Envelhecimento, Invalidez e Individuação 

O envelhecimento é um processo natural. Entretanto, a forma como lidamos com ele é construída socialmente.  O tempo, o espírito da época, transforma a forma como vemos, cuidados e sentimos as diferentes etapas de nosso desenvolvimento.   

Estamos vivendo uma mudança de paradigma em relação ao envelhecimento, pois a expectativa de vida e o envelhecimento da população são realidades. Segundo o IBGE (2024), a expectativa de vida do brasileiro em 1991 era de 66 anos e a projeção para 2030 é que seja de 79 anos, com o Brasil chegando a ter a quinta maior população idosa do mundo.   

O envelhecimento seja na esfera coletiva ou individual exige atenção e cuidados. O envelhecimento é etapa da vida, isto é, parte do processo de desenvolvimento do indivíduo que, como nas outras etapas, possui características próprias. 

O desenvolvimento adulto, na psicologia analítica, é compreendido à luz do processo de individuação, que abre possibilidades para pensarmos a envelhescência, velhice e morte. A esse respeito, Aniela Jaffé aponta que “o processo de individuação, em última análise, não é uma mera escola de vida, mas quando bem compreendido, uma preparação para a morte.” (JAFFÉ, 1989, p.12) 

Envelhecimento e individuação 

A envelhescência é nome dado ao período intermediário entre a maturidade e a velhice, que vai dos 40 até os 65 anos. É uma fase em que profundas transformações físicas, sociais e psíquicas ocorrem, às quais nos referimos quando falamos do processo de individuação. Jung chama atenção ao processo psíquico de envelhecimento dizendo que  

O homem que envelhece deveria saber que sua vida não está em ascensão nem em expansão, mas um processo interior inexorável produz uma contração da vida. Para o jovem constitui quase um pecado ou, pelo menos, um perigo ocupar-se demasiado consigo próprio, mas para o homem que envelhece é um dever e uma necessidade dedicar atenção séria ao seu próprio si-mesmo. (JUNG, 2000, 348-9) 

Renunciar à ascensão e expansão é um desafio, especialmente em nossa cultura que valoriza apenas produção exterior e, uma não produtividade interior, uma produção de sentido. O declínio, como Jung indicava, pertence a vida e precisa ser integrado, ele afirmou que 

Do meio da vida em diante, só aquele que se dispõe a morrer conserva a vitalidade, porque na hora secreta do meio-dia da vida se inverte a parábola e nasce a morte. A segunda metade da vida não significa subida, expansão, crescimento, exuberância, mas morte, porque o seu alvo é o seu término. A recusa em aceitar a plenitude da vida equivale a não aceitar o seu fim. Tanto uma coisa como a outra significam não querer viver. E não querer viver é sinônimo de não querer morrer. A ascensão e o declínio formam uma só curva. (JUNG, 2000. P.359-360) 

Acolher a morte e as limitações são desafios da segunda metade da vida. Assim, podemos considerar que o processo de individuação é marcado pelo horizonte da morte, isto é, tem nele seu principal disparador.  Quando falamos da morte nos referimos tanto a dimensão da finitude do indivíduo quanto as perdas que limitam a vida, assinalando a proximidade da morte.   

A aceitação da finitude é inerente ao processo de individuação. Este é notoriamente associado à crise da meia idade e a mudança de atitude diante da vida (metanoia), que propicia o amadurecimento e uma perspectiva mais ampla da vida (a constelação do Self). Esse processo possibilita a vivência do bem-estar velhice. Por bem-estar psicológico nos referimos a: 

  • Autoaceitação – implica em uma atitude positiva em relação a si próprio e à sua vida passada, em reconhecer e aceitar diversos aspectos de si mesmo, incluindo características positivas e negativas. 
  • Crescimento pessoal – estar aberto a novas experiências, ter um senso de crescimento contínuo, de realização do potencial pessoal e um senso de autorrealização. 
  • Propósito de vida – ter metas e objetivos que dão um sentido de direção à vida. O indivíduo possui crenças que dão propósito à vida e que a torna significativa. 
  • Relação positiva com os outros – envolve ter relações confiáveis e de qualidade com os outros, ou seja, uma relação calorosa, empática, satisfatória e verdadeira, inclusive voltada para o bem-estar alheio. 
  • Domínio sobre o ambiente – ter um senso de domínio e competência para manejar o ambiente e aproveitar as oportunidades que surgem à sua volta, ser capaz de manejar as demandas da vida diária e do mundo ao redor. Ser hábil para escolher ou criar contextos apropriados às suas necessidades e valores. 
  • Autonomia – significa ser autodeterminado, independente e hábil para seguir suas próprias convicções e resistir às pressões sociais para pensar e agir de determinada maneira. (NERI, 2002, p. 3) 

 Esses apontamentos que constituem a dimensão o bem-estar são conquistas importantes da vida adulta e contribuem para a sustentação da velhice.  É importante lembrar que, a partir da envelhescência, perdas significativas começam a acontecer e gradativamente se tornam mais frequentes, diminuindo o horizonte exterior e favorecendo ao processo de individuação como um processo de crescimento interior.  

As perdas que atravessamos no processo de envelhecimento, em seu mais aparente, se apresentam sob dois aspectos principais: 

Perdas Físicas:  O corpo passa por um processo gradativo de declínio com mudanças, tanto funcionais quanto estéticas. Havendo a perda do corpo idealizado, do corpo produtivo, e nos deparamos com o possível, isto é, com o corpo vivo.  

Perdas Afetivas: É um período no qual ocorrerem a morte de amigos, cônjuges, parentes. Podem ocorrem perdas de atividades, com mudança no desempenho de papeis sociais (como se faz na síndrome do ninho vazio), com a aposentadoria – com a perda da identidade profissional, ocorre a limitação financeira. 

As perdas físicas e afetivas fortalecem o movimento de contração próprio da envelhescência, convocando o indivíduo a uma atenção maior sobre seu corpo, sobre seus limites e seus hábitos. Confrontando-se a cada momento com o espectro da invalidez e da morte.  
  

Envelhecimento e o Arquétipo do inválido 

Os limites impostos pelo envelhecimento nos colocam diretamente em contato com a dimensão da invalidez, que é um fenômeno humano universal.  Por isso, podemos falar de um arquétipo da invalidez ou do inválido. Para Guggenbhül-Craig pensar o arquétipo do inválido para uma crítica da forma como lidamos com a saúde e, assim, a dificuldade de temos em lidar com as limitações próprias da vida. Segundo ele,  

Primeiramente, precisamos reconhecer que tanto a saúde como a invalidez são fantasias arquetípicas e em segundo, que a totalidade foi identificada unilateralmente com saúde. A saúde foi até absorvida pela totalidade, a totalidade como sinônimo de não comprometimento da função e pleno desempenho de seus poderes mentais e físicos, não deixou lugar para a fantasia da invalidez. Nossa fantasia de totalidade é unilateralmente “saudável” e nossa fantasia de saúde se tornou tão total que deixou de ser verdadeiramente saudável. De acordo com a fantasia de saúde contemporânea, devemos nos tornar sãos; qualquer defeito, mau funcionamento deve ser superado. Em outros tempos, as pessoas prosseguiam através da vida com um temperamento melancólico; hoje as mesmas pessoas têm que engolir fortes medicamentos até que se tornem descontraídas e estupidamente felizes. Por sabermos que no fundo somos todos parcialmente inválidos para sempre, tentamos rejeitar este conhecimento e negar este arquétipo. Trabalhamos ininterrupta e inutilmente para manter a saúde a qualquer preço. (GUGGENBHUL-CRAIG, 1983, p103) 

A fantasia de saúde e totalidade se tornaram desafios tão grandes ao envelhecimento saudável que, em 2019, a Organização Mundial de Saúde (OMS) sugeriu classificar a velhice como doença na edição 11o do CID, contudo em 2022 voltou atrás excluindo a velhice do CID-11.  Essa tentativa de patologizar a velhice expressa a incapacidade que temos de lidarmos com limites e impossibilidades que nos fazem parte de nossa vida.  O arquétipo do inválido se manifesta em diferentes momentos de nossa vida, contudo, na velhice ele se torna uma realidade inevitável. O arquétipo da invalidez não conduz à morte, mas ao limite e impossibilidade. O arquétipo do inválido  

 se opõe à soberba e promove a modéstia. A fraqueza humana é compreendida em sua plenitude por essas pessoas e assim torna-se possível um tipo de espiritualização. Elas vivem continuamente com um tipo de memento mori; estão sempre se confrontando com a decadência de seu próprio corpo não se vê aquela ambição centrada em si mesmo, baseada no corpo. É um arquétipo que constela em outras pessoas bondade e paciência. Por ser tão humano pode o arquétipo ser muito humanizador. Saúde, portanto, é própria dos Deuses – e aí está o perigo. O complexo de Deus ligado ao arquétipo da saúde transparece no fanatismo com o qual a saúde é cultivada.  (idem, p.102)  

A integração da dinâmica arquetípica do inválido faz parte do processo de individuação na velhice Todos os arquétipos expressam um aspecto importante da vida e, assim, expressam o Self.  A fantasia de saúde e totalidade descritas por Guggenbhül-Craig apontam para a profunda negação do ciclo da vida, tornando cada vez mais difícil experienciar a vida em seus limites, imperfeições e declínio.   

O trabalho clínico com idosos é uma clínica da individuação em sua dimensão mais profunda. É a celebração da vida vivida e seu encontro o mistério da morte. Isso exige do analista seja capaz de acolher os limites, da invalidez e da morte para auxiliar os pacientes em sua descida. O processo de individuação exige um amor fati, ao amor ao destino, no qual aceitar a morte e a invalidez como destino é viver a vida em plenitude.  

Referências 

GUGGENBHÜL-CRAIG, Adolf. O Arquétipo do Inválido e os limites da Cura, in JUNGUIANA – Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 1983. 

IBGE, Em 2023, expectativa de vida chega aos 76,4 anos e supera patamar pré-pandemia, publicado em 29/11/2024. Disponível em https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/41984-em-2023-expectativa-de-vida-chega-aos-76-4-anos-e-supera-patamar-pre-pandemia. Acesso em 17/02/2025. 
JAFFÉ A., FREY-ROHN L., FRANZ M-L.VON, Morte à luz da psicologia analítica, São Paulo: Cultrix, 1989. 

JUNG, C. G, Natureza da Psique, Petrópolis: Vozes, 2000. 

NERI, A.L, Maturidade e Velhice. Desafios Individuais e socioculturais in MONTEIRO, D. M.R, Depressão e Envelhecimento saídas criativas, Rio de Janeiro: REVINTER, 2002. 

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Fabrício Fonseca Moraes (CRP 16/1257). Psicólogo clínico junguiano graduado pela Ufes. Especialista em Psicologia Clínica e da Família pela Faculdade Saberes; especialista em Teoria e Prática Junguiana pela Universidade Veiga de Almeida e especialista em Acupuntura Clássica Chinesa IBEPA/FAISP; com formação em Hipnose Ericksoniana pelo Instituto Milton Erickson do Espírito Santo. É professor e diretor do CEPAES. Atua desde 2004 em consultório particular. .

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