Algumas notas sobre a psicopatologia na ótica junguiana

 

29 de abril de 2010

De vez em quando alguém me pergunta acerca da doença (ou neurose) para a psicologia analítica. E sempre dizem  “eu procurei em vários livros de Jung e não achei nenhum texto sobre psicopatologia ou  sobre neuroses”. Geralmente eu respondo, com um tom jocoso, dizendo “como não? todos os textos dele falam disso!”.  Eu reconheço que pode ser um pouco difícil entender a compreensão de Jung acerca  da psicopatologia ou das neuroses. Por isso, acho que seria interessante pensar algumas coisas aqui.

a) Porque Jung não criou uma “teoria geral” das neuroses

É fato que Jung não estabeleceu nenhuma “teoria geral das neuroses” nem escreveu textos dedicados à neurose ou aos sintomas em si. Isso porque defendia que cada paciente deveria ser compreendido em sua individualidade.  A ênfase de Jung estava em compreender o individuo em sua totalidade, não compreende-lo a partir de sua neurose, um aspecto parcial da psique.  Segundo Jung, O importante já não é a neurose, mas quem tem a neurose. É pelo ser humano que devemos começar, para poder fazer-lhe justiça.( Jung, 1999, p. 80)

Por mais que as neuroses ou transtornos psíquicos se manifestem de forma parecida nas pessoas, não se pode dizer o mesmo de sua “origem”. Defender uma teoria geral das neuroses significa afirmar que as neuroses possuem uma causa comum. Esse foi um dos motivos do rompimento de Jung com Freud, pois ele não concordava que a teoria sexual de Freud (que é a base da psicopatologia freudiana) justificasse totalmente o desenvolvimento tanto das neuroses quanto das psicoses – Jung se pautava tanto com sua experiência com pacientes psicóticos (experiência que Freud não possuía) quanto na consideração das ideias de Adler que apontava uma etiologia das neuroses diferente de Freud, mas que eram igualmente válidas na prática clínica. Assim, Jung considerou ser inviável considerar uma teoria geral das neuroses, pois, isso significaria negligenciar outras possibilidades de desenvolvimento do psiquismo. Vale a pena frisar Jung não negava a teoria de Freud, ele negava sua universalidade .

Segundo Jung,

Nossa experiência psicológica ainda é nova e pouco extensa, para permitir teorias universais. É preciso pesquisar primeiro uma quantidade de fatos, para aclarar a natureza da alma, antes de pensar sequer em estabelecer preposições de validade universal. Por enquanto, temos que ater-nos à norma seguinte: toda proposição psicológica só pode ser considerada valida quando, e somente quando a validade do sentido oposto também puder  ser reconhecida. (JUNG, 1999, p.110)

Dessa forma, Jung compreendia que a complexidade do fenómeno psíquico impunha uma compreensão ampla, e que as teorias psicológicas seriam expressões dessa complexidade psíquica. Uma teoria geral não contemplaria as possibilidades de desenvolvimento do psiquismo, mas, poderia facilmente ser vista como uma “verdade única” acerca da psique seria não só um equivoco, como também um risco.

(…) Nestas circunstâncias, como seria possível sonhar com teorias gerais? A teoria representa, inegavelmente, o melhor escudo para proteger a insuficiência experimental ou a ignorância. As consequências, porém, são lamentáveis: mesquinhez, superficialidade e sectarismo científico. (JUNG, 2006, p.13-4)

Jung não estabeleceu teorias gerais nem tão pouco tinha abarcar todas as possibilidades de compreensão do psiquismo. Suas teorias buscam compreender a dinâmica psíquica sem ter a pretensão de ser “ a verdade”, isso possibilitou que fossem estabelecidos diálogos entre a teoria junguiana e outras como corporal, hipnose erickoniana, psicanálise,  psicodrama, abordagem sistémica dentre outras.

b) O funcionalismo de Jung

Como dissemos acima, o foco de Jung não era a doença ou a neurose – ele afirmava que “Eu prefiro entender as pessoas a partir de sua saúde”(Jung, 1989, p.) , compreender a dinâmica psíquica e, a partir desta, os estados anormais ou  neuróticos e os psicóticos.

Não havia uma procupação por parte de Jung em buscar uma estrutura geral da neurose, mesmo porque, para Jung a neurose não deveria ser considerado algo “em-si”, pois, na neurose as atividades normais do psiquismo estariam alteradas. Assim, deveria-se observar a função da neurose no individuo, o que nos levaria  a questionar “ à quê serviria aquela alteração na atividade normal do psiquismo”.  Isto está relacionado com a perspectiva teleológica ou finalista que Jung adota, que nos leva a observar o sentido do sintoma na totalidade da psique (ou da vida) daquele individuo, a função da neurose sempre aponta sempre aponta para o processo amadurecimento do individuo.

Devemos assim, pensar um pouco mais sobre a visão da neurose para Jung.

c) A Neurose para Jung

Como dissemos, Jung não via  a neurose como algo somente “ ruim ou negativo”, mas, também era positivo. Pois, segundo ele,

Na verdade, a neurose contém a psique da pessoa, ou ao menos, parte importante dela.(…)pois na neurose está um pedaço ainda não desenvolvido da personalidade, parte preciosa da psique sem a qual o homem está condenado à resignação, amargura e outras coisas hostis à vida.A psicologia da neurose que só vê o lado negativo joga fora a água do banho com a criança, porque despreza o sentido e o valor do “infantil”, isto é, da fantasia criadora. (JUNG, 2000, p. 158)

A neurose é corresponde a uma tentativa natural de mudança da atitude da consciência, isto é, a neurose ou o sintoma neurótico já é uma uma tentativa do sistema psíquico de se reorientar (ou se curar).  A psicoterapia seria a possibilidade de reestabelecer o equilíbrio da relação entre consciência e o inconsciente ou, de outro modo, do processo de adaptação do ego frente as exigências do mundo interior e exterior.

Esse intento consiste na adaptação mais adequada do modo de levar a vida humana; e essa adaptação ocorre em dois sentidos distintos (pois a doença é adaptação reduzida). O homem deve ser levado a adaptar-se em dois sentidos diferentes, tanto à vida exterior — família, profissão, sociedade — quanto às exigências vitais de sua própria natureza. Se houve negligência em relação a qualquer uma dessas ne­cessidades, poderá surgir a doença.(JUNG, 2006, p. 97-8)

Devemos notar, que Jung não restringia a neurose a um conflito interno ou relações a relações parentais do individuo. Assim, para se pensar a neurose devemos pensar a totalidade da vida do individuo, verificando sobretudo seu posicionamento do mesmo em relação a própria vida no hoje, no presente. A neurose pode vir sendo construída ao longo dos anos, mas, se ela se mantém hoje é porque a atitude da consciência propicia que ela esteja no hoje. 

A verdadeira causa da neurose está no hoje, pois ela existe no presente. Não é de forma alguma um caput mortuumque aqui se encontra, vinda do passado, mas é nutrida diariamente e, por assim dizer, sempre de novo gerada. Somente no hoje e não no ontem será “curada” a neurose. Pelo fato de nos defrontrarmos hoje com o conflito neurótico, a digressão histórica é um rodeio, quando não um desvio, a digressão para milhares de possibilidades de fantasias obscenas ou para desejos infantis não realizados é mero pretexto para fugir do essencial. (JUNG, 2000, p.161-2)

Não se deveria procurar saber como liquidar uma neurose, mas informar-se sobre o que ela significa, o que ela ensina, qual sua finalidade e sentido. Deveríamos aprender a ser-lhe gratos, caso contrario teremos um desencontro com ela e teremos perdido a oportunidade de conhecer quem somos. Uma neurose estará realmente “liquidada”  quando tiver liquidado a falsa atitude  do eu. Não é ela que é curada, mas ela que nos cura. A pessoa está doente e a doença é uma tentativa da natureza de curá-la. (JUNG, 2000, p. 160-1)

d) Sobre nomenclatura

Até aqui utilizamos o ter “neurose” para falar dos transtornos psíquicos, isso porque neurose é um termo histórico. De forma geral, Jung não criou uma nomenclatura específica para se referir aos transtornos mentais,  muitas vezes ele recorria a nomenclatura psicanalítica, pois era uma nomenclatura comum e que todos entendiam, apesar dela remetar a concepção de estrutura. Atualmente, é comum utilizar o CID-10, que apresenta uma concepção descritiva, relacionando o nome aos sintomas observados.

Referências Bibliográficas

JUNG, A PRATICA DA PSICOTERAPIA,Petrópolis: Vozes, 1999.

Jung, O DESENVOLVIMENTO DA PERSONALIDADE,Petrópolis: Vozes, 2006

JUNG, C.G. Freud e a Psicanálise. Petrópolis: Vozes, 1989.

JUNG, Civilização em Transição,Petrópolis: Vozes, 2000.

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