona de Nina, sim, poderia ser uma representação da persona, contudo, devemos notar que a persona possui o papel de intermediar as relações do individuo com o meio exterior, de modo que, simultaneamente, auxilia o Ego na adequação as demandas sociais e protege o Ego dessas exigências do meio, pois, as exigências não são feitas ao Ego, mas, ao papel que este representa. No caso da Nina, a persona não era  inadaptada, pois há uma identificação com o papel/função de bailarina, quanto essas exigências afetam diretamente o Ego, que fica profundamente abalado com “necessidade” ser a bailarina perfeita.

Outro aspecto, é a sombra. A sombra também comporta diferentes níveis de compreensão, podendo ser a “sombra do Ego”, isto é, vislumbrando os aspectos não desenvolvidos relacionados a identidade do Ego, pode ser a “sombra enquanto personificação do inconsciente”, e, comporta uma compreensão arquetípica, como personificação do Mal.

No caso da Nina, não consigo compreender uma sombra pessoal, derivada dos aspectos não desenvolvidos do Ego, visto que a identidade dela é comprometida pela relação simbiótica com a mãe. Devemos notar, também, que quando a personagem Lily se torna a “rival”, não há uma projeção da sombra, pelo contrário, há uma introjeção da imagem Lily, que passa ser ativa no delírio e nas alucinações de Nina, não como uma projeção mas, como uma personificação da sombra, pois Lily, somente é uma ameaça no delírio de Nina.

É importante termos em mente que o processo da função transcendente, isto é, da integração da consciência e do inconsciente por meio dos símbolos, depende do Ego como referência na consciência, para elaborar e assimilar os símbolos que emergiram do inconsciente.

A função da Dança

Alguém poderia perguntar “Porque ela não surtou antes”. Uma possível resposta é porque a dança contribuia para o manter estável a delicada relação de Nina com seu inconsciente e com o mundo exterior.

A dança fornecia a Nina uma relação concreta com corpo, que permitia uma sensação de continência e limite necessários para manter sua organização e aderência a realidade. Por outro lado, a dança possibilitava que os desejos da mãe fossem satisfeitos de forma a não se tornarem mais um peso sobre Nina.

Podemos compreender que a dança era um símbolo para Nina, que permitia a relação entre o inconsciente e a consciência, de modo a dissipar o excesso de energia que pudesse potencializar os conteúdos inconscientes. Isso quer dizer, que Nina podia dar forma e expressar a tensão interior através da dança.

De forma geral, todas as expressões artísticas tem a capacidade de viabilizar/intermediar a relação entre consciência e o inconsciente, de modo a propiciar um mínimo de organização.  O trabalho de Dra. Nise da Silveira é o melhor exemplo de como a arte pode ser estruturante e organizadora para pacientes psiquiátricos.

Concluindo…

A psicologia analítica compreende o homem como um ser em contínuo desenvolvimento. A dinâmica da psique visa sempre a manutenção da vida. Contudo, devemos ter clareza e cuidado para não nos deixarmos levar pelo “otimismo junguiano” e, aplicar os conceitos junguianos sem se adequar a realidade a qual se aplica.

No caso da psicose, como é apresentada no filme, é necessário ter um cuidado a mais, pois, o paciente psicótico não experimenta o inconsciente como uma realidade simbólica, mas, como uma realidade objetiva. Isso significa, que devemos ter atenção, cuidado e respeito com o paciente em sua própria realidade. Para muitos, o final do filme foi uma incógnita se “Nina morre ou não”. Para mim, Nina morre – não como uma morte simbólica – mas, uma morte real. Não há uma “transformação” do Ego.

Devemos ter em mente que o paciente psicótico por vivenciar a realidade interior de forma objetiva, não fazendo uma distinção da realidade exterior, não percebe as situações como metáforas, mas, como realidade concreta. Dessa forma, a transformação de Nina no cisne negro, denuncia isso, ela era o cisne negro, do mesmo modo que ela era o cisne branco.  A perfeição que ela almejava no cisne negro, se constituiu no delírio onde era se tornou o cisne. No caso do cisne branco, que morre no final, para ser perfeito, o mesmo deveria ocorrer.

A psicose muitas vezes se constitui como uma defesa de uma realidade exterior que é hostil, inviabilizando uma relação saudável para o ego, o que leva a uma interação (algumas vezes uma fusão) com o mundo interior. No caso de Nina, a identificação com o cisne, pode nos indicar um movimento em busca de liberdade. Não podemos esquecer que Odete, o cisne branco, também era um ser aprisionado. E, a morte era também uma libertação. Aqui se impõe uma diferenciação necessária:

A identificação de uma pessoa sadia ou mesmo neurótica se dá nos termos : eu sou como Odete

No caso do paciente psicótico a identificação se dá como : Eu sou Odete.

Por isso, por mais que possamos até compreender o delírio e alucinações como necessidade de liberdade e  respeito – especialmente no que diz respeito a relação materna, lembrando que a mãe é agredida no surto, como uma imposição forçada de espaço. Essa leitura simbólica tem sua validade quando feita respeitando a realidade do paciente psicótico, justamente para auxiliar no tratamento, oferecendo ao paciente as condições necessárias para lidar com sua realidade, e oferecer a família as orientações para garantir uma qualidade de vida ao paciente.

Referências bibliográficas

FRANZ, Marie-Louise von, Psicoterapia, São Paulo: Ed. Paulus , 1999.

JUNG, C.G., Ab-reação, análise de sonhos, transferência, Vozes: Petrópolis, 4 ed. 1999

——————————————————–

Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

www.psicologiaanalitica.com

mandala

Publicado em Clinica Junguiana, Filmes, resposta | Com a tag , , , | Deixe um comentário

Algumas Reflexões acerca da Morte e seu simbolismo

 

27 de fevereiro de 2011

A Morte é um dos maiores mistérios da vida. Justamente por ser mistério, ela é temida pela grande maioria das pessoas. A temática da morte está presente em todas as formações religiosas, devido a numinosidade que a envolve.

Para pensarmos na morte, devemos ter em vista que a mesma comporta vários níveis de interpretação/compreensão desde o mais básico, como o biológico quando um ser vivente atinge um nível de desorganização em que ocorre a cessação dos processos vitais, passando pela simbólica podendo ser sociocultural, envolvendo o processo morrer, até a morte no sentido mais metafísico que é a morte espiritual.

No que tange a nosso post, devemos focalizar o aspecto da morte que nos fala mais diretamente, que é Morte como um símbolo, que eclode do inconsciente, invadindo a consciência pessoal, quer por meio de sonhos ou por meio de sensações, que promove a sensação de finitude, pequenez, e impossibilidade. (Lembro que há alguns anos, num Ciclo de Debates em Psicologia Hospitalar na UFES, o prof. Dr. Fernando Pessoa, do dept. de Filosofia da UFES, fez uma palestra brilhante, que me marcou profundamente, onde ele discutiu sobre a morte como a “impossibilidade das possibilidades”).

Sob a ótica junguiana, compreendemos que todos nós trazemos em nós esse “principio de desagregação”, sob o conceito de arquétipo. É importante lembrarmos que para a psicologia analítica, os arquétipos são fruto da experiência humana ao longo da evolução, isto é, as experiências típicas/comuns humanas imprimiram na psique , ao longo das centenas de milhares de anos, um registro residual dessas experiências, de modo que forneceriam ao individuo padrões de organização psíquica necessários para sua vida psíquica/simbólica.

Há tantos arquétipos quantas situações típicas na vida. Intermináveis repetições imprimiram essas experiências na constituição psíquica, não sob a forma de imagens preenchidas de um conteúdo, mas precipuamente apenas formas sem conteúdo, representando a mera possibilidade de um determinado tipo de percepção e ação, Quando algo ocorre na vida que corresponde a um arquétipo, este é ativado e surge uma compulsão que se impõe a modo de uma reação instintiva contra toda a razão e vontade, (JUNG, 2000a, p. 58)

Assim, podemos falar da Morte sob um aspecto arquetípico, contudo, devemos tomar cuidado ao lidarmos com esse arquétipo, para não incorrer num reducionismo teórico. Pois, quando falamos de um “arquétipo da Morte”, estamos fazendo uma cisão numa dinâmica arquetípica muito maior, que é do arquétipo de vida/morte. A morte representa um pólo dessa dinâmica arquetípica. De outra forma, podemos dizer que a vida e a morte constituem as faces de uma mesma e única moeda, não podemos perder de vista que a morte é parte da vida. Não há vida sem morte, nem  morte sem vida. É justamente ao nos confrontarmos com o horizonte da morte, finitude e limitações,  que tomamos consciência de nossa vida.

Na minha experiência bastante longa fiz uma série de observações com pessoas cuja atividade psíquica inconsciente eu pude seguir até imediatamente antes da morte. Geralmente a aproximação do fim era indicada através daqueles símbolos que, na vida normal, denotavam mudanças no estado psicológico — símbolos de renascimento, tais como mudanças de localidade, viagens e semelhantes. Muitas vezes pude acompanhar até acima de um ano antes os indícios de aproximação da morte, inclusive naqueles casos em que a situação externa não permitia tais pensamentos. O processo tanatológico começara, portanto, muito antes da morte real. Aliás, observa-se isto, freqüentemente, também na mudança peculiar de caráter que precede de muito a morte. Globalmente falando, eu me espantava de ver o pouco caso que a psique inconsciente fazia da morte. Pareceria que a morte era alguma coisa relativamente sem importância, ou talvez nossa psique não se preocupasse com o que eventualmente acontecia ao indivíduo. Por isto parece que o inconsciente se interessa tanto mais com saber como se morre, ou seja, se a atitude da consciência está em conformidade ou não com o processo de morrer. Assim, uma vez tive de tratar de uma mulher de sessenta e dois anos, ainda vigorosa, e sofrivelmente inteligente. Não era, portanto, por falta de dotes que ela se mostrava incapaz de compreender os próprios sonhos. Infelizmente era por demais evidente que ela não queria entendê-los. Seus sonhos eram muito claros, mas também desagradáveis. Ela metera na própria cabeça que era uma mãe perfeita para os filhos, mas os filhos não partilhavam desta opinião, e os seus próprios sonhos revelavam uma convicção bastante contrária. Fui
obrigado a interromper o tratamento, depois de algumas semanas de esforços infrutíferos, por ter sido convocado para o serviço militar (era durante a guerra). Entrementes a paciente foi acometida de um mal incurável que, depois de ;alguns meses, levou-a a um estado agônico o qual, a cada momento, podia significar o fim. Na maior parte do tempo ela se achava mergulhada numa espécie de delírio ou sonambulismo, e nesta curiosa situação mental ela espontaneamente retomou o trabalho de análise antes interrompido. Voltou a falar de seus sonhos e confessava a si própria tudo o que me havia negado antes com toda a obstinação possível, e mais uma porção de outras coisas. O trabalho de auto-análise se prolongava por várias horas ao dia, durante seis semanas. No final deste período, ela havia-se acalmado, como uma paciente num tratamento normal, e então morreu. 
Desta e de numerosas outras experiências do mesmo gênero devo concluir que nossa alma não é indiferente, pelo menos ao morrer do indivíduo. A tendência compulsiva que os moribundos freqüentemente revelam de querer corrigir ainda tudo o que é errado, deve apontar na mesma direção.’(JUNG, 2000b, p.363-4) (grifo meu)

Para pensarmos acerca do simbolismo da morte, em seu caráter coletivo, isto é, arquetípico, devemos recorrer as formações/expressões  culturais que lidam com a morte através dos séculos. Talvez, seja importante esclarecer que o método junguiano de estudo do simbolismo é o método hermenêutico, ou seja, para se compreender um símbolo, devemos proceder como um tradutor procede para apreender o significado de uma palavra, que busca o termo em diferentes textos e contextos para assim compreender seus possíveis significados, assim também devemos buscar as ocorrências dos símbolos produções culturais através dos séculos, comparando sua ocorrência em diferentes culturas e tradições para assim, podermos nos aproximar da complexidade do símbolo.

Para compreendermos as relações com a morte é fundamental buscarmos as religiões/mitologias para compreendermos a Morte. isso por que, em primeiro lugar, as mitologias, segundo Campbell, começam a se desenvolver há cerca de 100 mil a.C, isto é, começamos a ter os primeiros indícios de um pensamento mítico, associados aos “enterros cerimoniais”. Esses enterros cerimoniais, indicam que já havia uma crença numa vida após a morte (ou vida após a vida). Isso é importante justamente, para compreendermos um ou “o” papel mais importante das religiões que é a preparação do individuo (e de seu grupo) para a morte e o morrer.

Na maior parte das religiões o “eterno retorno” é a marca crucial, isto é, a vida flui sempre e continuamente, sendo pontuada pela morte, que assinala a transformação da vida. Mesmo as religiões oriundas do judaísmo, que inaugura uma perspectiva linear da historia, onde há um inicio e um fim da “história humana”. Com o cristianismo, essa linearidade se expandiu assumindo uma “vida eterna” e o surgimento de um “novo ciclo” (os “novos céus e nova terra”).

No que diz respeito ao simbolismo da morte, devemos ressaltar, a Morte de Cristo é o ponto máximo da fé cristã, para não dizer que é o ponto fundante do cristianismo. Pois, foi a forma como Cristo morreu e a sua ressurreição que há a possibilidade de se considerar a vida eterna ou a vitória sobre a morte, esta ultima, se torna um ponto de transição, uma passagem pela qual o crente passa para se encontrar com Cristo.

Entre os Yorubas,na tradição do candomblé, a morte era a passagem para uma outra vida, onde poderia haver ou não retorno ao mundo dos vivos.

Entre os buddhistas tibetanos, a morte é um limiar, uma passagem, uma mudança, como um encerramento de um capitulo. No pós vida o espirito pode se iluminar ou retornar pelo renascimento.

Nos Ritos/mistérios de Elêusis, na Grécia, havia uma crença na vida suplantaria a morte. Sendo um rito vinculado a uma mitologia agrária, indicava que assim como o grão de trigo, caindo e sendo sepultado na terra daria origem a nova vida, do mesmo modo nós também viveremos após sermos sepultados na terra.

Uma outra tradição interessante a ser considerada é a do Tarot, que traz o arcano XIII, uma representação da morte. Apesar de poder significar morte física,  em geral, indica uma transformação ou mudança que pode` se apresentar como positiva ou negativa. Mas, em sua essência traz imagem da transformação.  

Quando vamos buscar em várias e diferentes tradições,  a morte indica uma passagem e transformação. É importante compreendermos que, quando uma pessoa produz um sonho, este, no geral, fala da realidade psíquica daquela pessoa. Assim, quando observamos um símbolo de morte ou ruptura num sonho, p. ex, temos que recorrer as associações do sonhador, pois, somente ele vai poder dar a direção, para compreender, se for o caso, o que precisa morrer ou abrir espaço para que algo novo se configure em sua vida? A chave está sempre com quem produziu o símbolo.

O fundamental é considerar que todos os símbolos são polissêmicos, dessa forma, não podemos considerar um sonho de morte, ou uma sensação de morte iminente num sintoma, como sendo uma morte física que se aproxima. O desespero muitos sentem frente a ideia da morte, ou frente aos símbolos da morte, indica que há muito que repensarmos em nossa própria vida. Pois, a forma como encaramos a morte é um reflexo de como vivemos nossa vida.

Transpondo para termos junguianos, esse desespero ou terror em se pensar na morte, nos permite vislumbrar que há algo de errado no  desenvolvimento do processo de individuação. Isso porque o “horizonte da morte” é um dos fatores que disparam o processso de individuação

Do meio da vida em diante, só aquele que se dispõe a morrer conserva a vitalidade, porque na hora secreta do meio-dia da vida inverte-se a parábola e nasce a morte. A segunda metade da vida não significa subida, expansão,  crescimento, exuberância, mas morte, porque o seu alvo é o seu término. A recusa em aceitar a plenitude da vida equivale a não aceitar o seu fim. Tanto uma coisa como a outra significam não querer viver. E não querer viver é sinônimo de não querer morrer. A ascensão e o declínio formam uma só curva. (JUNG, 2000b.p. 359-60 )

A metáfora que Jung utiliza, comparando a vida humana ao ciclo solar, é importante para compreendermos que ao meio dia da vida, o desenvolvimento se inverte, já não é exterior, mas, se inclina gradativamente ao desenvolvimento interior. Aceitar a possibilidade da morte, a finitude, as limitações da idade, propicia que que o individuo viva cada etapa de sua vida de forma plena.

Muitas vezes, quando os símbolos da morte se manifestam, podemos pensar, também, que há a necessidade de ir a adiante, uma nova etapa deve ser começada. Muitas vezes,esse movimento que busca a continuidade é sentida com muito sofrimento, como a perda ou ruptura, pois, o Self que “incita a este movimento para diante, e, se necessário, o realiza com força inexorável”.(NEUMANN, 2000, p.228)

Quanto maior a desconexão entre a consciência e o inconsciente, melhor representada pelo eixo ego-self, maior será a dificuldade do individuo perceber a dinâmica em seu inconsciente. E, os símbolos constelados tendem a não ser assimilados pela consciência, gerando assim, os sintomas e possíveis quadros neuróticos.

Assim, uma perspectiva para compreendermos a psicologia dos símbolos da morte é compreendermos que a morte é parte da vida e, desta forma, a os símbolos que envolvem a morte são, em ultima instância, símbolos da vida, ou de forma mais específica, da transitoriedade e/ou das transformações que são necessárias ou inerentes a vida. 

Referências bibliográficas

JUNG, C.G. Os arquétipos e o Inconsciente Coletivo, Petropolis: Vozes, 2000a.

______________. A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 5. Ed. 2000b.

CAMPBELL, Myths to Live By. Nova York: Penguin Books, 1993.

NEUMANN, E., O Medo do Feminino – E outros ensaios sobre a psicologia feminina, São Paulo: Paulus, 2000.

——————————————————–

Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

www.psicologiaanalitica.com

mandala

Publicado em Mitologia, religião e contos de fadas, textos temáticos | Com a tag , , , | Deixe um comentário

A Sombra Criativa: Algumas reflexões acerca do Trickster e o Carnaval.

 

16 de fevereiro de 2011

Na Grande Vitória, o amor pelo carnaval é tão grande não que um carnaval é pouco. Assim, o carnaval de Vitória começa uma semana antes, com os desfiles das escolas de samba, blocos e bailes.

O carnaval é uma das festas populares mais importantes em nosso país, mobilizando todos os setores de nossa sociedade. Sua importância é notada no famoso dito popular “O ano só começa depois do carnaval”.

Entretanto, muito tempo antes de nosso dito popular, o carnaval já era um marcador do tempo, pois, era uma festa que se colocava no limiar tempo profano, cujo encerramento era/é o inicio do tempo o inicio da quaresma.

O termo carnaval não possui uma origem específica.

De onde teria surgido a palavra Carnaval? Não há consenso entre os pesquisadores a respeito da real origem dessa palavra tão benquista por nós. Sou de opinião que a origem esteja na expressão italiana: carnevale, com o significado de :adeus carne, seja a carne como alimento, seja o prazer do amor carnal. O dicionário etimológico registra o seguinte:

Carnaval: período anual das festas profanas; os três dias imediatamente anteriores à quarta-feira de cinzas, dedicados a folias e folguedos.

Foi no século XI que a Igreja Católica implantou a Semana Santa, antecedida por um período de 40 dias de jejum e abstinência de carne.Os três dias imediatamente anteriores à quarta-feira de Cinzas passaram a ser dedicados ao que se chamou de carnevale, no italiano, depois carneval no francês, até 1652 e depois Carnaval. O carnaval tal como o conhecemos surgiu na França.

Há historiadores que defendem a ideia de que a palavra teria surgido da expressão currus navalis,ou seja, carro naval, com base nos cortejos marítimos ou carros alegóricos em forma de barcos que marcavam o início da estação da primavera, na Grécia e em Roma. (PERNANBUCO,2010)

Como podemos ver, a festa de carnaval, “o adeus a carne”, que antecedia o período de expiação e penitência, isto é, conscientização que antecede(ia) a Páscoa (que é um renascimento). Um período onde havia um mergulho nos prazeres “da carne” antes da purificação espiritual. Não demos deixar de notar que um todos termos aplicados ao carnaval é a folia, do francês folie, loucura, delírio ou êxtase.

Muitas vezes, focalizamos no carnaval apenas uma loucura sexual, contudo, esta é apenas uma parte do que esse fenômeno cultural nos constela, pois, o carnaval possui em sua essência a liberdade de ser e sonhar. Uma das formas de compreendermos, pela via junguiana, essa liberdade “irreverente” do carnaval é pensando na figura do Trickster, uma das personificações da Sombra Coletiva.

Trickster e o Carnaval

Em português,  Trickster poderia ser traduzido como “vigarista’, “embusteiro”, “enganador”.  Contudo, todas essas possibilidades de tradução são se aplicam bem a essa representação arquetípica, pois, o trickster é uma figura extremamente ambivalente, não podendo ser bem caracterizado nem como negativo nem como positivo. Ele transita entre o bem e o mal, entre o correto e o incorreto.

O “trickster” é um ser originário “cósmico”, de natureza divino-animal, por um lado, superior ao homem, graças à sua qualidade sobre-humana e, por outro, inferior a ele, devido à sua insensatez inconsciente.  (JUNG, 2000,p.259)

Na mitologia e nos contos de fadas, o trickster é representado como personagens peculiares, pois, se colocam a margem da história, independentes ou mesmo egoístas, que não preocupam com o herói ou com a nobreza de sua missão, eles quase sempre cobram um preço pela “ajuda”, que geralmente conduz o herói a caminhos sempre mais perigosos – e por, consequência, a um desenvolvimento muito maior.

Nos mitos o Trickster aparece de várias formas, na mitologia dos dos indios norte-americanos o trickster era comumente representado pelo Corvo ou Coióte. Na mitologia Grega, o representante do trickster, por excelência, é Hermes (o mercúrio dos romanos), frequentemente chamado de enganador, era o mensageiro dos deuses, o deus dos ladrões e do viajantes.

Na mitologia afro-brasileira do candomblé, o Trickster é representado por Exu é um dos orixás mais importantes, responsável pela comunicação entre os homens e orixás. Exu é exigente, quando tratado com respeito, ele pode ser benevolente e cuidadoso. Quando afrontado, é vingativo. Os cristãos associaram equivocadamente a Lucifer/diabo, contudo, era um grande equivoco, pois, Exu nunca foi um opositor dos homens, pelo contrario, sempre ajudou muito abrindo os caminhos e possibilitando a relação entre os dois mundos.

Para uma visualização mais próxima, no cinema, um dos melhores exemplos de trickster é o personagem Jack Sparrow, de piratas do Caribe, circula na zona limítrofe do certo e do errado, levando sempre seus companheiros a maiores perigos, fica entre o herói e o bandido.

Assim, o trickster possui um aspecto perigosamente atraente e sedutor, muitas vezes espirituoso, quase ingênuo ou bobo(como, em sua representação na forma de palhaço).  Entretanto, não se pode perder de vista que trickster, é uma personificação da Sombra Coletiva, que vai sempre indicar o caminho para a integração da sombra pessoal, ou, em outras palavras, o processo de individuação.

Não poderíamos esperar de forma alguma que tais conteúdos se solidificassem por própria conta, em uma figura mítica com um ciclo particular de lendas, a não ser que recebessem energia de fora; neste caso, diretamente da consciência mais elevada ou da fonte inconsciente que ainda não se tivesse esgotado. Se colocarmos esta questão, o que é possível e permitido, em paralelo com um caso individual correspondente, uma impressionante e paradoxal figura da sombra – posta em confronto com uma consciência pessoal – não comparece pelo fato de existir ainda, mas por repousar num dinamismo, cuja existência só pode ser explicada a partir da situação presente: por exemplo, porque ela é tão antipática à consciência do eu que deve ser recalcada no inconsciente. Tal explicação não serve totalmente para o nosso caso, na medida em que o “trickster” representa manifestamente um grau de consciência em vias de extinção, ao qual falta cada vez mais a força para configurar-se e evidenciar-se.Além disso, o recalque impediria sua extinção, uma vez que o conteúdo reprimido tem justamente as melhores condições de conservar-se, posto que no inconsciente, conforme mostra a experiência, nada é corrigido. Acrescenta-se ainda o fato de que na consciência índia a história do “trickster” não é incompatível, nem antipática, mas sim prazerosa, não convidando por isso à repressão. Parece, pelo contrário, que o mito estaria apoiado e cuidado pela consciência. E isto deve ser assim, uma vez que tal fato representa o melhor método e o mais bem-sucedido, de manter consciente a figura da sombra e assim expô-la à crítica da consciência. Apesar desta última não apresentar abertamente um caráter negativo, mas o de uma apreciação positiva, podemos esperar que, com o progressivo desenvolvimento da consciência, os aspectos mais rudes do mito diminuam pouco a pouco, ainda que não haja o perigo de um desaparecimento rápido do mesmo, como resultado da colisão com a civilização dos brancos. Vimos freqüentemente como certos costumes originariamente cruéis ou obscenos se volatilizaram no decorrer do tempo, tornando-se meros vestígios. 

Este processo de tornar os costumes inofensivos, como mostra a história do motivo, leva muito tempo, de tal forma que mesmo em níveis elevados de civilização ainda encontramos seus vestígios. Esta longevidade poderia ser explicada pela força e vitalidade do estado de consciência relatados no mito e ainda presentes, e que produzem uma participação e fascínio secretos da consciência. (JUNG, 2000,260-1)

O arquétipo da Sombra geralmente é associado com sua representação do  “opositor” ou do “mal”,( cuja, imagem mais conhecida seria o diabo). O que necessário compreendermos que é que os arquétipos constituem um sistema complexo que não podemos restringir a esta ou aquela imagem.

O Trickster é a manifestação da Sombra que entra um contato com a consciência, que convida a consciência ao confronto com o inconsciente. As “armadilhas” do trickster sempre se colocam como uma um desafio ao herói/consciência,que quando superado resulta num aprendizado, que contribui com o processo de individuação.

O carnaval é festa intimamente relacionada a este aspecto tricksteriano da Sombra, pois, comumente no carnaval há uma espirituosa e jocosa inversão de valores, os excessos e os prazeres sensuais, as brincadeiras com celebridades e políticos, estamos penetrando no reino da folie da Sombra. Esses aspectos são mais claramente percebidos nas fantasias muitas vezes expostas notravestismo(os famosos “blocos das piranhas”, muito comum em nosso carnaval, não deve ser compreendido como sendo apenas fantasias homossexuais, mas, também como uma abertura ao âmbito da Anima, muitas vezes, nos distanciamos em nossas vidas cotidianas. E, por isso é tão marcante e sempre presente. Obviamente, por ser marcado pelo Trickster, o carnaval é ambivalente, podendo ser uma armadilha para muitos. Como já dissemos acima, nos mitos, o Trickster frequentemente cobra por sua ajuda, assim, a liberdade do carnaval muitas vezes tem um preço.

Por outro lado, o carnaval possui um brilho de esperança. Quando vemos desfiles de escolas de Samba, vemos não só o brilho das fantasias, mas, o brilho nos olhos do membros das escolas. No carnaval, para as comunidades, o sonho encontra a realidade. E, os símbolos constelados pelo carnaval dão um sentido e significado na vida dessas pessoas que possibilita que elas vivam e sonhem por mais um ano, na espera de um novo carnaval.

Assim como o Trickster traz em si as ambivalências do divino e do animal, do herói e do vilão, o carnaval também oferece as mais diversas e belas possibilidades e riscos, nos colocando no limiar das escolhas – internas e externas; no pórtico da Sombra.

Muitas vezes associamos o conceito de Sombra somente a algo negativo ou nocivo, tanto por estar conceitualmente associado aos elementos que foram excluídos da identidade do Ego e da consciência, quanto por estar relacionado com a representação arquetípica do opositor/adversário, que identificamos como sendo o ‘diabo’ . Essa concepção é correta, porém, não corresponde  a toda complexidade do conceito da Sombra.

Se antes se admitia  que a sombra humana era a origem de todos os males, de agora em diante, mediante acurada observação, descobrir que o individuo inconsciente, ou seja, a sombra, não é constituída apenas  de tendências moralmente repreensíveis, mas apresenta um certo número de boas qualidades: instintos normais, reações adequadas, impulsos criadores, e outros.( JUNG, 1986, 254-5)

A figura do Trickster é uma representação transcendente da Sombra, que se comunica em diferentes níveis. Por mais ambíguo que seja, o trickster é sempre um aliado, um impulso a individuação. Seja nos mitos, nos sonhos,o  trickster sempre se manifesta como um convite a integração da Sombra, pois, ele é um símbolo unificador, a manifestação da tendência natural da sombra em se integrar a totalidade psíquica. Esse é o motivo pelo qual Jung afirma que o Trickster é tolerado e nutrido pela consciência coletiva. Sua numinosidade sempre aponta para um caminho de luz e trevas, um caminho criativo, um caminho do meio.

uma conclusão pessoal…

Em nossa cultura marcada pela tradição judaico-cristã,  muitas vezes perdemos com o aspecto criador da sombra e da figura trickster, justamente, por evita-los de forma quase que sistemática, e assim é mais provável que nos tornemos vulneráveis a Sombra.

Minha formação foi protestante e o carnaval sempre algo a ser evitado. Quando adulto, eu nunca vi sentido no Carnaval, em desfiles de escolas de samba, ou sambas enredos. Achava apenas uma bela manifestação cultural. Até no ano passado, surgiu a possibilidade (meio que a contragosto) de assistir no camarote o desfile do grupo especial das Escolas de Samba de Vitória. como acredito que as oportunidades devem sem aproveitadas e vividas… fui. Sei apenas que quando a bateria da primeira escola de samba passou em frente ao camarote, fiquei perplexo.

Pude sentir literalmente a vibração do carnaval. Escola após escola, pude sentir a numinosidade do carnaval. Pude olhar o carnaval por uma outra ótica, e me perceber com um outro olhar. Perceber  símbolos que me mobilizaram e ainda me mobilizam. Foi uma experiência transformadora. Mais do que nunca eu defendo as palavras de Jung,

Portanto, quem quiser conhe­cer a psique humana infelizmente pouco receberá da psicologia experimental. O melhor a fazer seria [pendurar no cabide as ciências exatas, despir-se da beca professoral, despedir-se do gabinete de estudos e caminhar pelo mundo com um coração de homem: no horror das prisões, nos asilos de alienados e hospitais, nas tabernas dos subúrbios, nos bordéis e casas de jogo, nos salões elegantes, na Bolsa de Valores, nos “meetings” socialistas, nas igrejas, nas seitas predicantes e extáticas, no amor e no ódio, em todas as formas de paixão vividas no pró­prio corpo, enfim, em todas essas experiências, ele encontraria uma carga mais rica de saber do que nos grossos compêndios.

Então, como verdadeiro conhecedor da alma humana, tomar-se-ia um médico apto para ajudar seus doentes. Poder-se-ia perdoar-lhe o pouco respeito pelas assim chamadas “pedras angulares” da psicologia experimental. Pois entre o que a ciência chama de “psicologia” e o que a práxis da vida diária espera da “psicologia” “há um abismo profundo”. (JUNG,2001, p.112-3 )

É importante frisar que “ser um conhecedor da alma humana”, implica no exercício contínuo de buscar conhecer a própria alma. E, é vivendo as experiências mais diversas que novas portas se abrem em nossas vidas e, assim, amadurecemos.

Termino este post, prestando meu respeito a todas as escolas de samba de da Grande Vitória! Desejo a todas um carnaval criativo, desejo que façam o melhor e mais belo carnaval de todos tempos. Para assim, tornar inesquecível do titulo deste carnaval, que espero seja da Unidos de Barreiros. 

Referencias bibliográficas

PERNAMBUCO, J. , O Carnaval e a Etimologia, em: Professor Juscelino<http://www.professorjuscelino.com.br/blog/?id=55&titulo=O-CARNAVAL-E-A-ETIMOLOGIA>. Publicado em 28/02/2010.  Acesso em: 12 Fevereiro de 2011.

JUNG, C.G. Aion – Estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo, Petropolis, RJ, 1986.

___________ Os arquétipos e o Inconsciente Coletivo, Petropolis: Vozes, 2000.

______________. Psicologia do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 13ed. 2001.

——————————————————–

Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

www.psicologiaanalitica.com

mandala

Publicado em Eventos, Teoria | Com a tag , , , | Deixe um comentário