Estados Limítrofes ou Borderline e a Psicologia Analítica

Na psicologia analítica não costumamos falar de estados ou casos limites, limítrofes ou borderline; contudo, esses são casos que cada vez mais se apresentam no cotidiano da prática clínica. São casos cuja complexidade podem gerar dificuldades até mesmo para os psicoterapeutas mais experientes, pois mesclam aspectos psicóticos e neuróticos, apresentando, com frequência, uma perda da autonomia do ego e um estado de indiferenciação ou fusão com objetos internos ou com objetos externos.

A complexidade de diagnóstico e o desafio do tratamento se acentuam por não termos ampla literatura junguiana que abordem esses casos. Apesar disso, os casos-limítrofes foram apontados na obra de Jung, não como “casos limítrofes” exatamente, mas sob a noção imprecisa de ‘psicose latente”.

Assim como as histerias crônicas, que fazem definhar os doentes lentamente nos hospícios não são características da histeria verdadeira, assim tampouco o é a esquizofrenia com relação às suas formas tão frequentemente vistas no consultório e que raramente chegam às mãos do psiquiatra de hospício. “Psicose latente” é um conceito que o psicoterapeuta conhece demasiadamente bem, e teme. (JUNG, 1999, p. 34 – nota 2)

Psicose latente era uma expressão vaga que abordava tanto casos neuróticos graves quanto eram similares à psicose ou esquizofrenia. Para entendermos a relação da psicose latente e os casos limites ou limítrofes, precisamos compreender a evolução histórica do conceito de borderline. DALGALARONDO E VILELA (1999) apresentam uma evolução do conceito de borderline (ou limítrofre), como podemos ver na tabela abaixo,  

Jung também menciona em sua obra a expressão “esquizofrenia latente” como era utilizada pelo seu antigo mentor, Eugen Bleuler. Os casos limítrofes são amplos e se restringem ao auto diagnóstico Transtorno de Personalidade Borderline”(TPB) do DSM, mas envolve um amplo espectro com formações que abarcam transtornos alimentares, neuroses obsessivo-compulsivas, adições, algumas somatizações e quadros traumáticos – o TPB seria caso mais acentuado onde as dinâmicas defensivas são predominantes. Nessas situações, o ego encontra-se fragilizado, incapaz de se manter organizado, reflexivo e funcional; e, assim, incapaz de suportar a tensão com o inconsciente ou mesmo com a realidade exterior.

Na literatura junguiana, temos essa perda de funcionalidade do ego fragilizado associada à possessão ou identificação por conteúdos do inconsciente.

Jung e a Possessão pelo Complexo/Arquétipo

Jung adotava uma metodologia mais descritiva do que propriamente psicodinâmica. Dessa forma, descrevia situações onde o caráter impulsivo e/ou compulsivo dos arquétipos e complexos, que geram estados indiferenciados, como possessão pelo complexo ou arquétipo.

Neste caso não se trata de ampliação nem de diminuição, mas de uma modificação estrutural da personalidade. Menciono como forma principal o fenômeno da possessão, o qual consiste no fato de um conteúdo, qualquer pensamento ou parte da personalidade, dominar o indivíduo, por algum motivo. Os conteúdos da possessão aparecem como convicções singulares, idiossincrasias, planos obstinados etc. Em geral, eles não são suscetíveis de correção. Temos de ser um amigo muito especial do possuído, disposto a arcar com as penosas consequências, se quisermos enfrentar uma tal situação. Recuso-me a traçar uma linha divisória absoluta entre possessão e paranoia. A possessão pode ser formulada como uma identificação da personalidade do eu com um complexo. (Jung, 2000,p 127)

Jung tinha uma capacidade ímpar de circunscrever processos complexos em imagens e noções “intuitivas”. A noção “possessão” descreve o aspecto fusionado eu-objeto, havendo a perda da capacidade reflexiva e julgamento acrescido com um comportamento impulsivo ou compulsivo. A possessão indica uma identidade com um objeto interno, quando a identidade ou fusão se dá com um objeto externo como um grupo social Jung falava “participação mística” ou identidade psíquica.

Para a compreender os aspectos psicodinâmicos dos estados de possessão e participação mística, podemos traçar um paralelo com o conceito de posição esquizoparanoide, apresentado por Klein, mas com importantes desenvolvimentos realizados por Wilfred Bion. Antes de falarmos desse conceito, precisamos contextualizá-lo a partir de Klein e Fordham.

Melaine Klein e Michael Fordham

A Posição esquizoparanoide e a posição depressiva foram duas das muitas contribuições originais de Melaine Klein à psicanálise e à percepção do desenvolvimento infantil. No campo junguiano é impossível mencionar Klein sem fazer uma referência direta ou indireta a Michael Fordham, um dos mais originais e brilhantes pensadores junguianos, cujo trabalho abriu o caminho para a análise junguiana de crianças e a perspectiva de desenvolvimento na psicologia junguiana.

Com o trabalho como psiquiatra infantil, Fordham se aproximou do pensamento kleiniano que começava a se desenvolver na Inglaterra. Astor aponta que

Seus empréstimos da psicanálise foram, inicialmente, o método de análise infantil de Klein (mas não sua teoria), que na década de 1930 foi revolucionário, particularmente em sua compreensão de que a brincadeira de uma criança era uma expressão da fantasia inconsciente da criança. Ela lhe deu coragem para falar diretamente com as crianças sobre seus sentimentos inconscientes. E ele reconheceu rapidamente que a fantasia inconsciente de Klein era equivalente às descrições de Jung sobre a experiência arquetípica. (ASTOR, 1995, p.4)

O trabalho de Fordham com crianças e a proximidade com a psicanálise teve (e tem) muita resistência no campo junguiano, Astor comenta que “Carl Meier, um ilustre aluno de Jung e professor de psicologia, referiu-se a Fordham como “carregando a sombra junguiana”, uma frase que dá significado arquetípico à resistência que Fordham encontrou.” (id. p.5). Apesar da resistência no campo junguiano, ele teve reconhecimento kleiniano como pode ser visto no Melaine Klein Trust

Fordham percebeu a correlação entre as concepções de Jung e as posições apresentadas por Klein, acerca da identidade primitiva, próprias a possessão e participação mística, ele apontou que

a identidade primitiva desempenhou um papel importante no pensamento dos psicólogos analíticos. Como uma hipótese que explica a participação mística, ela abriu um campo de estudo. Mas antes que Jung e a maioria de seus seguidores pudessem explorar suas possibilidades psicodinâmicas, Melanie Klein fez exatamente isso. Ela desenvolveu o conceito da posição esquizoparanoide. Essa posição foi associada, especialmente por Segal (1957), à não diferenciação entre sujeito e objeto (equações simbólicas), um evento que Klein também desenvolveu em seu artigo sobre identificação (1955). Nesse trabalho, ela diferenciou um tipo especial de identificação e deu a ele os nomes de identificação projetiva e introjetiva.

O outro conceito importante foi a posição depressiva. Se a posição esquizoparanoide elucida a identidade primitiva, o resultado da deintegração, a posição depressiva elucida a integração e a individuação. (FORDHAM, 1985, p54)

A participação mística ou identidade psíquica foram termos de Lévy-Brühl que Jung utilizou para descrever o estado indiferenciação entre o indivíduo e o objeto – mas, sem considerá-lo do ponto de vista do desenvolvimento. Esse estado de fusionamento/indiferenciação entre indivíduo e objeto, próprio ao desenvolvimento inicial do bebê, foi delineado, na perspectiva junguiana clássica, no final dos anos 40, com o trabalho de Erich Neumann, que descreveu como estágio urobórico.

Acredito ser importante tornar mais claro o termo “posição” utilizado por Melaine Klein, para podermos nos aproximar melhor dessa conceituação.

A noção kleiniana de posição designa um momento organizador decisivo nas produções, nos processos, nas relações de objeto, nas angústias e na mentalização, no decorrer da estruturação do psiquismo (1932, 1952). Esse momento não é uma etapa propriamente dita, um estágio ou uma fase na psicogênese, é uma configuração de base recorrente, ele se refere a uma situação que diz respeito à totalidade da vida psíquica. (KAES,   2016) 

A posição indica a organização psíquica num dado momento. Em Melaine Klein, a posição esquizoparanoide se refere aos processos iniciais da infância, no início da vida extrauterina com um ego incipiente não teria condições de lidar com a ansiedade e das relação com os objetos, o modo de relação se daria por meio das defesas primitivas divisão (bom-mau, satisfatório-insatisfatório) e projeção (identificação projetiva), assim como em uma relação de ameaçado – e ameaçador.

Fordham compreendeu que a posição esquizoparanoide se referiria ao momento em que a relação com o objeto transformacional seria mais intensa operando mudanças profundas no Self(somático-psíquico-ambiental), que corresponderia aos processos deintegrativos-reintegrativos, nos quais o Self expandiria como se “desdobrasse” atualizando-se na experiencia vivida, através das experiências com os objetos /ambiente/mãe/cuidadores. Nesse processo, a atividade do self (deintegração-reintegração) desenrola-se na identidade primeira, na díade mãe-bebê. As diferenciações estão associadas à experiência que pode ser positiva, satisfatória ou “boa” ou, por outro lado, negativa, insatisfatória ou “má”. A experiência qualifica os objetos como “bons ou maus”.

O processo de deintegração expande ou impele a atividade do Self em direção aos processos adaptação, que serão reintegrados como a experiência que fornecerá a base relacional para a formação do ego. O processo de individuação na infância tem como meta o desenvolvimento do ego maduro, com capacidade reflexiva e de distinção, similar posição depressiva. Por isso,

Estou predisposto a aceitar essas formulações porque elas correspondem à identidade primitiva (Ps) e a um primeiro passo na individuação (Dp). Essa proposição foi desenvolvida em meu livro The Self and Autism e, portanto, não vou me aprofundar nela. Nesse livro, não apresentei a fórmula de Bion, que está mais próxima dos estados mentais que podem ser descritos, mas também relativiza, expande e torna as concepções mais flexíveis. (Fordham, Explorations, p.59)

Fordham cita a fórmula de Bion” que compreende que as posições esquizoparanóide (Ps) e depressiva(Dp) como estados de organização psíquica que se sucedem ao longo vida e não apenas um estágio do desenvolvimento. Esses estados da mente que poderiam ser expressos na relação Ps <-> Dp, onde todos entramos e saímos de um ou outro.

A compreensão da posição esquizoparanoide nos auxilia a compreender o modo de funcionamento dos estados indiferenciados da possessão/participação mística e, assim, os processos indiferenciados dos casos-limítrofes.

A posição esquizoparanoide

A posição esquizoparanoide, no bebê, se refere a um estado de organização do self, onde não há sujeito ou ego reflexivo, não há distinção entre eu-outro, ação-pensamento. Ogden (2017) comenta que

Nesse estágio inicial do desenvolvimento, tais atividades defensivas são reações, em vez de respostas. A automaticidade biológica foi transformada em automaticidade psicológica. Apesar de Klein não se referir especificamente à questão da subjetividade, parece implícito em sua teoria e prática clínica que não há um intérprete mediador entre a percepção de perigo e a resposta na posição esquizoparanoide. O fato de esta ser uma psicologia sem um sujeito é o paradoxo básico da posição esquizoparanoide. (Ogden, 2017, p. 54)

Na ausência de um “Eu” ou ego, logo, de uma capacidade reflexiva, o self não é um sujeito da ação, da compreensão ou pensamento, mas é um self-objeto. No desenvolvimento infantil, a posição esquizoparanoide se refere a indistinção de sujeito-objeto, do tempo – não havendo uma perspectiva de temporalidade, estas são aquisições que ocorrem com a posição depressiva onde a historicidade e a subjetividade se desenvolvem. Essa a base para compreensão desse modo de organização primitiva que abarca os indivíduos de qualquer idade. Segundo Ogden,

a posição esquizoparanoide é um modo gerador de experiência impessoal e automático. Perigo e segurança são gerenciados através da descontinuação da experiência (por meio da clivagem) e da expulsão para dentro da outra pessoa de aspectos ameaçados e inaceitáveis do self (por meio da identificação projetiva). A posição esquizoparanoide envolve um estado não reflexivo do ser; os pensamentos e sentimentos do sujeito são eventos que meramente ocorrem. (p.78)

Essa posição envolve uma forma de geração e organização da experiência, onde essa é de natureza predominantemente impessoal e não reflexiva (isto é, a experiência do self que tem poucas características de “eu-dade”). Pensamentos e sentimentos não são criações pessoais; eles são eventos que acontecem. O sujeito não interpreta suas experiências; ele reage a elas com um alto grau de automaticidade. Os símbolos do sujeito não refletem uma disposição de significados pessoais a serem interpretados e compreendidos; os símbolos são o que eles significam. Este é o domínio das coisas-em-si-mesmas. (Ogden, 2017 p.73)

A posição esquizoparanoide é estado de organização psíquica primitiva, defensiva caracterizada pela descontinuidade (não há uma percepção histórica de causa-consequência), a fantasia/delírio (a experiência da realidade é moldada defensivamente), a divisão do objeto (em bom e mau), impulsividade e compulsividade. a posição esquizoparanoide é relacionada aos processos psicóticos, de fusão ou indiferenciação ego-objeto, e relação com a realidade exterior. Esse processo nos auxilia a entender a possessão, descrita por Jung, como um processo defensivo, que toma o ego sem dilacerá-lo no processo da esquizofrenia.

Com predominância dos processos defensivos primitivos, a dificuldade de manejo da transferência, as defesas psicóticas da personalidade que se manifestam nos processos limítrofes desafiam ao clínico.

Estados limites, Trauma e Psicologia Analítica

Os estados limites, limítrofes ou borderline indicam uma forma de organização psíquica própria, diferente dos desenvolvimento cujos processos podem conduzir a estados psicóticos ou a estados neuróticos. Schwartz-Salant comenta que “0 psicanalista francês André Green sugeriu que a categoria “limítrofe” deveria corresponder uma identidade própria (1977, p. 17) e que ela pode exigir um modelo que não seja baseado na psicose ou na neurose. Concordo inteiramente com este ponto de vista.” (SCHWARTZ-SALANT, 1992, p18)

Esse é um aspecto importante, pois no pensamento junguiano tradicional temos poucos recursos para pensar os estados limites. Isso porque o eixo fundamental do desenvolvimento psíquico, o processo de individuação, compreende os processos integradores do Self, a compensação do inconsciente visando o equilíbrio da relação com a consciência.

A neurose surge a partir de um conflito entre a tendência natural à individuação e as condições e escolhas conscientes, sendo uma tentativa da psique se autorregular. Por outro lado, a psicose indica a incapacidade do ego em suportar a tensão e mediar a relação entre o inconsciente-consciência-realidade exterior sendo tomado pelas imagens e manifestações mitopoéticas da psique,e no caso mais específico, a esquizofrenia, o ego se fragmenta. Em todo caso, a compreensão tradicional junguiana tomando o processo de individuação como modelo de saúde psíquica, oscila entre a catástrofe psíquica (psicose/esquizofrenia) ou a tentativa de reparação psíquica (neurose).

A possibilidade de compreensão dos casos-limites no campo junguiano foi construída lentamente através da obra de autores como Fordham, Jacobi, Schwartz-Salant, Knox, Wilkinson (dentre outros), mas ganhou nitidez através do trabalho de Donald Kalsched, ao delinear as defesas arquetípicas(ou do Self) diante dos processos de traumatização na infância, nomeado como trauma precoce, Marcus West é um autor que consolidou a compreensão do trauma precoce associado aos estados limítrofes.

A necessidade de uma perspectiva própria para esses pacientes se deve ao processo de individuação ser interrompido pela vivência traumática. O processo defensivo rompe os vínculos internos e externos restringindo a capacidade simbólica desses pacientes (devido à inibição defensiva da função transcendente). O ego fragilizado se torna incapaz de mediar e sustentar suas funções adequadamente, sendo atravessado pelas defesas primitivas e pelas fantasias que o imobilizam, vivendo na contínua evitação da vivência traumática.

Para essas pessoas, não há um “Self” que nutra simbolicamente o ego ou que sustente processos integrativos. Schwartz-Salant faz uma importante diferenciação entre o Self Transcendente, arquetípico e numinoso e o Self imanente, isto é, como Self encarnado na experiência pessoal, e descreve esse último como

0 self imanente traz coesão aos muitos selves parciais (complexos) de que se compõe qualquer personalidade. Cada um desses selves parciais dá origem a uma sensação particular: somos todos diferentes em diferentes momentos. O self imanente é um destes, mas é singular pelo fato de também atuar para fornecer uma experiencia de totalidade em que todas as partes se integram.

O self imanente esta funcionalmente morto para 0 paciente limítrofe, porque 0 numinoso experimentado como parte da vida cotidiana se manifesta em geral de uma forma fortemente negativa, enquanto a sua natureza positiva não consegue se manifestar. Em vez disso, ela se mantem no limbo entre a realidade exterior e um mundo interior conhecido, em grande parte, através de identificações tortuosas com os arquétipos. O resultado desta identificação é, como sempre, um desmembramento psíquico. A beleza potencial do sagrado se converte no o seu oposto e abundam os sentimentos de feiura do corpo e da alma. (SCHWARTZ-SALANT, 1992, p.71)

Em função disso, com um “self funcionalmente morto” o paciente vive uma experiência contínua de desamparo e sofrimento, que podem desenvolver defensivamente processos de compulsivos, ataques ao corpo, abusos de substâncias para lidar com os afetos negativos e de alguma forma ter a sensação de estar vivo. O self encontra-se encapsulado em processos defensivos e profundamente arraigado aos processos psicoides e somáticos. O fato é que pacientes limítrofes possuem um grande sofrimento psíquico, um grande sentimento inadequação e abandono, dos quais têm dificuldade de acessar e expressar.

Dessa forma, processos de fusionamento com pessoas de seu convívio com processos de identificação projetiva e idealização delirante (positiva ou negativa), sobrecarregando as relações. O mesmo ocorre na relação terapêutica, exigindo uma compreensão profunda da transferência-contratransferência para ser capaz de lidar com os conteúdos pré-simbólicos e defensivos que atravessam a relação terapêutica.

Considerações Finais

A clínica junguiana é rica em técnicas e possibilidades de manejo, mas se vê extremamente empobrecida quando se fecha aos processos psicodinâmicos. E, infelizmente, vemos uma certa resistência no campo junguiano, apesar da publicação de obras que ampliam a compreensão do desenvolvimento e das relações intersubjetivas e ambientais. James Astor, faz um importante apontamento quando afirma que “o estilo tradicional de análise junguiana tratou a mitologia quase como uma metapsicologia, buscando os mitos para ilustrar o comportamento. Fordham reverteu essa tradição e usou seu trabalho clínico com pessoas para iluminar nossos mitos contemporâneos.”(ASTOR,1995, p9) Os mitos e contos são importantes como amplificação, como possibilidade de produzir uma ponte de integração simbólica, mas não substituem a compreensão psicodinâmica.

Os estados limites indicam uma forma de organização psíquica, não um diagnóstico. Por isso, reforçamos o que foi dito anteriormente, podemos encontrá-lo nas mais distintas manifestações, pode se apresentar na depressão, transtornos alimentares, quadros compulsivos, somatizações dentre outras, que incluem o transtorno de personalidade borderline.

A relação entre a possessão/participação mística e posição esquizoparanoide, que há muito foi apontada por Fordham, nos auxilia a compreender a psicodinâmica desse estado de indiferenciação do ego quanto tomado pelos processos defensivos inconscientes. Contudo, a posição esquizoparanoide em si mesma, aponta para um modo de organização psíquica que pode ser fixada nos casos limítrofes e compreendida a partir da perspectiva do trauma.

A diversidade de manifestação dos estados limítrofes nos desafia a um estudo aprofundado da psicodinâmica , da relação transferência-contratransferência, dos processos traumáticos e defensivos. Para tanto, precisamos pensar a clínica junguiana na contemporaneidade.

Referencias Bibliográficas

ASTOR, J. Michael Fordham: Innovations in Analytical Psychology. London: Routledge. , 1995

DALGALARRONDO, P.; VILELA, W. A.. Transtorno borderline: história e atualidade. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 2, n. 2, p. 52–71, abr. 1999.

Fordham, M Explorations into the Self, Library of Analytical Psychology, Volume 7, London: Academic Press, 1985.

Fordham, M., The self and autism. The Library of Analytical Psychology Vol. III. William
Heinemann Medical Books, London, 1976  

 JUNG, C.G. Simbolos da Transformação, Vozes: Petropolis, 1999.

 JUNG, C.G. Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, Vozes: Petropolis, 2000.

KAES, René. A ideologia é uma posição mental específica: Ela nunca morre (mas se transforma). J. psicanal.,  São Paulo ,  v. 49, n. 91, p. 207-224,  dez.  2016 .   Disponível em <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352016000200019&lng=pt&nrm=iso>. acessos em  26  jul.  2024

OGDEN, T. H. A matriz da mente: relações objetais e o diálogo psicanalítico. São Paulo, SP: Blucher; Karnac, 2017

SCHWARTZ-SALANT, N. A personalidade limítrofe: visão e cura.São Paulo: Cultrix: 1992.


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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico Junguiano, Supervisor Clínico, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Especialista em Acupuntura Clássica Chinesa (IBEPA/FAISP). Formação em Hipnose Ericksoniana. Coordenador de Grupos de Estudos Junguianos. Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 99316-6985.

e-mail: fabriciomoraes@cepaes.com.br

Instagram @fabriciomoraes.psi

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Da Função Transcendente ao Rêverie

Na clínica Junguiana temos na técnica da imaginação ativa uma importante contribuição de Jung para a prática da psicoterapia, através da qual o paciente poderia estabelecer uma relação objetiva com imagens e personificações do inconsciente, possibilitando a integração de conteúdos inconsciente.

A função transcendente é conceito chave para entender a imaginação ativa, assim como outras possibilidades de aproximação ao inconsciente. A partir da função transcendente vamos pensar o conceito de função alfa de Bion, como correlatos que servem de base para pensar a imaginação ativa, visão imaginal de Schwartz-Salant e rêverie de Bion, fenômenos similares que nos ajudam a pensar o processo simbólico do analista durante a análise.

A Função Transcendente e a Visão Imaginal

No texto “A Função Transcendente”, escrito em 1916, Jung traz uma importante discussão, tomando como base a questão “De que maneira podemos confrontar-nos com o inconsciente?” (JUNG, 2000). O texto apresenta diferentes níveis de compreensão acerca da função transcendente, como aponta Damião Jr

Esse texto pode ser lido em diversos níveis de hermenêutica, ou variados modos de compreensão, são metadiscursos que se compõem a partir de outros discursos.

– Em um primeiro momento, pode ser entendido como um trabalho técnico/clínico, no qual se desenvolvem técnicas para acesso ao inconsciente e para o processo de iteração entre consciente e inconsciente, com ênfase propriamente na criação de imagens;

– Num outro nível, um texto epistemológico, pois como se verá ele aborda o problema dos modos de conhecimento do inconsciente e do consciente. Modo de distinção feita entre uma ênfase que seria dada no aspecto estético do símbolo ou em sua compreensão, tratando, também, da questão da “visão sintética”, um modelo de ciência que se basearia no sentido, em vez da explicação. Nessa perspectiva, existe um aspecto metodológico do uso do termo como função e como processo;

– Por fim, pode-se entendê-lo em seu aspecto ontológico, ao caracterizar o processo de formação do indivíduo, como se originando a partir do “confronto” e diálogo entre consciente e inconsciente. (DAMIÃO JR, 2019, p. 2-3)

A partir dessa perspectiva vamos nos ater ao aspecto técnico/clínico, considerando as possibilidades de acesso ao inconsciente, em especial à formação. No texto de Jung, a função transcedente emerge como um princípio organizador e integrador das tendências da consciência e do inconsciente. A função transcendente não seria um produto “artificial”, mas um princípio natural, uma função que se manifesta nos sí mbolos. Dada a importância do diálogo interior, como possibilidade de elaboração simbólica e integração do inconsciente, Jung desenvolveu, a partir da própria experiência, a imaginação ativa, como capacidade estabelecer um diálogo interior, de modo equilibrado, sem perda do inconsciente ou da consciência, ativando ou potencializando a função transcendente do paciente.

De forma geral, falamos da imaginação ativa como técnica a ser usada com e pelo paciente. Nosso foco não é aborda-la nesse contexto, mas pensar por parte do analista através da constratransferência. Sobre este ponto Jung afirma

Assim, um analista reage a uma “transferência” com uma “contratransferência”, quando a transferência projeta um conteúdo de que o próprio médico não tem consciência, embora exista realmente dentro dele. A contratransferência é adequada e plena de sentido ou inibidora como a transferência do paciente, na medida em que tende a estabelecer relações mais favoráveis que são indispensáveis para a percepção da realidade de certos conteúdos inconscientes. Mas justamente como a transferência, também a contratransferência possui qualquer coisa de compulsivo, de mecânico, porque implica uma identificação “mística”, isto é, inconsciente, com o sujeito. Ligações inconscientes desta espécie suscitam sempre resistências que são conscientes, se as disposições do sujeito são de tal natureza, que lhe permitam dispor livremente de sua libido, recusando-se a cedê-la por engodo ou sob pressão, e inconscientes, se o sujeito se compraz em que lha tomem. É por isto que a transferência e a contratransferência, quando os seus conteúdos permanecem inconscientes, criam relações anormais e insustentáveis que tendem para a própria destruição. (Jung, 2000 , p.221)

A influência exercida pelo paciente sobre o analista, se expressa na contratransferência, e possibilita que o analista entre em contato com o inconsciente do paciente atráves do próprio inconsciente. Cabe ao analista compreender essas manifestações – que podem ser sentimentos, sensações somáticas, lembranças pessoais, lembranças de filmes ou narrativas ou mesmo elementos aletórios do cotidiano do analista – devem ser consideradas como reações ou reverberaçōes do inconsciente do analista e precisam ser consideradas à luz da história ou transferência do paciente, para assim esse processo ser transformado em informações úteis ao analista.

A advertência que Jung aponta é o estado de inconsciência no paciente ou no analista. Através da contratransferência o analista se “faz de função transcendente para o paciente, isto é, ajuda o paciente a unir a consciência e o inconsciente e, assim, chegar a uma nova atitude” (Jung, 2000, p. 145).

Mas, como fazer a função transcente para o paciente? Jung nos dá uma direção importante:

O meu esforço consiste justamente em fantasiar junto com o paciente. Pois não é pouca a importância que dou à fantasia. Em última análise, a fantasia é para mim o poder criativo matemo do espírito masculino. No fundo, no fundo nunca superamos a fantasia.(…) Toda obra humana é fruto da fantasia criativa. Se assim é, como fazer pouco caso do poder da imaginação? Além disso, normalmente, a fantasia não erra, porque a sua ligação com a base instintual humana e animal é por demais profunda e íntima. É surpreendente como ela sempre ‘chega a propósito’. O poder da imaginação, com sua atividade criativa, liberta o homem da prisão da sua pequenez, do ser “só isso”, e o eleva ao estado lúdico. O homem, como diz SCHILLER, “só é totalmente homem, quando brinca”. (Jung, 1999, p 43)

A fantasia ou mais propriamente a imaginação é a capacidade de expressar em imagens e palavras o processo vivenciado com o inconsciente. De forma que o conteúdos sejam objetivados, permitindo que o ego estabeleça o diálogo interior. Na análise, ocorrerá a transposição da vivência da contratransferência em símbolos (imagens, palavras, sentimentos, sensações), através de uma dialética interior, que no momento propício será compartilhado ao paciente na relação terapêutica.

De modo similar, porém muito particular, o analista Nathan Schwartz-Salant, que trabalhou com casos-limite ou borderline, em quem a dificuldade de elaboração simbólica é pronunciada, desenvolveu a experiência de “imaginar junto” como uma possibilidade da simbolização e elaboração de conteúdos proto-simbólicos, da parte psicótica da personalidade, integrando-os e favorecendo o fortalecimento e organização do ego dos pacientes.

Schwarzt-Salant denominou essa técnica de visão imaginal, e diz

A visão imaginal é como a imaginação ativa, mas, ao utilizar a visão imaginal na terapia, e essencial que 0 inconsciente do terapeuta seja constelado por meio de sua contratransferencia. Por exemplo, só depois que me tornei consciente de minhas tendências de cisão e de um afeto pouco modulado que nao atraia às partes psicóticas de John, pude começar a usar esta reação de contratransferência. Submetendo-me de modo consciente a esse estado induzido de contratransferência e ficando incorporado, pude deixar que a imaginação me levasse a perceber a sua sondagem no segundo plano.


A esfera imaginal não se manifesta necessariamente através de imagens visuais; 0 sentimento e a sensação cinestésica são também canais naturais. É possível que a natureza do ato imaginal seja matizada pela função inferior do terapeuta, de modo que um terapeuta verá “visivelmente”, enquanto outro verá “sentimentalmente”. De qualquer forma, 0 processo exige que 0 terapeuta se deixe afetar pelo material do paciente sem ter que recorrer a interpretações, que, na melhor das hipóteses, se revelariam uma manobra defensiva.

A imaginação é um ato nascido do corpo. Surge de uma matriz de confusão e desordem. A fé, e não tanto a vigência da compreensão, e a parteira.(SCHWARTZ-SALANT, 1992, p,214)

A visão imaginal é uma variação da imaginação ativa realizada pelo analista, não ouvimos muito no cenário junguiano falar dessa modalidade de relação ou manejo com a contratransferência. A visão imaginal não ganhou força ou presença no campo junguiano, diferente de seu correlato psicanalítico, o conceito de rêverie, que desde que foi apresentado em 1962 por Bion, foi incorporado é trabalhado por vários autores. A semelhança dos dois conceitos nos possibilita pensar e amplifciar a visão imaginal a partir das discussões acerca do rêverie.

A função Alfa e o Rêverie

W.R Bion foi um dos mais criativos e inovadores psicanalistas do século XX. A amplitude e produndade de sua obra, desenvolvimento de técnica psicanalítica que, como é bem conhecido, em vários aspectos se aproxima e tangencia a obra de Jung.

Bion desenvolveu sua teoria ao pensar a partir de seu trabalho com pacientes psicóticos, desse trabalho destacamos os elementos beta, elementos alfa e função alfa.

Os elementos beta corresponderiam aos elementos da experiência sensorial e afetiva que não se integram ao psíquico e não estabelecem vínculo ou conexão, “proliferando” de forma caótica, em si mesmos incapazes de se tornarem representação, quer em pensamento ou sonhos. Esses elementos são descarregados (ou evacuados) em forma de agitação motora, choro, somatizações ou na identificação projetiva. Em linguagem junguiana poderíamos compreendê-los como elementos psicóides, proto-simbólicos, não integrados, a “massa confusa” da alquimia.

Os elementos alfa são elementos basais da experiência psíquica, são as primeiras representações, vivências simbólicas basais que abstraem a experiência em si, e que se organizam e podem se manifesfar nos processos oníricos, na memória e demais funções psíquicas superiores. Para Bion, a diferenciação de “dentro e fora” surge a partir dos elementos alfa que geram uma “barreira de contato”, diferenciando o que é consciente e inconsciente. O ego pode lidar e elaborar os elementos alfa.

A função alfa atua no processamento dos dados sensoriais, elementos beta, em elementos alfa. O bebê não possui função alfa, a capacidade de processar os elementos beta, é através da função alfa da mãe que, p.ex., diante do choro, agitação motora, sons lhes atribui um sentido/significado, nomeando como fome -> e o amamenta, sono -> e faz o bebe dormir), incôdomo com excrementos -> troca as fraldas, dores -> dá remédio; possibilita que a criança tolere o incômodo/frustração e abre caminho para a “psiquificação” dos dados sensoriais, nomeados como fome, sono, incômodo, dor, gerando elementos (alfa) que poderão ser ordenados, participar da formação do pensamento, sonhos, ser nomeados e vividos conscientemente. A mãe aberta aos processos da criança acolhe esses dados projetados e devolve como um elemento integrado, simbólico. A criança irá desenvolver sua própria função alfa a partir da experiência materna.

A função alfa materna também é expressa com o conceito de rêverie. Zimmerman explica

Essa denominação foi cunhada por Bion (1962, p. 58) e, tal como a sua raiz francesa mostra (rêve = sonho), designa uma condição em que a mãe (ou o analista) está em um estado de “sonho”, isto é, está captando o que se passa com o seu filho não tanto através da atenção provinda dos órgãos dos sentidos, mas muito mais pela intuição, de modo que uma menor concentração no sensório possibilita um maior afloramento da sensibilidade. Em suma, diz Bion: “a rêverie é um componente da função α da mãe”, capaz de colher as identificações projetivas da criança, independentemente de serem percebidas por esta como boas ou más.

Da mesma forma, o estado de sonho da função rêverie do analista possibilita que dê um livre curso às suas fantasias, devaneios e emoções, em um estado mental que lembra o da “atenção flutuante” preconizada por Freud e que serviu de inspiração ao que Bion veio a postular como um estado do analista em relação com o paciente “sem memória, desejo ou compreensão”. Pode-se dizer que o conceito de rêverie é uma ampliação e complementação da “atenção flutuante”. (…)
A função de rêverie é estudada por Bion como a capacidade da mãe (analista) de fazer a identificação introjetiva das identificações projetivas do seu filho (analisando); ou seja, é a capacidade de fazer ressonância com o que é projetado dentro dela. (Zimerman, 2008, p.231)

O rêverie ou função alfa da mãe é internalizado (introjetado) pela criança, possibilitando o desenvolvimento da consciência (barreira de contato), a formação simbólica. Contudo, o que se torna importante é a relação do rêverie com o processo analítico. Através do rêverie o analista transforma os conteúdos, manifestos na contratransferência em material analítico. Nessa perspectiva, o

Rêverie, por outro lado, foi a ideia que ele aplicou para descrever a atitude do analista durante a sessão, podendo ser alcançada apenas depois que o analista tenha se tornado capaz de abandonar memória, desejo, preconcepções e compreenênção. (…) o analista disciplinado para aguardar a chegada do fato selecionado, elemento que finalmente emerge das associações do analisando e/ou nutralmente a partir do inconsciente do próprio analista sob a forma de “imaginação especulativa”, a qual é então transformada em “raciocínio especulativo” em ressonância intuitiva com o analisando (GROTSTEIN, 2017 p.364).

É possivel compreender que a função transcendente e a função alfa correspondem ao mesmo princípio formador de símbolos, que integram e perminte a nossa percepção da realidade.

Imaginação Ativa, Visão Imaginal e Rêverie

Como atividade imaginativa e intersubjetiva o rêverie apresenta similaridades com as técnicas junguianas imaginativas. Mark Winborn aborda o reverie e a imaginação ativa dizendo que

A postura adotada no rêverie é semelhante à da imaginação ativa de Jung (1916), na qual um relacionamento ou postura é estabelecido com o fluxo interno. A imaginação ativa, que foi descrita como “sonhar com os olhos abertos” (Sharp, 1991, p. 13), é uma técnica desenvolvida por Jung para facilitar o envolvimento e a assimilação de processos inconscientes em um estado relaxado, mas acordado. Entretanto, é importante observar que Jung via a a imaginação ativa como uma atividade envolvida principalmente pelo analisando que, às vezes, pode ser facilitada pelo analista. Não parece que Jung via a imaginação ativa como algo que era praticado com outra pessoa, como o rêverie é tipicamente conceituado. (…)

Em contraste com a imaginação ativa, o Rêverie analítico tem sido um conceito diádico desde o início. Ogden (2017) se refere ao rêverie como um “sonho acordado” (p. 5), mas que é sonhado com outra pessoa e não sozinho. Nesse sentido, Ogden (1997) vê o rêverie como um evento pessoal/privado (ou seja, intrapsíquico) e intersubjetivo. Em outras palavras, ele reconhece a presença de de duas subjetividades que podem experimentar sua interação como sendo tanto individual e coletiva (ou seja, como uma experiência interconectada e emergente) (WINBORN, p. 134)

O rêverie e a visão imaginal são expressões do mesmo fenômeno vivenciado pelo analista que possibilita a construção do “terceiro analítico”, fruto da relação analítica, no espaço potencial entre o analista o paciente, a partir do qual podem ocorrer as transformações. A psicanálise contemporânea tem trabalhado bastante com a conexão e o potencial transformador do processo analítico. Ogden comenta que

A nova subjetividade (o terceiro analítico) permanece na tensão dialética com as subjetividades individuais do analista e analisando. Não considero o terceiro analítico intersubjetivo como entidade estática; ao contrário, compreendo-o como uma experiência em evolução, em fluxo constante na medida em que a intersubjetividade do processo analítico é transformada pelas compreensões geradas pelo par analítico;

O terceiro analítico é vivencidado pela personalidade de cada um, analista e paciente, não sendo, portanto, uma experiência idêntica para ambos. A criação do terceiro analítico reflete a assimetria da situação analítica, pois ele é criado no contexto do setting analítico que, por sua vez, se estrutura por meio do relacionamento dos papéis de analista e analisando (OGDEN, 2013, p.43).

O terceiro analítico, que emerge do campo transferêncial, que sustenta a análise é o vas hermeticum, o vaso alquimico ou o temenos, o local sagrado e protegido onde o sagrado se manifesta. Esse campo simbólico é alcançado, visto e vivido por meio de uma atitude analítica simbólica, que pode ser expressas por diferentes vias como a imaginação ativa em Jung, pela visão imaginal em Schwartz-Salant ou rêverie em Bion.

O rêverie e a visão imaginal possibilita que o analista, em coniuncio com o paciente, possa acessar os conteúdos constelados na relação terapêutica inconsciente e trazer uma interpretação (sobre interpretação veja o texto Pensando a interpretação na Psicologia Analítica). Esta última deve ser compreendida como um ato analítico-simbólico que conecta situação presente/sintoma do paciente, com conteúdos da matriz inconsciente (complexos, defesas, etc) gerando a possibilidade de transformação. Ou mesmo, compreendo o momento para utilizar outros recursos com o paciente como a imaginação ativa ou a técnicas expressivas.

Devemos levar em consideração os casos que os pacientes com dificuldade ou aparentemente incapazes de simbolizar, isto é, com ego frágil, excessivamente defensivos, que Jung e autores de primeira geração falavam de “psicose latente”, e que hoje compreendemos como estados-limite ou pacientes borderline, onde não seria indicado a imaginação ativa. Nesses casos há uma inibição defensiva da função transcendente (ou uma falha da função alfa), assim, o processo interpretativo (por ser um processo simbólico) não é bem sucedido.

Com esses pacientes, é necessário restaurar capacidade de vivenciar a função transcendente e o processo simbólico. Cabe ao analista, fazer a função transcendente/função alfa para o paciente, utilizando a visão imaginal/rêverie, para que ele possa transformar os conteúdos proto-simbólicos/psicóides do paciente, assim como a experiência cindida de si mesmo e da realidade.

o terapeuta que se aventura a recuperar a visão imaginal do paciente não pode dar-se 0 luxo de deixar passar as distorções de realidade que afligem indivíduo limítrofe. (Para isso, e para uma compreensão geral do paciente limítrofe, a literatura psicanalítica é valiosissima(…) A menos que lidemos com 0 modo como 0 mundo esta cindido para o paciente limítrofe (por exemplo, em objetos irreais “bons” e “maus”), nossas tentativas de religar 0 paciente a uma reaIidade imaginal produzirão apenas uma secreta inflação e reforçarão uma abordagem delirante da realidade (SCHWARTZ-SALANT, 1992, p. 18).

Com os pacientes limites a transferência de conteúdos proto-simbólicos gera incômodo e, com frequência, gera contrarrestência no analista – ativando defesas e interrompendo a possibilidade da relação simbólica. Schwartz-Salant sugere que através da visão imaginal, é possível que, em alguns casos, o paciente reintegre sua visão imaginal, restaurando a função transcendente, que fora inibida defensivamente. A retomada da relação com o inconsciente é um processo integrativo, por isso devendo ser compreendida como a restauração da função transcendente.

A função transcendente é um conceito junguiano importante, contudo foi pouco desenvolvido e ampliado em direção aos processos de desenvolvimento e sua função na análise. O paralelo com a função alfa, nos permite vislumbrar e amplificar a percepção da função transcendente, cuja amplitude o campo junguiano intui, mas sem sistematizar. Do mesmo modo, que os estudos psicanalíticos acerca do rêverie temos a amplifição a proposta do Schwartz-Salant, uma contribuição impar no cenário junguiano.


Referências

DAMIAO JR., Maddi. A função transcendente: algumas reflexões sobre o processo de criação. Pesqui. prát. psicossociais [online]. 2019, vol.14, n.4 [citado  2024-03-26], pp. 1-17 . Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-89082019000400007&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 1809-8908.

GROTSTEIN, James S. “… no entanto, ao mesmo tempo e em outro nivel...” Vol I , São Paulo: Blucher, 2017.

JUNG, C.G. A natureza da Psique, Petropolis: Vozes, 2000.

JUNG, A Prática da Psicoterapia,Petrópolis: Vozes, 1999.

OGDEN, T, Rêverie e interpretação, São Paulo: Escuta, 2013.

SCHWARTZ-SALANT, N. A personalidade limítrofe: visão e cura.São Paulo: Cultrix: 1992.

ZIMERMAN, David E. Bion : da teoria à prática : uma leitura didática;. 2. ed. Porto Alegre : Artmed, 2008.

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O Brilho nos Olhos do Analista

Um recorte muito comum na clínica são casos de  jovens mulheres com complexo materno negativo, que leva a sérias dificuldades de auto percepção, auto aceitação e autoestima ( homens também podem apresentar as mesmas características, mas dado nosso contexto social, vemos mais frequentemente em mulheres). Estes se manifestando com frequência com perfeccionismo, ansiedade, a culpa, e um censo de responsabilidade gigantesco e opressivo em relação à mãe. 

As mães, no geral, são mulheres sofridas, muitas vezes vindas do interior, que criaram os filhos sem apoio familiar (da família de origem) e com dificuldades em relação à família do marido – estes últimos, no geral, ausentes, machistas etc ; e com frequência, com dupla jornada, se viam exaustas e fazendo o que lhes era possível no cuidado dos filhos. 

Nessas condições, essas mães cujo sofrimento era invisibilizado,  estavam despotencializadas/desvitalizadas e, assim, impossibilitadas de oferecer o investimento afetivo necessário/demandado pelo desenvolvimento dos filhos. 

Mario Jacoby, do livro “Individuação e Narcisismo”, nos ajuda a entender um pouco desse processo quando diz que   

O senso da autoestima deve ser conservado por ações e reconfirmado constantemente. Ao mesmo tempo, uma autoestima sadia não atribui valor ao indivíduo somente mediante consecução. O “brilho nos olhos da mãe” introjetado também gera um sentimento interior de que a existência inteira de alguém é confirmada. O outro polo, no caso excelente, contém ideais maduros. Estes envolvem questões suprapessoais maiores ou menores, as quais são muitas vezes consideradas doadoras de sentido à existência do indivíduo. (JACOBY, 2023, p.150) 

Jacoby utiliza uma concepção de Kohut sobre a importância do “brilho dos olhos da mãe” como a capacidade de espelhar o Self,  para que o bebê possa internalizar/integrar a experiência de si-mesmo.  O “Brilho nos olhos da mãe” é um investimento narcísico importante, que vitaliza e potencializa o desenvolvimento. Quando a relação mãe-criança é prejudicada, o conjunto de sintomas pode surgir pela não humanização de aspectos fundamentais de autocuidado, autopercepção e sentido de si-mesmo, ou de estar em si-mesmo.  

O sofrimento do paciente aponta para o registro histórico-afetivo que chamamos de complexo materno negativo, contudo, há outro registro tão importante quanto, que é a ferida narcísica  vivenciada pelo ego como elementos de rejeição, indigno de amor e insuficiência e revivida em suas relações. Na relação transferência-contratransferência tanto os conteúdos afetivos negativos (medo, raiva, sentimento de abandono e rejeição) como conteúdos saudáveis que precisam humanizados, para uma relação saudável consigo e com o outro, podem ser elaborados.  Lidar com complexo materno exige atenção, paciência e técnica, mas lidar com a ferida egóica exige o “brilho nos olhos do analista”, para ser capaz de encontrar “o que não tem forma”, o que ficou perdido e cuidar, investir nele, dar continência, forma, contorno aos aspectos ainda sem forma do Self.  Gambini fala da transferência de uma forma muito bonita, ele diz: 

Na esfera psíquica, alguém precisa cuidar do que ainda não nasceu e essa tarefa é do analista. Depois que veio à luz, começa-se cuidadosamente entregar o bebê para a mãe. O trabalho mais importante é na realidade aquele feito com o feto, quando só o terapeuta tem condições de enxergar e valorizar aquilo que ainda não tem cara nem nome. Portanto, aceito sentimento como dependência, gratidão, amor, cobrança, raiva, desejo de exclusividade e de atenção especial, por considerá-los como inevitáveis nessa fase de gestação. O grande teste para um analista é a hora que ele constata que consegue suportar o peso e a responsabilidade da transferência. (GAMBINI, p.111 – grifo meu) 

Assim, é importante pensar que muitas vezes  os componentes maternos mobilizados na contratransferência apontam a criança ferida que, escondida no inconsciente do paciente, busca o brilho nos olhos do analista para que possa vir à luz, para que a reparação do amadurecimento interrompido possa ganhar contorno, forma e direção. Esse processo exige o investimento e consciência ativa do analista, para que não seja levado a “atuar” maternalmente, tutelando o paciente e, assim, prejudicando o desenvolvimento do paciente. 

referências bibliográficas

GAMBINI, R. A voz e o tempo: reflexões para jovens terapeutas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.
JACOBY, Mario, Individuação e Narcisismo – A psicologia do si-mesmo em Jung e Kohut, Petrópolis: Vozes, 2023.

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico Junguiano, Supervisor Clínico, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Especialista em Acupuntura Clássica Chinesa (IBEPA/FAISP). Formação em Hipnose Ericksoniana. Coordenador de Grupos de Estudos Junguianos. Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 99316-6985.

e-mail: fabriciomoraes@cepaes.com.br

Instagram @fabriciomoraes.psi


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Sobre o Complexo Materno – uma perspectiva desenvolvimentista

O complexo materno é um pilar fundamental na estruturação da vida psiquica e talvez seja um dos exemplos mais usados quando vamos ilustrar a teoria dos complexos descrita por Jung. Por isso, recentemente fui surpreendido quando questionado se havia algo sobre o complexo materno no blog “Jung no Espirito Santo” e, de fato, não havia nada. Em cerca de 14 anos de blog eu nunca me dediquei a escrever sobre o mesmo. Assim, esse texto é uma forma de reparação, sendo um pouco mais aprofundado sobre esse complexo.

Do Arquétipo ao Complexo – Origens do complexo materno na infancia

Toda vez que falamos em complexo ideoafetivo o qualificamos a partir de seu arquétipo nuclear, isto é, o arquétipo que o estrutura, organiza e qualifica. No caso do complexo materno falamos também sobre o arquétipo materno também chamado de “arquétipo da Grande Mãe”.

O Arquétipo da Grande Mãe condensa a experiência humana do que chamamos de “maternidade” desde os primórdios. Neumann nos chama atenção em seu trabalho “A Grande Mãe” aos apectos elementares desse arquétipo;

No centro do caráter elementar feminino, onde a mulher contém e protege, nutre e dá a luz, se encontra o vaso que é tanto um atributo, como um simbolo da natureza femina.(Neumann, 2003, p.111)
(…) em sua qualidade protetora e acolhedora, congrega em si a vida da familia e do grupo sob o simbolo da casa. Esse aspecto aparece nas chamadas urnas domésticas, vasos moldados na forma de casas. Até os dias de hoje, o caráter vaso feminino, originalmente vinculado à caverna, e depois à casa(no sentido de estar dentro e estar protegido, aquecido ou abrigado no interior da casa), sempre esteve relacionado com a vivência original de ser contido pelo útero (idib, p.125)

Em seu aspecto mais fundamental o arquétipo da grande mãe, representado no vaso, traz as funções positivas basais de nutrição e proteção(contenção) como fundamentos da experiência arquetipica da maternidade. Expressos imagéticamente na mãe-terra, nas deusas-mãe, na fertilidade e segurança.

Em seu aspecto negativo, o arquétipo materno expressa as forças contrárias à relação mãe-filho, isto é, às relações de nutrição e proteção, como a carência, falta e exposição, assumindo o aspecto da mãe terrivel e devoradora, representada nas mitologias nas bruxas, na madrastas dos contos de fadas, assim como no aspecto irado das deusas da fertilidade que fazem sofrer todos os viventes. O aspecto duplo do arquétipo (bom e mau), é uma base fundamental para o desenvolvimento das relações objetais.

Os arquétipos são padrões basais de organização psiquica(pessoal e coletiva) que, em seu aspecto coletivo percebemos através de mitos, rituais, contos de fada. Em seu aspecto pessoal estão na base da possibilidade de desenvolvimento psiquico, tanto do ego quanto dos complexos.

Antes de falarmos de um psiquismo propriamente dito, temos uma fase anterior, a partir da qual o psiquismo poderá se desenvolver. Na fase de gestação, parto e nos meses subsequentes não há, no bebê, uma distinção entre corpo e psique, nem dentro e fora, o “Self-bebê” é como um “todo integrado” (corpo-psique), ao que Fordham chamou de Self primário. A partir do nascimento, o Self primario é invadido dos estímulos sensioriais(auditivos, visuais, táteis), cinestésicos, cenestésicos (que começam antes do nascimento e se multiplicam após o parto) que mobilizam o Self num processo de atualização, trazendo o potencial arquetípico para o tempo histórico num processo contínuo e rítmico que Fordham descreveu como deintegracao-reintegração.

É importante ressaltar que, o início da vida, não há um ego organizado, nem uma consciência diferenciada dos processos fisiológicos, assim ainda não podemos falar de símbolos nesses processos precoces, mas sim de objetos, que mobilizam e possibilitam os processos necessários ao amadurecimento. No inicio da vida o Self primário do bebê está mobilizado pela dinâmica do arquétipo materno, pela experiência fisica proteção/estabilidade por de estar contido na mãe(vida intratureina) e, posteriormente, por ser contido pela mãe – colo, cuidados, manejo. Assim como pela nutrição necessária a vida.

Inicialmente, o bebê não percebe a mãe uma “pessoa” mas como sensações, percepções que afetam, mobilizam e geram transformações no Self primário do bebê. Esse processo foi nomeado por Fordham como deintegração-reintegração. Nessa fase da mãe como “objeto” é descrita por C. Bollas como “objeto transformacional”

(..)chamei o primeiro objeto de objeto transformacional, uma vez que quero identifica-lo com a experiência que o bebê tem dele. Antes de a mãe ser personalizada para o bebê como um obejto total, ela funciona como uma região ou como uma fonte de transformação. (…) (BOLLAS, 2015, p.63)

(…) Uma vez que esta é uma identificação que começa antes da mãe ser representada mentalmente como um outro, é uma relação objetal que não emerge do desejo, mas de uma identificaçao perceptual do objeto com sua função: o objeto como transformador ambiente-somático do sujeito. A memória dessa relação objetal precoce se manifesta na busca da pessoa por um objeto (pessoa, lugar, evento, ideologia) que prometa trasnformar o self. (BOLLAS, 2015, p.50)

A partir da relação primária com o ambiente materno, as experiências arquetípicas do Self do bebê deintegram-se (isto é, como se partes do Self, em estado de prontidão, se desdorassem para receber a experiência atual) e são reintegradas ao self do bebê, fundamentando o caminho do desenvolvimento da experiência pessoal. O processo de deintegração-reintegração ocorre ao longo da infência, através da constância das relações e transformações que do bêbe vive em sua relação com o ambiente (mãe/cuidadores), dessa constância e atualização do potencial arquetípico(deintegrados) desenvolvem-se os objetos do Self que mobilizam e estabilizam a criança em seu amadurecimento e na relação os objetos reais. Dos objetos do self , desenvolvem-se as representações do Self, que são estados parciais de consciência ou “ilhas de consciência”, que virão a formar os núcleos do ego. Os objetos do Self formam a base arquetípica para os complexos.

O arquétipo materno é a dinâmica fundamental que possibilita e sustenta a relação mãe-bebê, que é humanizado, ou seja, se torna acessível à consciência através da vinculação e apego com a mãe. A experiência transformacional do cuidado materno possibilita a transição do somático para o psiquico. Esse processo envolve, especialmente, o que Bion descreveu como a função alfa materna ou revêrie materna.

Acredito que devemos fazer uma breve explicação, Bion postulou que haveria dois elementos basais da psique, os elementos beta – que se seriam relacionados as sensações, emoções e percepções que não estariam disponíveis aos processos superiores da psique (sonho, pensamento p.ex), isto por serem pré-simbólicos, psicódes. Os elementos alfa, por sua vez, que poderiam ser representados na psique, como parte fundamental do pensar, sonhar e experimentar a realidade, por serem representações, sendo elementos simbólicos compatíveis com a consciência do ego.

Na primeira infancia, os elementos beta seriam transformados em elementos alfa pela ação materna mais precisamente pela função alfa materna, que atua quando a mãe percebe seu bebê, suas expressões do bebê, e transforma suas reações fisiológicas em comunicação, como, por exemplo, atribuindo ao choro um signficado, nomeando e seja como fome, dor, frio/calor etc, e assim ao nomear ações, afetos, sons a mãe possibilita o desenvolvimento da capacidade de simbolizar do bebê, tornando conscientes e acessíveis à consciência, processos então inconscientes.

A descrição dos elementos beta e alfa, de Bion, e, especialmente da função alfa ou reverie materna, é importane pois a partir da função alfa materna que se desenvolve a função alfa do bebê, isto é, a capacidade de simbolizar. Esta é uma referência importante para pensarmos o desenvolvimento do que Jung descreveu como função transcendente na infância.

Esse processo de constituição do complexo materno a partir das experiências e transformações que ocorrem na criança se extendem ao longo de toda infância, até o ego maduro ser capaz exercer a função alfa, ou a função transcdente. Esse modelo é fundamental que se estende à prática analítica, deve-se notar que vaso alquimico descrito Jung como uma representação do enquadre analítico, assim como a relação conteudo-continente de Bion, são alusões ao processo fundamental e transformacional relacionado ao arquétipo materno, assim como a possibilidade de imaginativa e intregadora simbólica da função transcendente de Jung e sua correlata bioniana função alfa materna.

Dessa forma, podemos compreender a relação arquétipo materno -> mãe/ambiente-> complexo materno é importante por ser a base para:

1 – A vivência de estar em si-mesmo como experiência de segurança/proteção e nutrição se relaciona diretamente com nos padrões relacionais vinculos e apego (como descreveu Bowlby).

2 – O cuidado materno/cuidadores provendo um ambiente suficientemente bom, possibilita que a partir dos objetos bons internalizados para experienciar-se como bom e assim para o desenvolvimento saudável do ego, tendo uma autoimagem, autopercepção e autoconceito saudáveis.

3 – A função transcendente, isto é, a tendência de integração da consciência e o inconsciente que se expressa na formação de simbolos, está diretamente relacionada a atitude simbólica materna, na revêrie ou função alfa materna.

O Complexo Materno e sua relação com o Ego

Os complexos integram, organizam e disponbilizam nossas memórias signifivativas(isto é, as memórias que podem ser sensações ou representações com teor afetivo), como referências para o Ego. A experiência relacional mãe-criança é de uma complexidade que envolve por um lado a experiência mais própria do Self, como fundamento da experiência individual e, por outro, da experiência da mãe pessoal. Por isso mesmo há um contorno diferenciado ao complexo materno. Desde modo, o complexo materno possui caracteristicas próprias e poderia ser compreendido por duas perspectivas:
– Complexo materno como representação do Self
– Complexo materno como experiência com o cuidado materno pessoal

– Complexo materno como representação do Self

Na infância a imagem/experiência da mãe é asimilada pela criança, criando uma imagem ou objeto interior que não é caracterizado apenas por memórias e afetos relativos a mãe/cuidadores pessoais(isto é, o complexo), mas pela imagem ou projeção do Self. Essa projeção é uma experiência numinosa e transformadora foi descrita pelo escritor britânico William Makepeace Thackeray como a “mãe é o nome de Deus nos lábios e corações das crianças pequenas.” A experiência da mãe, pela identificação projetiva, é a própria vivência de si-mesmo.

A internalização da experiência com a mãe boa o suficiente possilita a experiência de si-mesmo como bom, como Fordham aponta que

“os objetos bons: eles podem ser projetados no seio, que se torna idealizado e pode gerar não apenas satisfação mas uma sensação simultânea de êxtase. O seio bom também pode ser assimilado, introjetado, e isso dá ao bebê a oportunidade, de ter dentro de si mesmo objetos bons, aumentando a vivência de si mesmo como bom, pela identificação com o objeto bom” (FORDHAM, 2001, p.107)

A experiência de si mesmo como bom, possiblita uma formação de ego coeso, baseado numa experiência positiva com o corpo e com o ambiente. Acima nos referimemos ao arquétipo materno, cujo deintegrado é objeto transformacional que promove transformações no corpo e psique. Com o desenvolvimento consciência e da capacidade de simbolizar, a vivência da mãe/cuidadores como um objeto interior assume contornos importantes, como mediador da relação do Ego com o Self. É por isso, que as experiências de perda, abandono, repúdio e desproteção podem ser cruciais na infância.

É a ação primordial do objeto primário que semeia vida no aparelho psiquico em ormação e, com seu investimento, ainda a delinear os contornos da imagem narcísica, estruturante da subjetividade. Se o objeto primário não captar e reconhecer essa existência distinta, nem refletir e significar o que pode divisisar como o sujeito em formação, poderá ficar inscrito no inconsciente um vazio, e o Eu, identificado com o nada, permanece uma “moldura vazia”. Instala-se uma disposição melancólica, um enfraquecimento do Eu de ordem traumática, que reflete uma fixação mortífera no ideal do Eu inacessível, a qual, por sua vez imprime uma desvitalização ao mundo e reflete o domínio de uma patologia de abandono, como relembrou Lambotte(1996). (MARRACCINI, 2021, p. 33)

Assim, a figura materna, atravessada pelo experiência do self, é tão determinante da vida não só das crianças mas também dos adultos. Através do arquétipo materno, temos a expressão da vida, do estar contido, vivo e em segurança. Quando por algum motivo essa relação com a mãe(que recebe essa projeção) é rompida ou vivida negativamente, o ego busca proteger o objeto idealizado, dividindo-o, e identificando-se com seu aspecto negativo. Sobre a perda da relação com o Self, Edinger afirma

O Si-mesmo, na qualidade de centro e totalidade da psique, capaz de concilar todos os opostos, pode ser considerado um orgão de aceitação par excellence. Como inclui a totalidade, ele dever capaz de aceitar todos os elementos da vida psíquica, por mais antitéticos que possam ser. O sentimento de ser aceito pelo Si-mesmo dá ao ego força e estabilidade. Esse sentimento de aceitação é veiculada para o ego através do eixo ego-Si-mesmo. Um sintoma da danificação do eixo é a falta de auto-aceitação. O individuo sente que não merece viver ou ser o que é. (EDINGER, 1992, p.69)

Com isso, aspectos como autoconceito, autopercepção, autoestima e autoimagem passam pela experiência materna/complexo materno. Pacientes com complexo materno negativo com fortes sentimentos de inadequação, vazio e melancolia apontam para uma profunda dissociação interior, com a perda do sentido do Self. Por isso, na clínica, mesmo que as relações com a mãe real sejam trabalhadas na transferência, o sentimento de vazio pode permanecer e a transferância assumir contornos arquetípicos. A transferência arquetípica, possibilita que os aspectos do self que não foram integrados na infância possam ser reparados. Fordham aponta que

a transferência arquetípica tem duas características que a pessoal não possui: as projeções são mais claramente partes do Self que precisam ser integradas. Elas também são progressivas e contêm material através do qual a individuação pode ocorrer. O reconhecimento dessas características é concebido como importante porque a interpretação analítica não pode ser aplicada: as entidades primárias foram alcançadas.” (FORDHAM,1986, p. 84).

O relacionamento humano, para além da técnica analítica, torna-se fundamental como a possibilidade de reparar o que foi rompido na relaçõão primaria, possibilitando a retomada do processo de desenvolvimento e de individuação.

Devemos notar, que quanto mais precoce a desconexão da relação primária(ou alienação do self) maior é risco o prejuízo ao desenvolvimento do ego, podendo ocasionar transtornos de personalidade. Noutras situações, a dinâmica psiquica marcada pelas defesas e fantasias na tentativa proteger tanto ego quanto a memória da sensação de integridade do Self, acabam por fragiliza-lo no interjogo das desfesas e fantasias, tornando a experiência de realidade porosa, atravessada pelo inconsciente, nesse campo temos os pacientes somatizadores, alguns pacientes depressivos graves, transtornos alimentares e casos-limites no geral.

– Complexo materno como experiência com o cuidado materno pessoal

O complexo materno oferece a sensação de cuidado, segurança e organização para que o ego possa se perceber e vivenciar diante da realidade. Guggenbhul-Criag(1978) sugere de deveríamos compreender os arquétipos não apenas pelo seu aspecto qualitativo positivo e negativo, mas como relação.

O arquétipo pode ser definido como uma potencialidade inata de comportamento. O ser humano reage arquetipicamente a alguém ou a algo quando se defronta com uma situação típica e recorrente. A mãe e o pai reagem arquetipicamente ao filho ou filha, o homem reage arquetipicamente à mulher etc. Nesse sentido, certos arquétipos têm dois pólos, por assim dizer. Sua situação básica contém uma polaridade. (…)

(…)Talvez não devêssemos falar de um arquétipo materno, paterno ou do filho, mas de um arquétipo mãe-filho ou pai-filho. (GUGGENBUHL-CRAIG, 2008, P.84-5)

A perspectiva relacional que Guggenbhul-Craig aponta é importante tanto para compreender a dinâmica do complexo como um objeto interno, quanto sua relação com a realidade exterior. Ou seja, há uma relação complexo – Ego, onde o conteúdo arquetípico inconsciente constela seu correlato no ego; e uma relação complexo – objeto externo, onde objetos externos podem constelar o complexo e perturbar a consciência.

Nessa perspectiva temos a relação do complexo materno com o ego, em seu aspecto saudável, oferece as referências de sustentação amorosa ao ego e afetividade em relação a si mesmo e ao outro. Em seu aspecto negativo, o ego se defende do sofrimento e angustia gerada pelo complexo, dividindo-o, atacando vinculos de memórias e afeto para neutraliza-lo. A divisão no objeto também gera divisão no ego, onde seu aspecto ferido é reprimido, negado.

Para manter a experiência “positiva” pode-se idealizar a mãe exterior, assim como introjetar os sentimentos negativos no ego, como se esse o individuo fosse “merecedor” de quais ações negativas (passadas, presentes ou futuras) em relação a mãe, se matendo uma relação de dependência e culpa, mantendo uma atitude infatilizada, isto é, regredida.

Em outra situação, o Ego pode se identificar com o complexo, agindo de acordo maternalmente com amigos, colegas e parceiros amorosos. Na identificação, o individuo repete a forma como vivenciou a experiência de sua mãe, ou a forma idealizada, como uma repetição que visaria compensar as experiências negativas do passado.

Em ambos os casos, a análise redtutiva é importante para retirda da projeção ou da identificação com o complexo materno, para assim poder compreender os processos prospectivos da psique.

Algumas considerações finais

Nosso objetivo foi discutir o complexo materno, contudo é importante lembrar que os complexos são entidades isoladas na psique. O complexo materno está em intima relação com o complexo paterno, complexo de poder, complexo frateno. Muitas vezes, a exeperiência registrada como “mãe agressiva, indisponível, rígida” foi na verdade uma mãe exausta, com dupla ou tripla jornada e sem rede de apoio, e, com frequencia, com o pai da criança ausente e/ou fraco. Não podemos pensar o complexo materno descolado do sistema histórico-familiar do individuo.

Assim, o registro psíquico se manifesta como complexo materno mas, na ausência paterna, a mãe também excerce a função paterna, assimilando aspectos realativos ao complexo paterno, aumentando assim sua carga energética.

A relação com a mãe/materno tá áé fundamental para o desenvolvimento individual, isso se reflete na importância do complexo materno. Direta ou indiretamenente sempre lidaremos com o aspectos do complexo materno quando fizermos uma análise profunda.

Referência Bibliográfica

BOLLAS, Christopher. A sombra do objeto. São Paulo: Escuta, 2015.
EDINGER, Edward F. Ego e Arquétipo, SP, Cultrix, 1989
FORDHAM, Michael, A Criança como Individuo, São Paulo, Cultrix, 2001
FORDHAM, M. Jungian Psychoterapy – A study in analytical psychology, London: Maresfield, 1986. 
GUGGENBHÜL-CRAIG, Adolf, Abuso do poder na psicoterapia, São Paulo: Paulus, 2004.
MARRACCINI, E.M. . O eu em ruína: perda e falência psíquica 2ª. ed. São Paulo: Blucher, 2021.
NEUMANN,E. A Grande Mãe, São Paulo: Cultrix, 2003.

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico Junguiano, Supervisor Clínico, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Especialista em Acupuntura Clássica Chinesa (IBEPA/FAISP). Formação em Hipnose Ericksoniana. Coordenador de Grupos de Estudos Junguianos. Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 99316-6985.

e-mail: fabriciomoraes@cepaes.com.br

Instagram @fabriciomoraes.psi

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Encontro “Amplificando Jung”: Você tem fome de quê? A Clínica Junguiana dos Transtornos Alimentares

Nos dicionários amplificar é “tornar(-se) amplo ou mais amplo; tornar(-se) maior (em tamanho, extensão, intensidade etc.); ampliar(-se)”. Na psicologia analítica a amplificação faz parte do método junguiano, onde se estabelece paralelos miticos, culturais, históricos permitindo que o paciente possa ir além de seus conteúdos pessoais, possibilitando uma compreensão mais profunda de seu processo ou sofrimento.

A proposta do Amplificando Jung é trazer temas para a discussão, possibilitando que, através da exposição do tema e a troca com os participantes, passamos amplificar nossa experiência pessoal e nosso conhecimento da psicologia analítica a cada encontro.

osso primeiro Encontro “Amplificando Jung” terá como tema “Você tem fome de quê? Transtornos alimentares na clínica junguiana”. Será um espaço para aprender, trocar e compartilhar conhecimentos e experiências sobre essa temática tão importante e contemporânea, que será apresentada pela profa. Dra. Kelly Tristão, com mediação da profa. Ms. Raissa Rodrigues.

O “Amplificando Jung” é um encontro com dois momentos especiais, no primeiro temos uma palestra que nos aproxima do tema e faz as conexões com a psicologia analítica; no segundo momento, fazemos uma roda de conversa onde os participantes podem tirar suas dúvidas e compartilhar suas experiências!

✅ Datas: 18 de maio de 2024

✅ Horário: das 09 às 11:30.

✅ Endereço: Edifício Centro Empresarial Real Forte
Rua José Farias, 160, Santa Luiza, Vitória – ES

✅ Investimento: R$ 25 reais

✅ Inscrição: https://forms.gle/9g7CuMoq9pTDDVdR6

VAGAS LIMITADAS

Com certificado de participação!

✅ Mais informações: contato@cepaes.com.br ou (27) 99926-7779.

✅ Palestrante: Dra Kelly Guimarães Tristão. Psicóloga Junguiana. Doutora em Psicologia com enfoque em Saúde Mental (UFES)
Especialista em Psicologia clínica e família, e Especialista em Psicologia Analítica.

Especialização em curso em Transtornos Alimentares: obesidade, anorexia e bulimia (PUC-RJ)

Docente de Pós Graduação e da Formação em Psicoterapia Junguiana (CEPAES). Diretora do Centro de Psicologia Analítica do ES (CEPAES). Pesquisadora na área de Saúde Mental.

✅ Debatedora: Raissa Rodrigues
Psicóloga Junguiana. Mestra em Psicologia (UFES).
Especialista em Psicologia clínica e família, e Especialista em Psicologia Analítica.
Especialização em curso em Transtornos Alimentares: obesidade, anorexia e bulimia (PUC-RJ).
Docente do Curso de Psicologia da Faesa e da Formação em Psicoterapia Junguiana (CEPAES).

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