Considerações Gerais sobre “Sintoma” na Psicologia Analítica

Em psicologia analítica chamamos de sintoma toda manifestação do inconsciente que possa perturbar a atividade da consciência, como um sonho, pensamentos, reações psicossomáticas, lapsos de fala, dentre outros. Apesar de ser mais comum relacionamos os sintomas a uma psicopatologia, os sintomas são expressões ou funções naturais que assumem um outro significado, gerando instabilidade ao Ego, que é percebida como dor, sofrimento, ansiedade, dentre outras.

Jung compreendia que o sintoma neurótico era um componente fundamental da atividade autorregulatória da psique. Ou seja, a psique produziria meios para se reorientar, os sintomas seriam um desses meios. Contudo, por ser uma atividade própria de cada indivíduo, o sintoma refletiria a existência do individuo – por mais que os sintomas pudessem ser similares, deveriam ser compreendidos individualmente, como um caso único. De tal forma que o que poderia ser um sintoma neurótico para um indivíduo, não seria para outro. Por exemplo, para um indivíduo o habito de limpeza pode ser uma característica pessoal, para outro o mesmo habito pode ser um sintoma “obsessivo-compulsivo”. A diferença estaria no prejuízo que o indivíduo tem com essa atividade, como não conseguir cumprir suas obrigações por ter de limpar ou organizar seu ambiente, ou mesmo ter problemas de relacionamento por executar exageradamente tais atividades. Segundo Jung,

(…)O sintoma é como que o broto que surge na superfície da terra, mas a planta mesma se assemelha a um extenso rizoma subterrâneo (raizame). Este rizoma é o conteúdo da neurose, a terra nutriz dos complexos, dos sintomas e dos sonhos. Temos boas razões, inclusive, para supor que os sonhos refletem com fidelidade os processos subterrâneos da psique. E se conseguirmos penetrar no rizoma, teremos alcançado, literalmente, a “raiz” da enfermidade. (JUNG, 1999. p.28)

Desta forma, Jung não enfocava o sintoma em si, na verdade, pouco ou quase nada ele escreveu sobre sintomas ou mesmo sobre a “natureza das neuroses”, isto porque, Jung não valorizava a doença, pois, era enfático ao afirmar “Prefiro compreender as pessoas a partir da saúde” (JUNG,1989, p.325), isso significava compreender o indivíduo em sua totalidade, sem reduzi-lo ao aspecto doentio. Sob certo aspecto, isso significava dignificar a vida e o sofrimento humano, pois, o sofrimento tinha significa e função e deveria ser compreendido a partir de seu objetivo, não apenas por sua causa.

Por representar a complexidade da existência humana, Jung situava a neurose (e, assim, o sintoma) associado aos processos adaptativos. Pois,

Nosso intento é compreender a vida da melhor maneira possível, tal como ela se manifesta na alma humana. A lição que tiramos desse conhecimento — e esta é minha sincera esperança — não deverá petrificar-se sob a forma de uma teoria intelectual, mas deverá tornar-se um instrumento de trabalho, que aperfeiçoará suas propriedades pela aplicação prática, de modo a poder cumprir a sua finalidade da melhor maneira possível. Esse intento consiste na adaptação mais adequada do modo de levar a vida humana; e essa adaptação ocorre em dois sentidos distintos (pois a doença é adaptação reduzida). O homem deve ser levado a adaptar-se em dois sentidos diferentes, tanto à vida exterior — família, profissão, sociedade — quanto às exigências vitais de sua própria natureza. Se houve negligência em relação a qualquer uma dessas necessidades, poderá surgir a doença. Ainda que uma pessoa, cuja falta de adaptação atinja grau mais elevado, se torne doente e por isso também acabe fracassando na vida exterior, nem por isso todos se tornam doentes por não estarem à altura das exigências da vida exterior, mas sim por não terem sabido valer-se de sua falta de adaptação externa para conseguir abrir caminho para o seu desenvolvimento pessoal e mais íntimo. Compreende-se então facilmente como devem ser diferentes as formulações psicológicas, para que possam ser aplicadas a essas diferenças diametralmente opostas. Nossa psicologia examina as razões que provocam a diminuição da capacidade de adaptar-se e assim causam a doença.(JUNG, 2006, p. 97-8)

Ao considerar a doença como uma falha no processo adaptativo (interno ou externo), Jung buscou sanar uma falha comum nas psicoterapias que tiveram como base a prática médica, marcadas por sua origem que era a ênfase na doença e foco no combate ao sintoma.

A psicoterapia também começou combatendo o sintoma, como a medicina de um modo geral.(…) Mas aí ela percebeu, que o combate ao sintoma ou – como passou a chamar-se agora – a análise dos sintomas, era incompleta, era preciso tratar o homem psíquico inteiro. (JUNG,1999b, 85-6)

Jung inaugura uma perspectiva na qual o sintoma não deve ser combatido, mas, estudado. O sintoma é a expressão da vida psíquica buscando se reorganizar, isto é, o sintoma é uma expressão da vida, da autorregulação da psique. O sintoma neurótico era uma parte viva, atuante e cheia de significado, assim, compreendido como um símbolo vivo e natural.

Ao identificar o sintoma como símbolo, Jung oferece uma mudança importante na perspectiva da compreensão da dinâmica psíquica, pois, o símbolo é por natureza integrador, integrando as instâncias psíquicas tanto psique – corpo, quanto consciente – inconsciente. O símbolo/sintoma é um terceiro elemento nessas relações, possibilitando a integração dos sistemas. A neurose é compreendida uma divisão interna, o sintoma, por sua vez, a parte perceptível da neurose, a tentativa de superar essa divisão. Desde modo, Jung assume uma postura que diferia de seus pares em sua época ao afirmar,

Não se deveria procurar saber como liquidar uma neurose, mas informar-se sobre o que ela significa, o que ela ensina, qual sua finalidade e sentido. Deveríamos aprender a ser-lhe gratos, caso contrário teremos um desencontro com ela e teremos perdido a oportunidade de conhecer quem somos. Uma neurose estará realmente “liquidada” quando tiver liquidado a falsa atitude do eu. Não é ela que é curada, mas ela que nos cura. A pessoa está doente e a doença é uma tentativa da natureza de curá-la. (JUNG, 2000, p. 160-1)

A confiança no inconsciente e na vontade da vida em viver são marcas características da compreensão junguiana acerca do adoecimento. Pois, não basta identificar ou classificar a doença/sintoma é necessário perceber a sua função na vida do indivíduo, ou melhor, o seu papel no processo de desenvolvimento, isto é, no processo de individuação. Assim, sintoma se torna indicativo importante para onde o processo deve seguir. O sofrimento neurótico, a dor, se baseia na dificuldade do indivíduo em confrontar-se com o seu próprio processo de individuação, com seu vir-a-ser. O desafio maior do doente é se colocar diante do futuro, abrindo-se ao novo, contudo, a tendência do ego é o fechamento, se apegando ao que é conhecido, supostamente seguro tentando se prender com todas as suas forças ao um passado em que ele acredita que foi “bom” ou “melhor” que o momento atual. Essa negação em relação ao fluxo da vida, que sempre aponta em direção ao futuro, fortalece o sintoma. Pois,

Na verdade, a neurose contém a psique da pessoa ou, ao menos, parte muito importante dela. (…) pois, na neurose está um pedaço ainda não desenvolvido da personalidade, parte precisa da psique sem a qual o homem está condenado a resignação, amargura e outras coisas hostis a vida. (JUNG, 2000, p. 158)

O sintoma ou neurose é de vital importância para o indivíduo e sua supressão quer por técnicas terapêuticas ou mesmo por medicações pode aliviar a dor, o sofrimento ou ansiedade e tornar o indivíduo “produtivo” mas, não restitui o sentido da vida. Haverá sempre uma sombra que rondará o individuo, a sombra da vida não vivida. De fato, a função autorregulatória da psique visa não o “ vida produtiva” como determinada em nossa sociedade capitalista, mas, a vida significativa, simbólica – notadamente marcada pela abertura ao futuro e pela segurança pautada na experiência interior (e não no ego). O sentido é delimitado pelo devir e não pelo passado.

A integração do sintoma é obtida com o fim da unilateralidade da consciência, que pode ser compreendida como uma situação onde o ego “acredita ser apenas aquilo que gostaria de saber a respeito de si mesmo” (JUNG, 2000a, p. 145), como consequência imediata, ocorre uma ampliação da consciência, possibilitando que o faça novas escolhas possibilitando o desenvolvimento psíquico que havia sido impedido. É claro, que sempre há a possibilidade do Ego, temeroso, se apegar ao medo, a segurança fictícia do passado e se recusar a abertura, o desenvolvimento e a saúde. Mesmo sob essas circunstancias a vida interior, desconectada do ego adoecido, busca e se impõe até mesmo através de símbolos e pensamentos de morte. A necessidade de ir a adiante, uma nova etapa deve ser começada, sustenta o conflito, isto é, o sintoma. O movimento que visa reintegrar a psique pode ser vivido muito sofrimento, como perda ou despedaçamento – isto, tomando como ponto de vista, o apego infantil e desesperado do Ego – pois, o Self “que incita a este movimento para diante, e, se necessário, o realiza com força inexorável”. (NEUMANN, 2000, p.228). Esse é o sofrimento é descrito muitas vezes como “crise de individuação”. O sintoma, em sua ambiguidade, sempre aponta, por um lado, para a neurose, por outro, para a individuação.

Jung, O DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE, Petrópolis: Vozes, 2006

JUNG, Civilização em Transição,Petrópolis: Vozes, 2000.

JUNG, Natureza da Psique, Petropolis: Vozes, 2000ª.

JUNG, C.G. Freud e a Psicanálise. Petrópolis: Vozes, 1989.

JUNG, C.G. Psicologia da Religião. Petrópolis: Vozes, 1999a

JUNG, C.G. A Prática da Psicoterapia. Petrópolis: Vozes, 1999b

NEUMANN, E., O Medo do Feminino – E outros ensaios sobre a psicologia feminina, São Paulo: Paulus, 2000.

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

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Acompanhamento Terapêutico na abordagem Junguiana : Símbolos e Reflexões

(Publicado no site em 05 de julho de 2013)

Kelly Guimarães Tristão

Psicologa Clĩnica Junguiana – CRP 16/1498

Mestre em Psicologia UFES

Especialista em Teoria e Prática Junguiana- UVA/RJ

Especialista em Psicologia Clĩnica e da Família -Saberes/ES

Este texto corresponde a uma parte da monografia “Acompanhamento Terapeutico a pacientes psiquiátricos na abordagem junguiana” apresentada ao Programa de Pós-Graduação — Especialização lato sensu em “Teoria e Prática Junguiana” da Universidade Veiga de Almeida – RJ, como requisito obrigatório para a obtenção do certificado, em 2008, sob a orientação da Prof. Carla Maria Portella Bezerra.

Neste fragmento apresentamos o capitulo 3 e a Conclusão.

“ 3. O SIMBOLISMO DO ANDAR

3.1. A experiência do andar

Andar é uma experiência humana por excelência. O andar se configura como um dos aspectos fundamentais no processo de “torna-se homem”. A postura ereta foi uma adaptação necessária ao bipedismo (o movimento de andar sobre os dois pés), que possibilitou que o homem “liberasse” suas mãos para outras ações, diferenciando-o mais dos demais animais.

A aquisição do andar bípede é um marco em nossa espécie, que ao longo de nossa evolução foi sendo notada pelas migrações que levaram nossa espécie a se espalhar por todo mundo.

O andar bípede imprimiu em nossa constituição essa tendência ao movimento ereto, essa característica é percebida como o reflexo de marcha na criança. Talvez pudéssemos dizer que a experiência do andar

[…] arquétipos que poderíamos chamar de arquétipos de transformação. Estes não são personalidades, mas sim situações típicas, lugares, meios, caminhos, etc, simbolizando cada qual um tipo de transformação. Tal como as personalidades, estes arquétipos também são símbolos verdadeiros e genuínos que não podemos interpretar exaustivamente, nem como σηµεϊα (sinais), nem como alegorias. São símbolos genuínos na medida em que eles são ambíguos, cheios de pressentimentos e, em última análise, inesgotáveis (JUNG, 2002, p. 47).

Esses arquétipos de transformação possibilitam a passagem da energia de uma forma de manifestação para a outra. Isto é, esses arquetípicos possibilitam que a energia psíquica retida em um aspecto da vida psíquica seja redistribuída, favorecendo a mudança de atitude da consciência. Tomemos como exemplo um indivíduo com fixação por trabalho ou dinheiro; em momentos como nascimentos, morte ou mesmo numa conversão religiosa pode ser constelado nessa pessoa tais arquétipos de transformação, possibilitando que esse indivíduo tenha sua energia deslocada de modo que possa equilibrar seu foco de atenção, isto é, dividindo seu interesse entre o trabalho, família ou espiritualidade.

A constelação ou evocação dos arquétipos não ocorre de forma espontânea por si mesma,

[…] a evocação dos arquétipos e a correlativa liberação de desenvolvimentos psíquicos latentes não são processos apenas intrapsíquicos; eles ocorrem num campo arquetípico que abrange o dentro e o fora, e que inclui sempre, e pressupõe, um estímulo interior – um fator proveniente do mundo. […] Quando dizemos que um arquétipo é “ligado” por evocação, queremos dizer que a aptidão arquetípica da psique precisa ser liberada por um fator correspondente no mundo (NEUMANN, 1991, p.68).

A evocação dos arquétipos ocorre pela correspondência existente entre o arquétipo e o fenômeno que o constelará. Dessa forma, sua ativação se dá por um elemento que é familiar, isto é, que lhe é próprio. Por exemplo, o arquétipo materno é ativado ou evocado pela presença de uma criança ou de uma atitude infantil. A imagem de criança ou da atitude infantil são elementos presentes em toda história humana – por mais que o conceito de infância seja um fenômeno cultural, a criança em si subjaz a todo processo cultural. O mundo natural é o mundo dos arquétipos, é nele que os arquétipos encontram sua atualização e se mantém vivos, pois as mesmas situações que levaram à formação dos arquétipos estão presentes e se impõem ao homem contemporâneo. A forma de manifestação mudou, mas sua essência é a mesma.

Os arquétipos, de forma geral, não são ativados isoladamente, mas possuem uma certa inter-relação e muitas vezes são constelados como um sistema. Isto é, quando frente a uma situação arquetípica há uma tendência à constelação de arquétipos correspondentes. Assim, numa dada situação, podem ser ativados um ou mais arquétipos que possuam certa identidade, a tal ponto de se ativarem mutuamente formando um sistema arquetípico.

Guggenbuhl-Craig em seu livro Abuso do Poder, aponta para o fato de os arquétipos, mesmo guardando uma identidade que nos permite, de forma geral, compreende-los isoladamente em sua unidade, serem na verdade pólos de um mesmo arquétipo. Segundo ele,

Talvez não devêssemos falar de um arquétipo materno, paterno ou do filho, mas de um arquétipo mãe-filho ou pai-filho. Levando a diante esse raciocínio, eu sugeriria que não há um arquétipo especial de terapeuta ou paciente. Ambos são aspectos da mesma coisa. Quando uma pessoa fica doente o arquétipo de terapeuta-paciente se constela. O enfermo procura um terapeuta exterior, mas ao mesmo tempo se constela o terapeuta intrapsíquico (GUGGENBUHL-CRAIG, 1979, p. 98).

Dessa forma, Guggenbühl-Craig aponta para a necessidade de compreendermos os arquétipos em seu eixo de constelação, não apenas em sua polaridade aparente. Uma diferenciação possível que poderíamos fazer entre o sistema arquetípico que nos referimos e a proposta de Guggenbuhl-Craig, é de que a compreensão deste autor, que utilizaremos mais adiante, contempla sobretudo o que Jung chamou de “arquétipos personalidade”, e ao que Neumann também chama de “arquétipos humanos” (NEUMANN, 1991, p.68-70) que segundo Neumann, tem como fator constelador outro ser humano, ao passo que os arquétipos de transformação estão intimamente ligados ao mundo exterior.

Essa diferenciação é necessária para compreendermos que a dinâmica arquetípica constelada no acompanhamento terapêutico compreende tanto os arquétipos de transformação, relacionados ao movimento do andar e do encontro com o mundo, quanto como os arquétipos humanos constelados pela relação com o acompanhante terapêutico. São dois processos complementares que se desenrolam durante o acompanhamento, a relação Eu-Mundo e Eu-Outro.

A dinâmica do arquétipo do andar é melhor compreendida quando podemos pensa-los relacionados a outros arquétipos, como por exemplo, o do caminho. Como imagem arquetípica do caminho, podemos pensar na estrada que se perde no horizonte, na rua, nas trilhas nas florestas, nos trilhos do trem. Esse arquétipo contempla, em sua essência, o “processo”, o meio necessário para a transformação. Seja numa psicoterapia, numa experiência religiosa o caminho se manifesta como o processo que está em curso ou que deve ser seguido. Dependendo como essa imagem arquetípica constele, seja no sonho ou na imaginação ativa, poderemos ter uma noção do processo que se desenvolve no indivíduo. Por exemplo, o caminho numa montanha ou que leva a uma montanha, pode estar vinculado a um processo de desenvolvimento da espiritualidade; o caminho que segue por florestas ou por planícies pode estar relacionado com uma jornada interior; quando pensamos na imagem do caminho que leva a povoados ou cidades, ou mesmo a rua podemos compreender como a necessidade do encontro com o outro, de socialização.

O andar enquanto imagem de transformação é a possibilidade de movimento da energia psíquica de forma ordenada. O sistema arquetípico constelado andar-caminho-guia possibilita o estabelecimento de laços afetivos mais saudáveis. O processo gerado pelo andar no Acompanhamento Terapêutico é um símbolo importante para o paciente psicótico lidar com o desconhecido – isto é, inconsciente – tanto interno quanto externo. Por isso que os antigos alquimistas diziam que Habentibus Symbolum facilis est transitus (Havendo o símbolo, a travessia é fácil)

3.2. O simbolismo do andar junto

Todo processo terapêutico é um acompanhamento, um andar junto. É interessante pensar que a palavra terapia, vem do grego therapéia, que pode significa assistir, cuidar, tratar, em outras palavras, estar junto. O Acompanhamento Terapêutico torna literal o “acompanhar” o cliente, em especial, possibilitando que ele enfrente o mundo de forma positiva.

É pelos espaços do cotidiano do acompanhado, que este e o acompanhante vão tecendo, produzindo em conjunto, revendo limitações, fortalecendo vínculos e reavaliando o pessimismo acerca da doença. O fato de ir para a rua implica em se defrontar com as questões a cerca da loucura e suas implicações socioculturais.

Estar na vida, […] passear no parque, enfim, circular pelo mundo são anseios manifestos quando o paciente começa a perder a paciência, e o que se torna patente é o quanto a sociedade se acha pouco preparada para receber o indivíduo que percorreu os lugares insólitos da loucura (MOTTA, 1997, p.33).

O acompanhar, andar junto, o estar com o paciente é o processo de favorecer o desenvolvimento do indivíduo. O terapeuta não é o responsável, mas ele protege, acolhe e estimula o desenvolvimento do individuo. Muitas vezes, no senso comum, usa-se o termo “cura” para representar o processo de desenvolvimento psíquico ou superação de uma neurose. Nesse sentido, o terapeuta não cura, mas, “[…] ele ativa o processo de cura no inconsciente do paciente” (STEINBERG, 1990, p. 32). No caso do paciente psicótico, não falamos de cura, mas de uma adaptação ao seu universo que compreende tanto o mundo interior quanto exterior, nesses casos o terapeuta é aquele que ajuda a superar a desordem, a restabelecer o equilíbrio psíquico por mais tênue que seja, para que assim esse indivíduo tenha qualidade de vida.

O acompanhante terapêutico está junto com o paciente, experimentando aquelas situações em que este costuma se sentir coagido, testado nos próprios limites, e dessa proximidade nasce a possibilidade de reagir de maneira diferente, de se impor como sujeito da própria história.

Assim como pensamos no andar como um processo arquetípico, devemos também considerar o encontro ou o “andar junto” como um processo arquetípico. Conforme dissemos acima, os arquétipos humanos dependem da relação humana para serem constelados. A relação humana é fundamental desde os primeiros momentos de vida do indivíduo que vão ser importantes na estruturação do Ego. É no encontro da mãe com a criança que o arquétipo do Self se constela (a partir do Self corporal) -, possibilitando o desenvolvimento psíquico. As referencias arquetípicas necessárias ao desenvolvimento do ego estão vinculadas aos arquétipos humanos, como o materno, paterno, fratria. “O ser humano não-relacionado carece de totalidade, pois ele só pode obter totalidade através da alma, e a alma não pode existir sem o seu outro lado, que é sempre encontrado no outro”. (JUNG apud STEINBERG, 1990, p. 15)

O andar junto ou acompanhar o cliente é uma reatualização do processo de constituição do Ego. A totalidade psíquica que se constela no encontro vai possibilitar uma reorganização psíquica. Assim, como o Self materno propicia a constelação do Self da criança, possibilitando o desenvolvimento do Ego. A relação terapêutica possibilita uma reorganização do ego, por poder constelar em certes momentos as mesmas energias arquetípicas que formaram e estruturam o Ego. No caso da neurose, essas energias se manifestam mais claramente nos símbolosconstelados na transferência. Na psicose a fragilidade do Ego faz com que esse processo seja sempre parcial, a transferência é uma tentativa de estabelecer contato com o mundo exterior e resistir ao impulso do inconsciente.

Todo encontro humano pode ser compreendido pela esfera arquetípica. Devemos, assim, nos perguntar “em qual o acompanhante terapêutico reviveria?” ou “sobre qual mito repousaria a esta atividade terapêutica?” Encontramos as principais características que nos auxiliam a compreender a função terapêutica do acompanhante terapêutico mito de Chiron.

3.3. Por que falar de mito?

Para Eliade (1992) os mitos relatam não somente a origem do mundo, mas também acontecimentos primeiros que marcam a transformação do homem naquilo que ele é. O mito é, pois, “[…] uma realidade cultural extremamente complexa, que pode ser abordada e interpretada em perspectivas múltiplas e complementares” (1992, p. 34), que trata uma idéia sagrada que teve um lugar no “tempo fabuloso dos começos”.

As histórias arquetípicas, segundo Jung, se originam nas experiências individuais – em sua maioria numinosas – a partir da constelação de algum conteúdo inconsciente em sonhos ou alucinações. Por experiências Numinosas (do latim numem – deus) entendemos experiência “provocadas pela revelação de um aspecto do poder divino” (ELIADE, 1992. p. 24).

Os mitos representam uma forma simples de manifestação arquetípica, e têm um grande valor na busca científica do inconsciente, visto que fornecem pistas claras que tornam mais bem compreensível os processos e estruturas básicas da psique coletiva. Os arquétipos, segundo Jung, não poderiam ser traduzidos em conteúdos teóricos, e para entendê-los melhor, seria necessário um estudo comparativo das imagens arquetípicas que emergem do inconsciente coletivo, e suas associações tomando por base as experiências psicológicas.

Os significados dos mitos, bem como o dos contos de fada estariam contidos em uma “[…] totalidade dos temas que ligam o fio da história” (VON FRANZ, 1990, p. 10); contudo, eles não podem se expressar por si mesmo, assim, um evento conceituado pode se manifestar através dos símbolos e ser “decifrado” a partir deles.

Os mitos procuram representar somente um fato psíquico, que por si só, é tão complexo e proporcionam reflexos diversos de fases da experiência humana. O arquétipo seria um impulso psíquico específico que produziria efeitos em uma direção apenas, ao mesmo tempo em que abarcaria várias direções. Assim, é preciso “escavar” a imagem arquetípica até chegar a uma certa clareza, para isso, há que se aproximar ao máximo dessa especificidade.

Jung procurava apontar o valor energético relacionado às imagens arquetípicas; segundo Von Franz (1990, p. 19):

[…] Uma imagem arquetípica não é somente um pensamento padrão (como um pensamento padrão ela está interligada com todos os outros pensamentos); mas ela é, também, uma experiência emocional – a experiência emocional de um individuo. Só se essa imagem arquetípica tiver um valor emocional e afetivo para o indivíduo ela poderá ter vida e significação.

O mito é um integrante de valor à civilização humana; é uma realidade viva,”[…] não é, absolutamente, uma teoria abstrata ou uma fantasia artística, mas uma verdadeira codificação da religião primitiva e da sabedoria pratica” (MALINOW SKI apud BRANDÃO, 2004b, p. 41)

Assim, pensando a psicose como um episódio onde símbolos deveriam ser integrados àquela individualidade, pode-se pensar um paralelo do Acompanhamento Terapêutico como uma tentativa de reorganização da psique, à mitologia a partir do mito grego de Chirón, o “curador ferido” e mestre-guia de muitos heróis O Mito de Chíron.

3.4. O Mito de Chíron

Chíron, segundo Penna (2005), se apresenta sempre como um personagem secundário nas histórias das figuras mais ilustres. Nos textos de Brandão, por exemplo, Chíron é citado várias vezes, sempre acompanhando divindades e heróis.

O nome Chíron, possivelmente, tem sua origem no vocábulo grego Kheíron, uma forma abreviada de Kheirurgós (cirurgião), que quer dizer aquele que trabalha ou age com as próprias mãos. (BRANDÃO, 2000).

Para a mitologia grega, Chíron era filho de Crono e Fílira, era, assim, um imortal, meio-irmão de Zeus. Em uma das versões para seu nascimento, apontada por Brandão (2000), Crono, temendo os ciúmes de Reia, se transformou em cavalo para possuir Filira, assim nasceu o centauro Chiron, numa combinação de cavalo com um corpo de homem.

Apesar de ser um centauro, Chíron era diferente dos demais que, exceto por Folo, eram “violentos, sanguinários e luxuriosos, habitavam montanhas e florestas, alimentando-se de carne crua” (BRANDÃO, 1991, p. 199). Devido, sua sensibilidade e relação amistosa com os heróis e com os deuses, Chíron foi conhecido como “[…] o mais justo dos centauros” (BRANDÃO, 2004b, p. 26).

É importante notarmos que a peculiaridade de sua natureza, era na verdade tripla. “Esta tripla natureza (animal-humana-divina) simboliza a unidade dos três elementos, representando a força arquetípica que une e integra as polaridades” (PENNA, 2005, p. 159).

Tudo em Chíron, o médico divino e ferido […] o faz parecer a mais contraditória figura de toda a mitologia grega. Apesar de ser um deus grego, sofre de uma ferida incurável. Além disso, a sua figura combina o aspecto animal com o apolíneo, pois apesar do seu corpo de cavalo – configuração pela qual são conhecidos os centauros, criaturas da natureza, fecundos e destrutivos – é ele quem instrui os heróis (KERÉNYl apud GROESBECK, 1983, p. 74).

Chíron foi o tutor de vários heróis, dentre eles Jasão, Hercules, Castor, Pólux, Asclépio e Aquiles, ensinando não apenas métodos de sobrevivência, mas valores culturais e éticos. Segundo Brandão (2004b) sua função de maior nobreza e indispensável sobremaneira aos heróis era a de permitir passar pelos ritos iniciáticos, outorgando-lhes “[…] imprescindível indumentária espiritual, para que pudessem enfrentar a todos e quaisquer monstros.” (BRANDÃO, 2004, p. 27) – internos e externos. Sobretudo, sua função era conduzir os heróis ao destino deles, a encontrarem sua verdadeira potência.

Das habilidades de Chíron, a de curar é a mais comentada e conhecia, tendo em vista seu importante pupilo Asclépio, deus da medicina. Contudo, são esquecidos atributos que foram importantes na formação de outros heróis. As artes de combate, estratégia, diplomacia, música certamente faziam parte dos conhecimentos que possuía e que passou para seus alunos. Por outro lado, ser compreendidas a paciência, persistência, coragem, justiça que são observadas nas ações dos heróis.

Chíron esteve sempre associado aos heróis, talvez poderíamos compreende-lo também como um herói.

Etimológicamente, ηρ ως (héros) talvez pudesse se aproximar do indo-europeu servā, da raiz ser-, de que provém o avéstico haurvaiti, “ele guarda” e do latim seruāvre, “conservar, defender, guardar, velar sobre, ser útil” donde herói seria ‘o guardião, o defensor, o que nasceu para servir’ (BRANDÃO, 2005, p. 15).

Chíron é o melhor modelo mítico de herói, isto é, daquele que nasceu para servir. Pois, seu trabalho é abrir os caminhos para as gerações futuras. Encaminhar cada um de forma que pudessem encontrar o seu destino de forma digna. A história de Chíron possui um aspecto trágico. Segundo a narrativa mítica, quando Hércules ia em busca do javali Erimanto, ele passou pela região de Foloe, onde vivia o Centauro Folo, que o convidou para se hospedar em sua residência. Após a refeição, Heracles, solicitou vinho a Folo que o concedeu,

[…] Os centauros, sentindo o odor do licor de Baco, armados de rochedos, árvores e troncos avançaram contra Folo e seu hóspede. Na refrega, Heracles matou dez dos irmãos de seu hospedeiro e perseguiu os demais até o cabo Mália, onde o Centuro Élato, tendo se refugiado junto Quirão, foi ferido por uma flecha envenenada de Heracles, que, sem desejar, atingiu igualmente o grande educador dos heróis, provocando-lhe um ferimento incurável (BRANDÃO, 1991, p.530).

No mito de Chíron, este sofre dores dilacerantes que o leva a trocar sua imortalidade por Prometeu, que estava preso no rochedo, por meio desta troca, Chíron pode enfim morrer. Zeus, compadecido com seu meio-irmão, o imortaliza nas estrelas, formando a constelação de Sagitário.

A ferida incurável do mestre das curas é um dos temas mais comentados do mito de Chíron, por constelar um tema arquetípico “a ferida divina” no “curador divino”. O arquétipo do “curador-ferido” é um componente fundamental para o processo terapêutico. Que durante o processo terapêutico se constela tanto no cliente quanto no terapeuta.

Guggenbühl-Craig sugere que existe um arquétipo”médico/paciente” que é ativado todas as vezes que uma pessoa fica doente. O doente procura um médico ou doutor externo, mas o fator intra-psíquico, ou “fator curador”, ou ainda o “médico interior” é também mobilizado. Mesmo o médico externo sendo muito competente, as feridas e doenças não poderão ser curadas se não houver a ação do ‘médico interior’ […] (Basta lembrar o grande número de pessoas que ainda morre de pneumonia, muito embora a pneumonia seja uma doença curável.) É freqüente ouvirmos explicações do tipo: “sua resistência interna cedeu” ou “ ele não estava querendo melhorar”. De um ponto de vista arquetípico, era o médico interior que não estava funcionando (GROESBECK, 1983 p. 77).

No cliente a constelação desse arquétipo é caracterizada pela tendência a reordenação psíquica ou uma predisposição psicossomática ao procedimento terapêutico. Um procedimento terapêutico é a busca pelo “fator curador” inerente ao indivíduo. Contudo, este efeito do “fator curador” ou esse “médico interior” depende da disposição da consciência na relação com o inconsciente. E, talvez seja esta a grande questão das terapias: como possibilitar que a consciência tenha um contato transformador com o do pólo curador deste arquétipo constelado no inconsciente.

Podemos compreender a constelação deste arquétipo como o movimento de reorganização inconsciente para suprir as deficiências da relação com a consciência, podendo ser acompanhado pela constelação de outros arquétipos, conforme já discutimos.

No terapeuta essa constelação tende a se manifestar por uma disposição inconsciente de perceber o cliente, por meio das “feridas” do terapeuta. É uma forma de abertura para um encontro em cliente e terapeuta, é por onde se instala as relações de contratransferência. Por outro lado, esse arquétipo está ligado a faculdade de mestria, a paciência e atenção que o terapeuta deve ter ao acompanhar o desenvolvimento do cliente, de modo a não prejudicar desenvolvimento do processo mesmo.

3.5. O Tema do curador-ferido e as Relações com o Acompanhamento Terapêutico

O tema do curador ferido é importante para pensar a relação do acompanhante terapêutico com o processo do paciente. A mestria conforme comentamos no mito de Chíron é um elemento fundamental, pois é justamente o que é exigido do acompanhante, isto é, a paciência, o cuidado, o estímulo e o encorajamento do paciente para que este possa encontrar o seu lugar. Por outro lado, a ferida pode se situar tanto na sua história pessoal quanto na ferida arquetípica, a ferida do curador que está sempre ao lado, e não pode ser o agente da cura, pois a cura é um processo pessoal.

Essa ferida da impossibilidade é uma ferida arquetípica no narcisismo natural de cada um de nós. O terapeuta apenas conduz, estimula e testemunha o processo do cliente. Se o terapeuta se identifica com a “cura do cliente” o terapeuta se torna vitima de seu próprio narcisismo. A ferida do curador é a marca da humildade necessária ao encontro criativo. A ferida é a possibilidade de cura, tanto para o cliente quanto do terapeuta.

Curar, em alemão vem de Heilen, cuja raiz provém de Heilag – total, completo (GUGGENBUHL-CRAIG, 1983, p. 98). A palavra Saúde, tem a mesma origem, por tanto, quando falamos de cura para nossos pacientes, falamos de se tornarem completos. Segundo Jung (1999b) cura quer dizer transformação, cuja proposta da psicologia analítica é a transformação da personalidade como um todo, possibilitando que o paciente se torne aquilo que de fato é.

Penna aponta que o papel do analista junguiano é “[…] fazer junto com o paciente, não se trata de fazer para ou fazer pelo paciente” (2005, p. 152). Desta forma, cabe ao terapeuta estar junto com o paciente, envolvendo-se integralmente na tarefa de compreensão de suas feridas, buscando, assim, possibilidades de transformação.

A transformação que propomos acontece a partir da reunião da polaridade oposta à que foi colocada em ênfase, reativando a possibilidades de promoção de cura encontradas apagadas na psique do paciente.

Para que o cliente restabeleça essa experiência integral da imagem arquetípica do curador, é preciso que o terapeuta mostre-lhe o caminho. Mesmo se o médico externo for muito competente, as doenças e feridas só poderão ser curadas mediante a ação do medico interno. Assim, não é o terapeuta quem cura o paciente, mas a relação de vínculo possibilitará que seja ativado neste o processo de cura; não significa que as feridas serão fechadas, mas que o individuo terá o ego fortalecido a fim de aprender a conviver com as cicatrizes deixadas, se responsabilizando pelo próprio cuidado, sem colocar a culpa nas outras pessoas.

No que tange à clínica do acompanhamento terapêutico, é preciso que o paciente em sofrimento psicológico aprenda a lidar com suas feridas, e isso se dará a partir do contato com o mundo externo, que outrora fora lhe “arrancado”.

É importante notar outros pontos de intercessão do mito com essa clínica; pois o profissional de Acompanhamento Terapêutico, assim como Chíron, atua sempre como coadjuvante na construção da história do acompanhado; sendo colocado, por diversas vezes, na função de mestria a fim de permitir que o paciente encontre o próprio destino. Através da re-conexão dos aspectos inconscientes e o Ego – tal como a figura de Chíron, homem-cavalo.

CONCLUSÃO

A clínica do Acompanhamento Terapêutico é um importante avanço no tratamento de pacientes psiquiátricos por possibilitar um reencontro com a vida comum e a dignidade. O acompanhante terapêutico fornece ao paciente uma referência corporal e psíquica possibilitando ao mesmo tempo interagir com espaços que lhe foram interditados seja pela doença, seja pela incompreensão e preconceito que a sociedade ainda apresenta em relação ao paciente psiquiátrico.

O Acompanhamento Terapêutico é, sobretudo, uma busca pelo potencial criativo que cada indivíduo possui de recriar suas relações com o meio e consigo mesmo. A doença mental se impõe como um problema em nossa sociedade, justamente, por nossa incapacidade de olhar através dela e perceber que a doença mental é um estado do ser, uma forma diferente de se fazer no mundo.

C.G. Jung foi um dos primeiros psiquiatras a olhar através dos invólucros pessoais da doença mental. Em seus anos de atividade no Hospital Burgholzli, Jung teve contato com o universo de imagens que os pacientes lhe apresentavam por meios de delírios e sonhos. A fragilidade egóica desses pacientes impedia que o contato com essas imagens fosse restaurador. O contato com a psicose foi um ingrediente fundamental para o desenvolvimento posterior da Psicologia Analítica, pois foi justamente olhando através da psicose (e não para a psicose) que Jung percebeu que há uma dinâmica inconsciente que se desenrola para além do caos e da fragilidade pessoal.

A psicologia junguiana com sua perspectiva energética nos permite compreender a dinâmica do adoecimento psíquico não apenas por sua causa, mas por sua finalidade, isto é, o sentido do sintoma e do delírio. Para Jung, o adoecimento é um processo que visa restabelecer a saúde psíquica. No caso da neurose o sintoma busca reorientar o ego.

No caso do paciente psicótico, existe uma energia muito forte no âmbito do inconsciente, provocando uma rigidez na dinâmica energética do psiquismo, levando a invasão da consciência. Nesse processo, o ego é tomado pelo inconsciente, tornando-o cada vez mais frágil. Com essa fragilidade, o ego se torna inseguro, tanto no que diz respeito aos conteúdos conscientes quanto inconscientes. Assim, não sendo possível agir diretamente na consciência, a prática com psicóticos indica acessar o inconsciente através de meios objetivos, como o andar junto no caso do Acompanhamento Terapêutico. Lidando com a realidade, o paciente traz pra fora o que está preso no inconsciente, diminuindo sua intensidade e permitindo que a dinâmica psíquica se restabeleça. O Acompanhamento Terapêutico é um importante meio para propiciar a aderência do ego à realidade, visto que, o sujeito passando a sentir-se parte do meio, e interferindo neste, pode atingir uma estabilidade maior, diminuindo a necessidade e freqüência de internações.

Por outro lado, a psicologia junguiana com o conceito de arquétipo nos oferece um modelo de compreensão do psiquismo que nos leva para além da esfera pessoal. Os arquétipos, padrões temáticos de organização psíquica, são estruturas psíquicas coletivas que se fazem apresentar como um potencial criativo e saudável, mas no caso de pacientes psicóticos é necessário um suporte para que a consciência possa se valer positivamente dessa possibilidade.

Ao pensarmos a referência arquetípica para o processo de Acompanhamento Terapêutico, podemos observar que o caminhar como forma de reorientação psíquica está presente no homem desde temos imemoriais até os dias de hoje, como as romarias e peregrinações. Isso é um fato importante pois os arquétipos são ativados por analogia ou correspondência, isto é, é necessário que haja uma situação correspondente ao arquétipo para ativa-lo, assim podemos considerar que o processo de Acompanhamento Terapêutico, o andar junto, é um processo que ecoa no inconsciente possibilitando uma passagem de energia para a consciência de forma sadia, por estar vinculado a objetos reais.

Do mesmo modo, o Acompanhamento Terapêutico possui um respaldo no elemento arquetípico; pois o ato de caminhar vai favorecer a aderência do indivíduo, por conta da simbolização do Acompanhamento Terapêutico. Tomamos como referência mítica o personagem centauro Chíron. Este frequentemente associado com o padrão arquetípica do terapeuta, também corresponde à figura do acompanhante, pois Chíron não era apenas um médico (curador), mas um mestre que guiava seus discípulos (os heróis gregos) por diferentes artes, dando-lhes segurança e conhecimento para que pudessem perseguir o seu destino.

Assim, a concepção de Jung acerca da psique possibilita um olhar sadio, objetivando não a doença, mas a pessoa que está doente. Os estranhos conteúdos e delírios e movimentos são, muitas vezes, reduzidos e rotulados de “loucura” como sendo um processo desprovido de sentido. Para o olhar junguiano, essa loucura é uma expressão legitima da psique, isto é, da própria vida.

A palavra loucura em alemão deriva de Wahn, que possui a mesma raiz que Wähnen, que significa “supor” ou “fantasiar”. Assim, loucura seria a palavra alemã para fantasia. Segundo o analista junguiano Heinrich Fierz, para a sociedade, reconhecer a loucura significa conhecer a fantasia, a fantasia criativa.

Significaria que o encontro com a fantasia criativa não é incumbência de uns poucos escolhidos, mas sim que todos teriam essa possibilidade e responsabilidade. Sendo esse o caso, seria ideal que não descartássemos irrefletida e negligenciada algo como absurdo, simplesmente porque não o compreendemos. A aceitação da loucura pela sociedade pode nos ajudar a enxergar o elemento criativo na comunidade e a permitir que ele se desenvolva (FIERZ, 1977, p. 231).

A “empreitada” de acompanhar esse indivíduo em sofrimento a estar atravessando o período difícil que vive, ultrapassa o reconhecimento do quadro psiquiátrico por si só. Trata-se, sobretudo, de trabalhar em real parceria com esse sujeito, para que este reconheça que seu estado encerra um certo significado e, por isso, seria imprescindível ser aceito como parte relevante de sua vida, para então poder buscar as metas necessárias para que seu caminho prossiga. Entretanto, de que forma isso se dará, poderá ser decidido à luz dos desdobramentos posteriores. […] toda a vida da pessoa atinge um ponto crítico. É preciso entender que Uma transformação fundamental da personalidade está sendo preparada. (FIERZ,1977,p. 239)

REFERÊNCIAS

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

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Considerações sobre o “Eficaz”no texto “Os objetivos da Psicoterapia” de C.G.Jung

(18 de maio de 2013)

Recentemente, estávamos discutindo no Grupo Aion[1], o texto “Os Objetivos da Psicoterapia” de Jung. É um texto realmente interessante para quem quer conhecer um pouco mais acerca da psicoterapia junguiana. Nesse texto Jung apresenta uma noção importante para a prática da psicoterapia que é explicitada no termo “eficaz”. Apesar de aparecer poucas vezes no texto, acredito que valha a pena pensarmos a psicoterapia com a perspectiva desse termo.

Jung afirma que

“Não é preciso provar que minha maneira de interpretar o sonho está correta. Não teria sentido. Mas, o que é preciso fazer é procurar, junto com o paciente, o fator eficaz – quase ia dizendo, a coisa verdadeira”(JUNG, 1999, p. 42, §94)

Um tema recorrente aos textos de Jung acerca da prática da psicoterapia é a sua insistência em afirmar a impossibilidade de “determinar” ou “delimitar” o “método junguiano” propriamente dito, no máximo, poderia-se indicar seus fundamentos. Nesse fragmento, Jung esclarece um ponto fundamental (e que justifica a impossibilidade de estabelecer um “método”), sua prática não visa justificar uma teoria ou método mas, buscar o “fator eficaz” ou a “coisa verdadeira”.

Poderíamos perguntar: Mas, “eficaz” em que? Primeiramente, devemos lembrar que a psicologia junguiana compreende que o sofrimento psíquico está relacionado a uma unilateralidade, isto é, um direcionamento equivocado, excessivo da atitude da consciência que gera prejuízo ao individuo. Assim, quando se fala em “fator eficaz” Jung se refere ao fator que tenha como efeito uma renovação ou transformação da atitude da consciência. Mas, como encontrar esse fator eficaz? Jung afirma que

“O que viso é produzir algo de eficaz, é um produzir um estado psíquico, em que meu paciente comece a fazer experiências com seu ser, um ser em que nada mais é definitivo nem irremediavelmente petrificado; é produzir um estado de fluidez, de transformação e de vir a ser.” (Jung, 1999, p. 43-4§99)

É interessante observarmos que o “fator eficaz” relaciona-se com o ”fazer” do paciente. Quando o paciente se permite fazer novas “experiências” com seu ser, ele se abre para o futuro, para as possibilidades de “transformação e vir a ser”. Essa possibilidade de abertura, está relacionado com os “deveres de casa” sugeridos pelos terapeutas junguianos aos pacientes.

A ”abertura a novas experiências” é sem dúvida um dos maiores desafios que encontramos no consultório, pois, muitas vezes, o paciente está tão fixado nas experiências passadas, que não percebe que a mudança em sua vida, que a melhoria seu estado psíquico, está na mudança de atitude e de ações realizadas no presente. Não se pode mudar o passado, mas, pode-se fazer um futuro muito melhor.

Devemos considerar que a busca pelo “fator eficaz”, não se aplica apenas ao paciente, mas, também ao terapeuta. De imediato, podemos identificar que escolha de uma abordagem já é o indicativo que esta se apresenta para o terapeuta como um “fator eficaz”. Na psicologia junguiana a possibilidade de buscar este “eficaz” se faz perceber pluralidade de técnicas que se colocam disponíveis aos terapeutas junguianos.

Devemos notar que as técnicas expressam profundamente o “fator eficaz” de cada terapeuta. Algumas se tornaram mais difundidas como a “analise de sonhos”, a “imaginação ativa”, o desenho e pintura – que são defendidos pelo próprio Jung como técnicas importantes para se dialogar com o inconsciente. De fato, quando lemos biografias de Jung, assim como o livro vermelho, podemos entender o quanto essas técnicas eram de fato “eficazes” pessoalmente para ele.

Do mesmo modo, outras técnicas expressam o fator eficaz de cada terapeuta, como o sandplay (ou caixa de areia) que foi desenvolvido por Dora Kalff, a calatonia e técnicas corporais desenvolvidas por Petho Sándor, as várias possibilidades de oficinas terapêuticas desenvolvidas por Nise da Silveira. O “fator eficaz” se revela quando nos permitimos a experiência, os autores, acima citados, deram nova forma a possibilidades que já haviam sido utilizadas ao longo da história humana – e ainda continuam eficazes.

No belíssimo trabalho “Jung & Sándor”, realizado por ex-alunas de Sándor, encontramos que

Quando perguntado sobre como elaborou tais técnicas, o professor Sándor, sorrindo, dizia: “Isso é muito antigo, do patrimônio da humanidade.” Ele inspirou-se nos recursos e rituais usados pela humanidade para sua sobrevivência e evolução, adaptando-os ao momento atual. (HORTA et al.. 2012, p.16)

A psique de fato nos oferece uma infinidade de possibilidades “eficazes”, a questão é adapta-las ao momento atual. A afirmação de Sándor encontra eco na próxima menção ao fator eficaz realizada por Jung, que nos diz,

“De fato, a regra que sempre sigo é nunca ir além do significado contido no fator eficaz; esforço-me apenas para que o paciente tome, o quanto possível, consciência desse significado, a fim de que ele perceba que o mesmo também tem uma dimensão que ultrapassa o nível pessoal. ” (Jung, 1999, p. 43-4 §99)

Como o “fator eficaz” é um símbolo vivo, racionalizá-lo, fixar um exclusivo significado ou mesmo retira-lo da experiência emocional, significaria destrui-lo. A experiência do símbolo possui aponta tanto para a realidade individual quanto a coletiva. A dimensão coletiva é fundamental por enraizar o individuo nos mistérios da humanidade, na matriz criadora de símbolos, possibilitando a abertura e confiança para que o individuo possa enfrentar a si mesmo e ao mundo.

No Grupo Aion, fizemos algumas considerações interessantes, pois, acabamos por assumir uma postura “otimista”, contudo, em nenhum momento afirmamos que esse processo é rápido, fácil, simples ou indolor. Muito pelo contrario, pode ser longo, difícil, e dolorso. Mas, a cada passo dado, a segurança e autonomia geradas possibilitam o desenvolvimento posterior.

Obviamente, o percurso terapêutico de cada um é singular, devendo ser observado e respeitado o desenvolvimento de cada um. Em seu texto, Jung aponta que

“Enquanto o paciente necessitar a minha ajuda para descobrir os momentos eficazes dos seus sonhos, eu tiver que me esforçar-me por mostrar-lhe o sentido geral de seus símbolos, ele ainda não saiu do estado psíquico infantil.” (Jung, 1999, p. 44 §101)

Os recursos técnicos, a sugestão de atividades visam propiciar que o paciente saia desse estado de dependência, isto é, este estado infantil. Deve-se notar que nesse estado infantil a dependência não é apenas do terapeuta, pois, muitas vezes, ele estabelece relações inconscientes de submissão com outros, a repetição desse padrão na transferência ocorre como uma tentativa de reparação ou superação desse problema no amadurecimento. Na transferência o inconsciente projeta no terapeuta a confiança (e com a ela a capacidade de mudança) que não foi possível integrar na consciência. Cabe ao terapeuta, possibilitar que esta confiança seja integrada pelo individuo.

Jung apontou como o caminho para o amadurecimento ou desenvolvimento psíquico a atividade criativa. Quando o paciente se permite fazer experiências consigo mesmo, quer pela pintura, pela escrita, por suas ações, enfim,

Nessa fase, passa a ser ativo. Passa a representar coisas que antes só via passivamente e dessa maneira elas se transformam em um ato seu. Não se limita a falar do assunto. Também o executa (…) Sua atividade também vai liberta-lo progressivamente da dependência doentia: com isso, vai adquirindo firmeza interior e renovando sua autoconfiança. Estas ultimas conquistas, por sua vez, vão reverter em novos benefícios para a vida social do paciente. Pois uma pessoa interiormente segura e autoconfiante está mais bem preparada para suas funções sociais do que alguém que não está bem com o seu inconsciente. (JUNG, 1999, p. 46-8)

Na medida do possível é importante que o paciente possa aceitar e integrar a sua história. Isto é, aceitar que a fase que superou é um patrimônio seu. Por isso, a seriedade com a qual o terapeuta lida com a relidade psíquica do paciente é fundamental. Mesmo, a realidade patológica do paciente, pois,

“Aquilo que chamamos de “ilusão” é, talvez, uma realidade psíquica de suprema importância. A alma, provavelmente, não se importa com nossas categorias de realidade. Parece que para ela é real tudo o que antes de mais nada é eficaz. (…) No domínio psíquico, como na experiência geral, realidade são fatores eficazes. Não importa quais os nomes que o homem lhes dê. O importante é entender essas realidades como tais, dentro da medida do possível, não se trata em substituir um nome por outro.” (Jung, 1999, p. 43-4 §99)

A história de vida de cada um é sempre sagrada, ou seja, precisa ser profundamente respeitada, até mesmo em seus aspectos mais sofridos. Em certas situações a dificuldade do paciente em se permitir novas experiências se deve ao fato, de sua referencia ou realidade estar calcada num fator eficaz que deixou de ser funcional, mas, ao qual a consciência se apega obstinadamente. Compree nder este fator eficaz, ou símbolo, é importante para auxiliar na passagem ou transformação de uma realidade para outra. Assim, não podemos rotular ou mesmo tentar enquadrar em teorias a realidade psíquica do individuo. O que podemos é auxilia-lo na busca das respostas, do “fator eficaz”, quando necessário mediando a relação dele com o próprio inconsciente.

Por conseguinte, os meus pacientes têm razão preferem as imagens e as interpretações simbólicas, como o que há de mais adequado e eficaz.” (Jung, 1999, p. 43-4 §113)

Em última análise, sempre será o paciente que determinará o que é eficaz em seu processo. Muitas vezes, alguns aderem a racionalizações, teorias psicológicas que caíram no senso comum ou em diagnósticos como sendo sua realidade, no geral, isso gera apenas mais estagnação. As imagens e as interpretações simbólicas unificam o individuo, colocando-o em contato com sua totalidade.

O texto “Os Objetivos da Psicoterapia” nos permite várias reflexões sobre a prática da psicoterapia.

Referencias bibliográficas

HORTA, Eliete Villela Pedroso; MINICUCI, Maria Cristina; PASCHOA, Vera Lúcia Furtado; Jung & Sandor – Trabalho Corporal na Psicoterapia Analítica, São Paulo: Vetor Editora, 2012.

JUNG. C. G, A Prática da Psicoterapia, Petrópolis: Vozes, 1999.


[1] Atualmente o Grupo Aion é formado pelos psicólogos Fabrício Fonseca Moraes, Raissa Módolo Rodrigues, Giuliana de Paula Oliveira, Helena Cruz Tamiasso e a estudante de psicologia Lilia Lavor.

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

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Algumas considerações acerca dos Sonhos na Abordagem Junguiana – Parte I

A psicologia dos sonhos é uma área fundamental dentro da psicologia do inconsciente. Dessa forma, compreender os sonhos e o seu papel na psique é fundamental para todo aquele que se interessa pelo inconsciente, seja por motivos profissionais ou por motivos pessoais, como autoconhecimento. O que chamamos de “psicologia dos sonhos” se refere ao estudo ou a ocupação científica com os sonhos, contudo, não podemos perder de vista que em todos os tempos os humanos sempre se ocuparam dos sonhos, compreendendo neles a possibilidade de descobrir a vontade dos deuses ou mesmo para compreender e tratar doenças.

A psicologia dos sonhos se configura efetivamente no contexto científico com Freud, através de seu impressionante trabalho “A interpretação dos Sonhos” (1900). Com esse trabalho, Freud inaugurou, por assim dizer, a psicanálise. A importância da teoria dos sonhos era tamanha que, em 1932, em suas novas conferências introdutórias ao falar acerca de sua teoria dos sonhos Freud afirmou que Esta ocupa um lugar especial na história da psicanálise e assinala um ponto decisivo; foi com ela que a psicanálise progrediu de método psicoterapêutico para psicologia profunda. (FREUD, 1996, p.17)

A concepção de Freud acerca dos sonhos estava intimamente relacionado com sua teoria sexual. De tal forma que, para Jung, se tornava impossível sustentar o método freudiano de interpretação dos sonhos. Assim, concepção acerca dos sonhos começou a se configurar com a após a ruptura com a psicanálise. Segundo Jung,

Depois da ruptura com Freud, começou para mim um período de incerteza interior, e mais que isso, de desorientação. Eu me sentia flutuando pois ainda não encontrara minha própria posição. O que mais almejava nesse momento era adquirir uma nova atitude em relação aos meus doentes. Em primeiro lugar decidi confiar incondicionalmente naquilo que contassem de sobre eles mesmos. Pus-me, então à escuta do que o acaso trazia. Constatei logo que relatavam espontaneamente seus sonhos e fantasias; eu apenas formulava algumas perguntas, tais como “o que pensa disso?” ou: “Como compreende isso? De onde vem essa imagem?” Das respostas e associações apresentadas por eles, as interpretações decorriam naturalmente. Deixando de lado qualquer ponto de vista teórico, apenas os ajudava a compreender por si mesmos suas imagens.

Logo percebi que era correto tomar, como base de interpretação, os sonhos tais como se apresentam. Eles são o fato do qual devemos partir. Naturalmente meu “método” engendrou uma variedade de aspectos quase inabrangível. A necessidade de um critério tornou-se cada vez mais premente, ou melhor, a urgência de uma orientação inicial pelo menos provisória. (JUNG, 1975, p.152)

Assim, como veremos, a concepção de Jung acerca dos sonhos não deriva da psicanálise ou da relação com Freud, muito pelo contrario, foi justamente o afastamento da psicanálise que permitiu Jung ter uma compreensão dos processos oníricos a partir dos próprios pacientes. Neste texto, procurarei discutir, em linhas gerais, o desenvolvimento a concepção junguiana do sonho assim como alguns aspectos a compreensão dos símbolos e análise dos sonhos.

Os sonhos

No geral, não há uma conceituação ampla e unívoca acerca dos sonhos. Os conceitos ou definições variam de abordagem, ou mesmo de autor para autor. Dessa forma, para nortearmos nosso texto, gostaria de usar duas noções acerca dos sonhos que considero fundamentais.

“o sonho é uma vivência impressionante que ocorre durante o sono(…) ele é uma vivência que provoca mudanças”(KAST, 2010, p.35)

“sonho é uma auto-representação, em forma espontânea e simbólica, da situação atual do inconsciente”(JUNG, 2000, p. 201).

Essas duas noções nos servem de norte para pensarmos os sonhos, pois, o sonhos são vivencias interiores, que provocam mudanças, justamente por nos colocar diante de nossa verdade mais profunda. Assim, os sonhos nos oferecem uma possibilidade de olharmos para nossa vida por uma outra perspectiva, sem as limitações da consciência.

O enfoque de Jung sempre esteve relacionado com a aplicação prática da analise dos sonhos, assim, não foi realizada uma sistematização geral dos sonhos. Assim, indicaremos algumas tentativas realizadas por Jung para clarear a teoria que fundamenta a analise dos sonhos. De forma geral, apresentarei elementos que nos auxiliam como pano de fundo para o processo de analise dos sonhos.

O que causa os Sonhos?

Em seus “seminários sobre sonhos de crianças”, Jung propõe alguns fatores que podem causar sonhos, esses fatores não são exclusivos ou definitivos, mas, nos permitem ampliar, avaliar e direcionar nossos questionamentos acerca do sonho. Assim, segundo Jung, os sonhos podem ter sua origem relacionados a:

1- Fontes somáticas: “percepções corporais, estados patológicos ou indiposições físicas. Pode tratar-se de manifestações corporais que, por sua vez, são ocasionadas por processo psíquico totalmente inconsciente.”(JUNG, 2011, p.20).

Eu me recordo de ter lido há alguns anos uma matéria num jornal local, um história de um homem que sonhou que havia caído e ferido a cabeça, o sonho o deixou tão impressionado que ele buscou um médico, solicitou exames e verificou que ele possuía um tumor no cérebro, que estava em fase inicial, e pode realizar o tratamento. Na antiguidade os sonhos eram considerados como fonte de diagnósticos e indicavam o tratamento para problemas somáticos. Assim, não podemos perder de vista que não há separação entre corpo e a psique, esses sonhos são especialmente importantes quando trabalhamos com uma perspectiva psicossomática.

2- “Outros eventos físicos – que não ocorrem no próprio corpo, e sim, no meio ambiente – podem influenciar o sonho: ruídos, estímulos luminosos, frio e calor.” (JUNG, 2011, p.21)

Passei por uma experiência recente que ajuda a pensar nessa afirmação de Jung, há alguns dias tive um sonho com meu filho recém nascido, e, em meio a este sonho, acordo e vejo que ele estava chorando. Não estamos querendo que os sonhos são condicionados pelos eventos físicos, mas, que determinados sonhos podem ser infuenciados pelos estímulos externos justamente por que o inconsciente não dorme. Assim, esses estímulos podem se associar aos conteúdos inconscientes produzindo um sonho. Alguns sonhos podem parecer longos, mas, de fato pode durar alguns segundos.

3 – Acontecimentos psíquicos externos ao paciente –

“Os sonhos não são causados somente por fatores físicos, e sim, também, por fatores psíquicos. Por vezes ocorre de determinados acontecimento psíquicos no meio ambiente serem percebidos pelo inconsciente.

Entre os sonhos que colecionei, há um caso onde uma criança de três a quatro anos onde sonha com a vinda de dois anjos e que levantavam algo do chão e o transportavam para o céu – Na mesma noite um irmãozinho dessa criança morre.

Outra criança sonha que a mãe deseja suicidar-se. Entra gritando no quarto da mãe que já está acorda e prestes a cometer suicídio.

Desse modo acontecimentos psíquicos importantes no meio ambiente podem ser percebidos. Certas atmosferas, certos segredos também podem ser plenamente farejados de maneira inconsciente. Nesses casos não sabemos como o inconsciente consegue absorver algo assim.(JUNG, 2011, p.25)

A capacidade do inconsciente entrar em sintonia com o inconsciente de outra pessoa, já era conhecida e discutida por Jung desde 1909, quando apresentou uma preleção na Universidade Clark, nos EUA, depois publicada sob o titulo de “Constelação Familiar” (OC II) , nesse trabalho ele apresenta o resultado de um estudo com teste de associação de palavras com famílias, onde foi observado em alguns casos as associações de membros da família, apresentavam um índice elevado de similaridade, que indicavam uma identidade psíquica, p.ex., a filha estava identificada com a mãe que repetiria as escolhas e comportamentos da mãe, vivendo os complexos da mãe, numa verdadeira maldição familiar. Para dar um exemplo, certa vez, atendi um rapaz que me procurou com alguns sintomas de depressão, contudo, a rotina e as atividades e sua disposição para enfrentar e realizar mudanças não condiziam a depressão, na verdade, a questão estava com a mãe do paciente que possuía uma depressão servera e crônica. O paciente era filho único, responsável pela mãe, assim, inconscientemente ele era “contaminado” pela mãe. Apos trabalharmos essa relação inconsciente com a depressão da mãe o paciente melhorou. Por isso mesmo, que pessoas que convivem ou mesmo cuidam de pessoas com doenças como depressão e Alzheimer (dentre outras), devem ficar atentos com sua própria saúde, pois, correm franco risco de adoecerem.

Assim, a faculdade do inconsciente “absorver” a realidade circundante nos coloca diante da relação do individuo frente ao meio externo. Assim, o sonho ofereceria chaves de compreensão da realidade atual, objetiva e externa a esfera psíquica do sonhador. Deste modo, alguns sonhos permitem ao sonhador ver contexto psíquico no qual ele se encontra inconscientemente imerso.

4 – Acontecimentos passados :

Acontecimentos passados, porém, podem igualmente entrar nos sonhos. Caso os senhores se deparem com algo assim , deverão leva-lo a sério. Quando um nome histórico que pode ter algum significado maior surge nos sonhos, costumo pesquisar o real significado do nome. Pesquiso que tipo de pessoa foi designado por este nome e em que contexto vivia, pois desse modo podemos explicar o sonho.

Os acontecimentos passados, personagens históricos, podem não estar claramente relacionados com o cotidiano, quando examinados, verificadas a relações poderemos ter as associações necessárias para compreender a mensagem sonho. Os arquétipos constituem padrões basais de comportamento que podem se representar através de imagens universais.

5 – Causas futuras

O último grupo de causas, os senhores encontraram entre os sonhos que antecipam conteúdos psíquicos futuros da personalidade que não são reconhecidos tais no momento presente. Trata-se desse modo de acontecimentos futuros que ainda não passíveis de serem reconhecidos no momento presente.

Estes conteúdos apontam para ações ou situações futuras do sonhador que não se baseiam em absoluto na psicologia atual do paciente. (JUNG, 2011, p.29)

Este último grupo é interessante por apontar a tendência natural do inconsciente em se direcionar para o futuro ou a etapa posterior do desenvolvimento. Jung já afirmava que “não é apenas o passado que nos condiciona, mas também o futuro, que muito tempo antes já se encontra em nós e lentamente vai surgindo a partir de nós mesmos.(JUNG, 2006, p.115) Esses sonhos indicam possibilidades futuras ou mesmo intuições que acerca do futuro. O inconsciente, até onde podemos compreender, não é condicionado pelo tempo.

Uma classificação dos Sonhos

No texto “Aspectos Gerais da Psicologia do Sonho” Jung faz uma discussão acerca da possibilidade de classificar os tipos de sonhos, de fato, não devemos considerar como uma classificação definitiva, mas, um esboço que nos permite compreender algumas diferenciações entre os tipos de sonhos.

Segundo Jung, teríamos,

sonhos típicos ou arquetípicos:

Mas estes sonhos não são muito frequêntes e, sob o ponto de vista final, perdem muito de sua importância que a interpretação causal lhe atribui em razão de sua significação simbólica fixa. Parece-me que os motivos típicos nos sonhos são de capital importância, porque eles permitem comparações com os motivos mitológicos. (JUNG, 2000, p. 185)

Os sonhos arquetípicos, isto é, cujo conteúdo é essencialmente marcado pelos arquétipo, de tal modo, que as associações pessoais não são suficientes para compreende-los, nem mesmo o ponto de vista final ou causal, justamente, por possuírem um fundo coletivo, isto é, impessoal. Os chamados “motivos típicos” são referentes às temáticas oriundas das experiências universais humanas, por isso mesmo, podem ser reconhecidas (e compreendidas) nas mitologias, nas narrativas religiosas, nos contos de fadas.

Geralmente, os sonhos arquetípicos possuem um carga energética superior, de tal forma, que tendem a promover mudanças significativas na atitude da consciência.

– sonhos compensatórios: Na verdade, esta “categoria” corresponde a grande maioria dos sonhos. São denominados compensatórios por visar a correção ou mudança da atitude da consciência.

É verdade que, na minha opinião, todos os sonhos têm um caráter compensador em relação aos conteúdos conscientes, mas longe de mim pensar que a função compensadora se apresente com tanta clareza em todos os sonhos como neste exemplo. Embora o sonho contribua para a auto-regulação psicológica do indivíduo, reunindo mecanicamente tudo aquilo que andava recalcado, desprezado, ou mesmo ignorado, contudo, o seu significado compensador muitas vezes não aparece imediatamente, porque apenas dispomos de conhecimentos imperfeitíssimos a respeito da natureza e das necessidades da psique humana.(JUNG, 2000, p.188)

A compensação caracteriza-se pelo confronto da atitude da consciência com os conteúdos do inconsciente. Desde modo, para compreender a função compensatória do sonho faz-se necessário compreender a atitude da consciência e qual aspecto pode estar sendo compensado. A compensação pode ser,

a) Redutora: Esta compensação se característica por ser uma função negativamente compensadora, isto é, sua manifestação visa reorientar a consciência explicitando os aspectos negativos opostos a consciência. Um exemplo, seria um individuo que leva uma vida notadamente religiosa, tem sonhos onde se encontra bêbado em prostíbulos.

O sonho redutor tende, antes, a desintegrar, a dissolver, depreciar, e mesmo destruir e demolir. Evidentemente, isto não quer dizer que a assimilação de um conteúdo redutor tenha um efeito inteiramente destrutivo sobre o indivíduo como um todo. Pelo contrário este efeito é muitas vezes altamente salutar, porque afeta apenas a atitude e não a personalidade total. (JUNG, 2000, p.195)

b) Prospectiva : Esta forma de compensação se caracteriza pela capacidade do inconsciente em retornar à consciência todos os elementos que passaram desapercebidos pela consciência ou mesmo, não conseguiram retornar a consciência. Essa compensação complementa na consciência.

em primeiro lugar, que o inconsciente, na medida em que depende da consciência,acrescenta à situação consciente do indivíduo todos os elementos que, no estado de vigília, não alcançaram o limiar na consciência, por causa de recalque ou simplesmente por serem demasiado débeis para conseguir chegar por si mesmo até à consciência. A compensação daí resultante pode’ ser considerada como apropriada, por representar uma auto-regulação do organismo psíquico. (JUNG, 2000, p.193)

Dessa função compensatória, temos como exemplo o célebre sonho do químico alemão Kekulé (Friedrich August Kekulé Von Stradonitz) . Kekulé estava pesquisando a formula do benzeno, em especial acerca de sua representação gráfica, e o trabalho não estava progredindo. Ele adormeceu e sonhou com uma cobra que engolia o próprio rabo, a partir desse sonho ele considerou a formula hexagonal do benzeno.

Esses sonhos reintegram a consciência elementos que complementam e possibilitam uma reorganização da percepção, assim como a resolução de questões.

– sonhos reativos: Estes sonhos são frutos de situações traumáticas ou de grande violência. São sonhos que expressam uma tentativa inconsciente de lidar com tal situação. A principal característica é que esses sonhos são refratários a análise e a interpretação.

“os mesmos sonhos reativos, sobretudo, em condições físicas patológicas, em que dores violentas influenciam decisivamente o desenrolar do sonho. Em minha opinião, os estímulos somáticos só excepcionalmente têm uma significação determinante. Geralmente esses estímulos se integram completamente na expressão simbólica do conteúdo inconsciente do sonho, ou, dito de outro modo: são utilizados como meio de expressão.”(JUNG, 2000, p.199)

Sonhos telepáticos : são sonhos onde um “acontecimento particularmente afetivo é antecipado “telepaticamente” no tempo e no espaço” (JUNG, 2000, p. 200) p.ex. uma mãe sonha que acontece algo como filho, acorda desesperada. Mas, tarde chega a noticia da morte do filho. Jung considerava que os sonhos telepáticos apontavam para peculiaridades do inconsciente, como o fato do mesmo, aparentemente, não ser determinado pelo tempo ou mesmo espaço – estes são determinantes fundamentais para a consciência. O inconsciente, por sua vez, não faz distinção entre passado, presente e futuro, como notamos por nos sintomas, memórias e nos sonhos. Acerca desses sonhos, Jung afirma

Naturalmente, nunca professarei que as leis que os regem sejam alguma coisa de “sobrenatural”. Apenas afirmo que eles escapam ao alcance de nosso saber meramente acadêmico. Assim, os conteúdos telepáticos contestáveis possuem um caráter de realidade que zomba de qualquer expectativa de probabilidade. Embora sem me arriscar a uma concepção teórica a respeito desses fenômenos, creio, todavia, que é correto reconhecer e sublinhar sua realidade”(JUNG, 2000, p.201)

Sonhos e a Dinâmica Psíquica

Os sonhos desempenham um papel importante no processo de autorregulação psíquica, Jung especificou quatro possibilidades de significação dos sonhos na dinâmica psíquica, seriam elas,

“1) O sonho representa a reação do inconsciente frente a uma situação da consciência(…)” (JUNG, 2011, p. 18) – No primeiro caso o sonho expressa o inconsciente, podendo ser favorável a postura da consciência, onde, o sonho complementaria a realidade vivida, ou poderia ser desvarável a posição do inconsciente, sendo . Assim, frente a uma escolha ou ação da consciência, o inconsciente pode se expressar por meio do sonho, este podendo ser complementar ou compensatório a atitude da consciência. Estando intimamente ligado aos acontecimentos recentes.

“2) O sonho representa uma situação que é fruto do conflito entre a consciência e o inconsciente(…)”( Ibid) Neste caso, independente o acontecimento recente da consciência, o sonho expressa a ação espontânea do inconsciente, que difere de tal modo da atitude da consciência.

3”) O sonho representa a tendência do inconsciente cujo objetivo é uma modificação da atitude da consciência(…)”(ibid) Esses sonhos indicam o movimento do inconsciente em direção a consciência. Esses sonhos são significativos, pois, muitas vezes, indicam o curso para onde o desenvolvimento “deve seguir.

4) O sonho representa processos inconsciente que não evidenciam uma relação com a situação inconsciente ” (Ibid) – Neste caso, os sonhos emergem do inconsciente apresentando um caráter numinoso. São chamados de “Grandes Sonhos”, por serem experimentados como uma iluminação. Indicam um processo de desenvolvimento psíquico a partir do inconsciente arquetípico, contudo, sem ser condicionado pelos processos da consciência.

Neste texto, apresentamos alguns aspectos teóricos importantes pensarmos a analise de sonhos, por constituírem um pano de fundo importante. Em breve, estaremos publicando a segunda parte deste texto, onde discutiremos alguns aspectos da interpretação dos sonhos.

Referências Bibliográficas

FREUD, S. Conferência XXIX: Revisão da teoria dos sonhos. In: Obras completas. Rio de Janeiro: Imago. v. XXII, 1996.

JUNG, C. G., Memórias Sonhos e Reflexões, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1975

JUNG, C.G., Natureza da Psique, Petrópolis:Vozes, 2000.

JUNG, C.G. Seminários sobre sonhos de crianças, Petrópolis: Vozes, 2011.

 

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

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Discípulo e Dissidente: Repensando algumas distorções

(17 de janeiro de 2013)

Recentemente eu estava relendo algumas partes do livro de “Em busca de Jung” de J.J.Clarke, acerca da relação entre Jung e Freud e as distorções realizadas ao longo da história, que são amplamente divulgadas em livros de teoria da personalidade. Bem, lendo o texto do Clarke, me lembrei de uma situação onde essas “distorções” falaram alto, foi numa conversa com um grupo, em dado momento fiz algumas críticas a Freud e a psicanálise, quando uma pessoa que participava na conversa, que estudava Jung a pouco tempo, me censurou dizendo: “ Você não deveria falar assim, afinal, Jung foi aluno de Freud”, seguiu dizendo que Jung devia muito a Freud e coisas assim. Ao longo deste texto, discutirei justamente os apontamentos que fiz nessa conversa.

Acredito que devemos começar por uma consideração histórica importante, considerando a questão “quem era Jung, antes de conhecer Freud?” Esta questão é fundamental para compreendermos as distorções acerca da relação entre de Jung e Freud.

Logo após se formar, em 1900, Jung se tornou médico e foi contratado no Hospital Psiquiátrico Burgholzli, como médico-assistente do diretor dr.Eugen Bleuler, que um dos principais nomes da psiquiatria do século XX, responsáveis por importantes pesquisas acerca da demência precoce/esquizofrenia. Entre 1904/1905 Jung desenvolve seus estudos sobre associação de palavras, que o projetam internacionalmente. Em 1905, promovido a Médico Chefe da Clínica do Burgholzli e indicado a conferencista em Psiquiatria da Universidade de Zurique. Em 1907, quando ocorreu o encontro com Freud, Jung já possuía muitos artigos publicados e livros, e já utilizava da teoria psicanalítica em seus estudos tanto sobre os complexos quanto sobre a demência precoce(1906), e, desde 1904 ele já utilizava da psicanálise em tratamentos no Burgholzli (a primeira paciente foi Sabina Spielrein). Em 1909, Jung e Freud foram convidados e igualmente homenageados com o doutoramento honoris causa pela Universidade Clark nos EUA, Freud por seus trabalhos com psicanálise e Jung por suas pesquisas em psicopatologia experimental, com seus testes de associação de palavras. 

Um colaborador

De fato, esses dados são importantes para começarmos a pensar a idéia de que Jung foi apenas “discípulo ou aluno” de Freud. A relação de respeito e projeções paternas que Jung nutria em relação a Freud, é explicitada nas cartas que trocaram. Deve-se notar que grande parte da relação deles foi por correspondência, pois, não foram muitos os momentos onde eles se encontraram pessoalmente, sendo que o principal momento foi em 1909, na viagem aos EUA, contudo, Jung relata que nesta viagem de sete semanas teve origem a ruptura com Freud. Ao analisar o período a relação entre Jung e Freud, Clarke aponta que,

Durante todo o período em que foram amigos, Freud certamente nunca o tratou como aluno, vendo-o, isto sim, como um respeitado e altamente valioso parceiro menor, esforçando-se para estabelecer as credenciais profissionais da psicanálise. (CLARKE, 1993, p. 23-4)      

Não estamos dizendo que Jung não aprendeu nada com Freud, mas, que apesar do aprendizado e da relação de amizade, Jung era um pensador independente, profícuo, bem relacionado, a tal ponto que Freud em pouco tempo o elegeu seu “príncipe herdeiro”. Peter Gay, um importante biógrafo de Freud, afirma que

Em cartas a amigos íntimos judeus, ele[Freud] elogiava constantemente Jung por fazer um trabalho “esplêndido, magnífico”, publicando, teorizando ou investindo contra os inimigos da psicanálise. “Agora, não fique com ciúmes”, Freud espicaçou Ferenczi em dezembro de 1910, “e inclua Jung em seus cálculos. Estou mais convencido do que nunca que é o homem do futuro”. Jung era a garantia de que a psicanálise sobreviveria depois que seu fundador tivesse abandonado o palco, e Freud amava-o por isso. (GAY, 1989, 194-5)

A importância de Jung naquele momento era tal, que, em 1909 foi confiada a ele o cargo de redator chefe do “Jahrbuch für Psychoanalytische und Psychopathologische Forschungen”, a primeira revista internacional de psicanálise, assinavam como editores Freud e Bleuler. Já em 1910, Jung foi eleito o primeiro presidente da Associação Internacional de psicanálise.

Como propusemos, reduzir Jung a um “discípulo” não condiz a realidade e a relação entre Jung e Freud naquele momento da psicanálise.

O Dissidente

De fato, Jung protagonizou uma das maiores dissidências da psicanálise. Contudo, eu gostaria apenas de lembrar que ser dissidente implica basicamente numa discordância ou divergência e o afastamento de um grupo. Digo isso, pois, é comum vermos o uso desse termo como se fosse “traição”. Mas, para entendermos a aplicação desse termo, e seu peso, devemos recorrer ao “Dicionário de psicanálise” de Elisabeth Roudinesco e Michel Plon, nos informa,

A palavra dissidência tem outra significação. Designa a ação ou o estado de espirito de quem rompe com a autoridade estabelecida, mas não implica a idéia de separação e divisão que está presente no termo cisão. Por isso ela é empregada em psicanálise para designar as rupturas ocorridas durante a primeira metade do século XX, numa época em que o freudismo não ainda se havia tornado um verdadeiro movimento de massa, como aconteceria depois da morte de Freud. A dissidência, portanto, é um fenômeno historicamente anterior ao das cisões, contemporâneas da expansão maciça da psicanálise no mundo, e, por conseguinte do advento da terceira geração psicanalítica mundial (Jacques Lacan, Heinz Kohut, Marie Langer, Wilfred Ruprecht Bion, Igor Caruso, Donald Woods Winnicott). Instruídos pelos representantes da segunda geração, os membros da terceira só tiveram acesso a Freud através da leitura dos textos. Considerando que a IPA já não era uma instância legítima e inatacável, eles questionaram não apenas a interpretação clássica da obra freudiana, mas também as modalidades de formação didática, às quais não mais queriam se submeter, arrastando consigo as gerações seguintes.

De modo geral, emprega-se o termo dissidência para qualificar as duas grandes rupturas que marcaram os primórdios do movimento psicanalítico: com Alfred Adler, em 1911, e com Carl Gustav Jung, em 1913. Essas duas rupturas conduziram seus protagonistas a fundar, ao mesmo tempo uma nova doutrina e um novo movimento político e institucional: psicologia individual, no caso do primeiro e psicologia analítica, no que tange ao segundo.

Essas duas dissidências concerniram, na verdade, a questões teóricas. Nesse aspecto, há entre a dissidência e a cisão a mesma distância que separa o cisma da heresia. O cisma (religioso), assim como a cisão(leiga), é a contestação da autoridade legítima da instituição que representa a doutrina a ser transmitida(a igreja, na religião e a IPA, na psicanálise), ao passo que a dissidência (leiga), tal qual a heresia (religiosa), é uma crítica da doutrina transmitida, que tanto pode conduzir à ruptura radical quanto ao rearranjo ou reformulação internos da doutrina radical.

As dissidências de Wilhelm Steckel e Otto Rank, sob esse aspecto, são diferentes da adleriana e da junguiana, portanto dizem respeito a certos aspectos da doutrina e não à sua totalidade. Trata-se, pois, de dissidências internas à história da teoria freudiana, da qual conservaram quer o essencial, quer uma parte. A dissidência de Wilhelm Reich é da mesma ordem, tendo sido acompanhada, como a de Rank, de uma expulsão da IPA.(ROUDINESCO, PLON,1998 , 118)

Acredito que este texto, do dicionário de psicanálise, nos ajuda a entender a aplicação do termo dissidência, e, como que Jung passa a ser compreendido no contexto psicanalítico. Confesso que achei bem interessante a explicação utilizando termos de origem religiosa (cisma e heresia), poderíamos utilizar outro termo religioso para compreendermos valor dado a palavra dissidente, o termo seria apostata. Esta é uma distorção, muitas vezes, inconsciente feitas por simpatizantes da psicanálise, que simplesmente hostilizam a Jung e seu corpo teórico sem conhece-lo, apenas por ele ter rompido com o pensamento freudiano.

A psicanálise como pré-requisito?

Ao pensarmos sobre a dissidência de Jung, o texto do dicionário de psicanálise nos permite pensarmos outra distorção comum nos currículos acadêmicos, que consiste em colocar a psicologia analítica como “descendente” da psicanálise, isto é, colocar a psicanálise como pré-requisito para se estudar a psicologia analítica.

A ruptura com Freud, nos primórdios do movimento psicanalítico, não representou uma influência decisiva na construção junguiana, de tal forma, que não há qualquer necessidade de ter conhecimentos de psicanálise para se compreender o pensamento junguiano. Peço ao leitor que me não me tome por extremista ou fundamentalista, na verdade, o que afirmo aqui é a independência da psicologia analítica em relação a psicanálise. Não há necessidade de passar por Freud para chegar a Jung, pois, a psicologia analítica não descende da psicanálise.  Mesmo que tenhamos termos similares (libido, transferência etc) são utilizados de forma própria.

Acredito que superar essas distorções é fundamental para termos uma consideração realista acerca da psicologia analítica.

Referências Bibliográficas

CLARKE, J.J. Em busca de Jung. Rio de Janeiro: Ediouro, 1993

GAY, P. Freud, uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.  

ROUDINESCO, Elisabeth e PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

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