Discípulo e Dissidente: Repensando algumas distorções

(17 de janeiro de 2013)

Recentemente eu estava relendo algumas partes do livro de “Em busca de Jung” de J.J.Clarke, acerca da relação entre Jung e Freud e as distorções realizadas ao longo da história, que são amplamente divulgadas em livros de teoria da personalidade. Bem, lendo o texto do Clarke, me lembrei de uma situação onde essas “distorções” falaram alto, foi numa conversa com um grupo, em dado momento fiz algumas críticas a Freud e a psicanálise, quando uma pessoa que participava na conversa, que estudava Jung a pouco tempo, me censurou dizendo: “ Você não deveria falar assim, afinal, Jung foi aluno de Freud”, seguiu dizendo que Jung devia muito a Freud e coisas assim. Ao longo deste texto, discutirei justamente os apontamentos que fiz nessa conversa.

Acredito que devemos começar por uma consideração histórica importante, considerando a questão “quem era Jung, antes de conhecer Freud?” Esta questão é fundamental para compreendermos as distorções acerca da relação entre de Jung e Freud.

Logo após se formar, em 1900, Jung se tornou médico e foi contratado no Hospital Psiquiátrico Burgholzli, como médico-assistente do diretor dr.Eugen Bleuler, que um dos principais nomes da psiquiatria do século XX, responsáveis por importantes pesquisas acerca da demência precoce/esquizofrenia. Entre 1904/1905 Jung desenvolve seus estudos sobre associação de palavras, que o projetam internacionalmente. Em 1905, promovido a Médico Chefe da Clínica do Burgholzli e indicado a conferencista em Psiquiatria da Universidade de Zurique. Em 1907, quando ocorreu o encontro com Freud, Jung já possuía muitos artigos publicados e livros, e já utilizava da teoria psicanalítica em seus estudos tanto sobre os complexos quanto sobre a demência precoce(1906), e, desde 1904 ele já utilizava da psicanálise em tratamentos no Burgholzli (a primeira paciente foi Sabina Spielrein). Em 1909, Jung e Freud foram convidados e igualmente homenageados com o doutoramento honoris causa pela Universidade Clark nos EUA, Freud por seus trabalhos com psicanálise e Jung por suas pesquisas em psicopatologia experimental, com seus testes de associação de palavras. 

Um colaborador

De fato, esses dados são importantes para começarmos a pensar a idéia de que Jung foi apenas “discípulo ou aluno” de Freud. A relação de respeito e projeções paternas que Jung nutria em relação a Freud, é explicitada nas cartas que trocaram. Deve-se notar que grande parte da relação deles foi por correspondência, pois, não foram muitos os momentos onde eles se encontraram pessoalmente, sendo que o principal momento foi em 1909, na viagem aos EUA, contudo, Jung relata que nesta viagem de sete semanas teve origem a ruptura com Freud. Ao analisar o período a relação entre Jung e Freud, Clarke aponta que,

Durante todo o período em que foram amigos, Freud certamente nunca o tratou como aluno, vendo-o, isto sim, como um respeitado e altamente valioso parceiro menor, esforçando-se para estabelecer as credenciais profissionais da psicanálise. (CLARKE, 1993, p. 23-4)      

Não estamos dizendo que Jung não aprendeu nada com Freud, mas, que apesar do aprendizado e da relação de amizade, Jung era um pensador independente, profícuo, bem relacionado, a tal ponto que Freud em pouco tempo o elegeu seu “príncipe herdeiro”. Peter Gay, um importante biógrafo de Freud, afirma que

Em cartas a amigos íntimos judeus, ele[Freud] elogiava constantemente Jung por fazer um trabalho “esplêndido, magnífico”, publicando, teorizando ou investindo contra os inimigos da psicanálise. “Agora, não fique com ciúmes”, Freud espicaçou Ferenczi em dezembro de 1910, “e inclua Jung em seus cálculos. Estou mais convencido do que nunca que é o homem do futuro”. Jung era a garantia de que a psicanálise sobreviveria depois que seu fundador tivesse abandonado o palco, e Freud amava-o por isso. (GAY, 1989, 194-5)

A importância de Jung naquele momento era tal, que, em 1909 foi confiada a ele o cargo de redator chefe do “Jahrbuch für Psychoanalytische und Psychopathologische Forschungen”, a primeira revista internacional de psicanálise, assinavam como editores Freud e Bleuler. Já em 1910, Jung foi eleito o primeiro presidente da Associação Internacional de psicanálise.

Como propusemos, reduzir Jung a um “discípulo” não condiz a realidade e a relação entre Jung e Freud naquele momento da psicanálise.

O Dissidente

De fato, Jung protagonizou uma das maiores dissidências da psicanálise. Contudo, eu gostaria apenas de lembrar que ser dissidente implica basicamente numa discordância ou divergência e o afastamento de um grupo. Digo isso, pois, é comum vermos o uso desse termo como se fosse “traição”. Mas, para entendermos a aplicação desse termo, e seu peso, devemos recorrer ao “Dicionário de psicanálise” de Elisabeth Roudinesco e Michel Plon, nos informa,

A palavra dissidência tem outra significação. Designa a ação ou o estado de espirito de quem rompe com a autoridade estabelecida, mas não implica a idéia de separação e divisão que está presente no termo cisão. Por isso ela é empregada em psicanálise para designar as rupturas ocorridas durante a primeira metade do século XX, numa época em que o freudismo não ainda se havia tornado um verdadeiro movimento de massa, como aconteceria depois da morte de Freud. A dissidência, portanto, é um fenômeno historicamente anterior ao das cisões, contemporâneas da expansão maciça da psicanálise no mundo, e, por conseguinte do advento da terceira geração psicanalítica mundial (Jacques Lacan, Heinz Kohut, Marie Langer, Wilfred Ruprecht Bion, Igor Caruso, Donald Woods Winnicott). Instruídos pelos representantes da segunda geração, os membros da terceira só tiveram acesso a Freud através da leitura dos textos. Considerando que a IPA já não era uma instância legítima e inatacável, eles questionaram não apenas a interpretação clássica da obra freudiana, mas também as modalidades de formação didática, às quais não mais queriam se submeter, arrastando consigo as gerações seguintes.

De modo geral, emprega-se o termo dissidência para qualificar as duas grandes rupturas que marcaram os primórdios do movimento psicanalítico: com Alfred Adler, em 1911, e com Carl Gustav Jung, em 1913. Essas duas rupturas conduziram seus protagonistas a fundar, ao mesmo tempo uma nova doutrina e um novo movimento político e institucional: psicologia individual, no caso do primeiro e psicologia analítica, no que tange ao segundo.

Essas duas dissidências concerniram, na verdade, a questões teóricas. Nesse aspecto, há entre a dissidência e a cisão a mesma distância que separa o cisma da heresia. O cisma (religioso), assim como a cisão(leiga), é a contestação da autoridade legítima da instituição que representa a doutrina a ser transmitida(a igreja, na religião e a IPA, na psicanálise), ao passo que a dissidência (leiga), tal qual a heresia (religiosa), é uma crítica da doutrina transmitida, que tanto pode conduzir à ruptura radical quanto ao rearranjo ou reformulação internos da doutrina radical.

As dissidências de Wilhelm Steckel e Otto Rank, sob esse aspecto, são diferentes da adleriana e da junguiana, portanto dizem respeito a certos aspectos da doutrina e não à sua totalidade. Trata-se, pois, de dissidências internas à história da teoria freudiana, da qual conservaram quer o essencial, quer uma parte. A dissidência de Wilhelm Reich é da mesma ordem, tendo sido acompanhada, como a de Rank, de uma expulsão da IPA.(ROUDINESCO, PLON,1998 , 118)

Acredito que este texto, do dicionário de psicanálise, nos ajuda a entender a aplicação do termo dissidência, e, como que Jung passa a ser compreendido no contexto psicanalítico. Confesso que achei bem interessante a explicação utilizando termos de origem religiosa (cisma e heresia), poderíamos utilizar outro termo religioso para compreendermos valor dado a palavra dissidente, o termo seria apostata. Esta é uma distorção, muitas vezes, inconsciente feitas por simpatizantes da psicanálise, que simplesmente hostilizam a Jung e seu corpo teórico sem conhece-lo, apenas por ele ter rompido com o pensamento freudiano.

A psicanálise como pré-requisito?

Ao pensarmos sobre a dissidência de Jung, o texto do dicionário de psicanálise nos permite pensarmos outra distorção comum nos currículos acadêmicos, que consiste em colocar a psicologia analítica como “descendente” da psicanálise, isto é, colocar a psicanálise como pré-requisito para se estudar a psicologia analítica.

A ruptura com Freud, nos primórdios do movimento psicanalítico, não representou uma influência decisiva na construção junguiana, de tal forma, que não há qualquer necessidade de ter conhecimentos de psicanálise para se compreender o pensamento junguiano. Peço ao leitor que me não me tome por extremista ou fundamentalista, na verdade, o que afirmo aqui é a independência da psicologia analítica em relação a psicanálise. Não há necessidade de passar por Freud para chegar a Jung, pois, a psicologia analítica não descende da psicanálise.  Mesmo que tenhamos termos similares (libido, transferência etc) são utilizados de forma própria.

Acredito que superar essas distorções é fundamental para termos uma consideração realista acerca da psicologia analítica.

Referências Bibliográficas

CLARKE, J.J. Em busca de Jung. Rio de Janeiro: Ediouro, 1993

GAY, P. Freud, uma vida para nosso tempo. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.  

ROUDINESCO, Elisabeth e PLON, Michel. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

www.psicologiaanalitica.com

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