16 de fevereiro de 2011
Na Grande Vitória, o amor pelo carnaval é tão grande não que um carnaval é pouco. Assim, o carnaval de Vitória começa uma semana antes, com os desfiles das escolas de samba, blocos e bailes.
O carnaval é uma das festas populares mais importantes em nosso país, mobilizando todos os setores de nossa sociedade. Sua importância é notada no famoso dito popular “O ano só começa depois do carnaval”.
Entretanto, muito tempo antes de nosso dito popular, o carnaval já era um marcador do tempo, pois, era uma festa que se colocava no limiar tempo profano, cujo encerramento era/é o inicio do tempo o inicio da quaresma.
O termo carnaval não possui uma origem específica.
De onde teria surgido a palavra Carnaval? Não há consenso entre os pesquisadores a respeito da real origem dessa palavra tão benquista por nós. Sou de opinião que a origem esteja na expressão italiana: carnevale, com o significado de :adeus carne, seja a carne como alimento, seja o prazer do amor carnal. O dicionário etimológico registra o seguinte:
Carnaval: período anual das festas profanas; os três dias imediatamente anteriores à quarta-feira de cinzas, dedicados a folias e folguedos.
Foi no século XI que a Igreja Católica implantou a Semana Santa, antecedida por um período de 40 dias de jejum e abstinência de carne.Os três dias imediatamente anteriores à quarta-feira de Cinzas passaram a ser dedicados ao que se chamou de carnevale, no italiano, depois carneval no francês, até 1652 e depois Carnaval. O carnaval tal como o conhecemos surgiu na França.
Há historiadores que defendem a ideia de que a palavra teria surgido da expressão currus navalis,ou seja, carro naval, com base nos cortejos marítimos ou carros alegóricos em forma de barcos que marcavam o início da estação da primavera, na Grécia e em Roma. (PERNANBUCO,2010)
Como podemos ver, a festa de carnaval, “o adeus a carne”, que antecedia o período de expiação e penitência, isto é, conscientização que antecede(ia) a Páscoa (que é um renascimento). Um período onde havia um mergulho nos prazeres “da carne” antes da purificação espiritual. Não demos deixar de notar que um todos termos aplicados ao carnaval é a folia, do francês folie, loucura, delírio ou êxtase.
Muitas vezes, focalizamos no carnaval apenas uma loucura sexual, contudo, esta é apenas uma parte do que esse fenômeno cultural nos constela, pois, o carnaval possui em sua essência a liberdade de ser e sonhar. Uma das formas de compreendermos, pela via junguiana, essa liberdade “irreverente” do carnaval é pensando na figura do Trickster, uma das personificações da Sombra Coletiva.
Trickster e o Carnaval
Em português, Trickster poderia ser traduzido como “vigarista’, “embusteiro”, “enganador”. Contudo, todas essas possibilidades de tradução são se aplicam bem a essa representação arquetípica, pois, o trickster é uma figura extremamente ambivalente, não podendo ser bem caracterizado nem como negativo nem como positivo. Ele transita entre o bem e o mal, entre o correto e o incorreto.
O “trickster” é um ser originário “cósmico”, de natureza divino-animal, por um lado, superior ao homem, graças à sua qualidade sobre-humana e, por outro, inferior a ele, devido à sua insensatez inconsciente. (JUNG, 2000,p.259)
Na mitologia e nos contos de fadas, o trickster é representado como personagens peculiares, pois, se colocam a margem da história, independentes ou mesmo egoístas, que não preocupam com o herói ou com a nobreza de sua missão, eles quase sempre cobram um preço pela “ajuda”, que geralmente conduz o herói a caminhos sempre mais perigosos – e por, consequência, a um desenvolvimento muito maior.
Nos mitos o Trickster aparece de várias formas, na mitologia dos dos indios norte-americanos o trickster era comumente representado pelo Corvo ou Coióte. Na mitologia Grega, o representante do trickster, por excelência, é Hermes (o mercúrio dos romanos), frequentemente chamado de enganador, era o mensageiro dos deuses, o deus dos ladrões e do viajantes.
Na mitologia afro-brasileira do candomblé, o Trickster é representado por Exu é um dos orixás mais importantes, responsável pela comunicação entre os homens e orixás. Exu é exigente, quando tratado com respeito, ele pode ser benevolente e cuidadoso. Quando afrontado, é vingativo. Os cristãos associaram equivocadamente a Lucifer/diabo, contudo, era um grande equivoco, pois, Exu nunca foi um opositor dos homens, pelo contrario, sempre ajudou muito abrindo os caminhos e possibilitando a relação entre os dois mundos.
Para uma visualização mais próxima, no cinema, um dos melhores exemplos de trickster é o personagem Jack Sparrow, de piratas do Caribe, circula na zona limítrofe do certo e do errado, levando sempre seus companheiros a maiores perigos, fica entre o herói e o bandido.
Assim, o trickster possui um aspecto perigosamente atraente e sedutor, muitas vezes espirituoso, quase ingênuo ou bobo(como, em sua representação na forma de palhaço). Entretanto, não se pode perder de vista que trickster, é uma personificação da Sombra Coletiva, que vai sempre indicar o caminho para a integração da sombra pessoal, ou, em outras palavras, o processo de individuação.
Não poderíamos esperar de forma alguma que tais conteúdos se solidificassem por própria conta, em uma figura mítica com um ciclo particular de lendas, a não ser que recebessem energia de fora; neste caso, diretamente da consciência mais elevada ou da fonte inconsciente que ainda não se tivesse esgotado. Se colocarmos esta questão, o que é possível e permitido, em paralelo com um caso individual correspondente, uma impressionante e paradoxal figura da sombra – posta em confronto com uma consciência pessoal – não comparece pelo fato de existir ainda, mas por repousar num dinamismo, cuja existência só pode ser explicada a partir da situação presente: por exemplo, porque ela é tão antipática à consciência do eu que deve ser recalcada no inconsciente. Tal explicação não serve totalmente para o nosso caso, na medida em que o “trickster” representa manifestamente um grau de consciência em vias de extinção, ao qual falta cada vez mais a força para configurar-se e evidenciar-se.Além disso, o recalque impediria sua extinção, uma vez que o conteúdo reprimido tem justamente as melhores condições de conservar-se, posto que no inconsciente, conforme mostra a experiência, nada é corrigido. Acrescenta-se ainda o fato de que na consciência índia a história do “trickster” não é incompatível, nem antipática, mas sim prazerosa, não convidando por isso à repressão. Parece, pelo contrário, que o mito estaria apoiado e cuidado pela consciência. E isto deve ser assim, uma vez que tal fato representa o melhor método e o mais bem-sucedido, de manter consciente a figura da sombra e assim expô-la à crítica da consciência. Apesar desta última não apresentar abertamente um caráter negativo, mas o de uma apreciação positiva, podemos esperar que, com o progressivo desenvolvimento da consciência, os aspectos mais rudes do mito diminuam pouco a pouco, ainda que não haja o perigo de um desaparecimento rápido do mesmo, como resultado da colisão com a civilização dos brancos. Vimos freqüentemente como certos costumes originariamente cruéis ou obscenos se volatilizaram no decorrer do tempo, tornando-se meros vestígios.
Este processo de tornar os costumes inofensivos, como mostra a história do motivo, leva muito tempo, de tal forma que mesmo em níveis elevados de civilização ainda encontramos seus vestígios. Esta longevidade poderia ser explicada pela força e vitalidade do estado de consciência relatados no mito e ainda presentes, e que produzem uma participação e fascínio secretos da consciência. (JUNG, 2000,260-1)
O arquétipo da Sombra geralmente é associado com sua representação do “opositor” ou do “mal”,( cuja, imagem mais conhecida seria o diabo). O que necessário compreendermos que é que os arquétipos constituem um sistema complexo que não podemos restringir a esta ou aquela imagem.
O Trickster é a manifestação da Sombra que entra um contato com a consciência, que convida a consciência ao confronto com o inconsciente. As “armadilhas” do trickster sempre se colocam como uma um desafio ao herói/consciência,que quando superado resulta num aprendizado, que contribui com o processo de individuação.
O carnaval é festa intimamente relacionada a este aspecto tricksteriano da Sombra, pois, comumente no carnaval há uma espirituosa e jocosa inversão de valores, os excessos e os prazeres sensuais, as brincadeiras com celebridades e políticos, estamos penetrando no reino da folie da Sombra. Esses aspectos são mais claramente percebidos nas fantasias muitas vezes expostas notravestismo(os famosos “blocos das piranhas”, muito comum em nosso carnaval, não deve ser compreendido como sendo apenas fantasias homossexuais, mas, também como uma abertura ao âmbito da Anima, muitas vezes, nos distanciamos em nossas vidas cotidianas. E, por isso é tão marcante e sempre presente. Obviamente, por ser marcado pelo Trickster, o carnaval é ambivalente, podendo ser uma armadilha para muitos. Como já dissemos acima, nos mitos, o Trickster frequentemente cobra por sua ajuda, assim, a liberdade do carnaval muitas vezes tem um preço.
Por outro lado, o carnaval possui um brilho de esperança. Quando vemos desfiles de escolas de Samba, vemos não só o brilho das fantasias, mas, o brilho nos olhos do membros das escolas. No carnaval, para as comunidades, o sonho encontra a realidade. E, os símbolos constelados pelo carnaval dão um sentido e significado na vida dessas pessoas que possibilita que elas vivam e sonhem por mais um ano, na espera de um novo carnaval.
Assim como o Trickster traz em si as ambivalências do divino e do animal, do herói e do vilão, o carnaval também oferece as mais diversas e belas possibilidades e riscos, nos colocando no limiar das escolhas – internas e externas; no pórtico da Sombra.
Muitas vezes associamos o conceito de Sombra somente a algo negativo ou nocivo, tanto por estar conceitualmente associado aos elementos que foram excluídos da identidade do Ego e da consciência, quanto por estar relacionado com a representação arquetípica do opositor/adversário, que identificamos como sendo o ‘diabo’ . Essa concepção é correta, porém, não corresponde a toda complexidade do conceito da Sombra.
Se antes se admitia que a sombra humana era a origem de todos os males, de agora em diante, mediante acurada observação, descobrir que o individuo inconsciente, ou seja, a sombra, não é constituída apenas de tendências moralmente repreensíveis, mas apresenta um certo número de boas qualidades: instintos normais, reações adequadas, impulsos criadores, e outros.( JUNG, 1986, 254-5)
A figura do Trickster é uma representação transcendente da Sombra, que se comunica em diferentes níveis. Por mais ambíguo que seja, o trickster é sempre um aliado, um impulso a individuação. Seja nos mitos, nos sonhos,o trickster sempre se manifesta como um convite a integração da Sombra, pois, ele é um símbolo unificador, a manifestação da tendência natural da sombra em se integrar a totalidade psíquica. Esse é o motivo pelo qual Jung afirma que o Trickster é tolerado e nutrido pela consciência coletiva. Sua numinosidade sempre aponta para um caminho de luz e trevas, um caminho criativo, um caminho do meio.
uma conclusão pessoal…
Em nossa cultura marcada pela tradição judaico-cristã, muitas vezes perdemos com o aspecto criador da sombra e da figura trickster, justamente, por evita-los de forma quase que sistemática, e assim é mais provável que nos tornemos vulneráveis a Sombra.
Minha formação foi protestante e o carnaval sempre algo a ser evitado. Quando adulto, eu nunca vi sentido no Carnaval, em desfiles de escolas de samba, ou sambas enredos. Achava apenas uma bela manifestação cultural. Até no ano passado, surgiu a possibilidade (meio que a contragosto) de assistir no camarote o desfile do grupo especial das Escolas de Samba de Vitória. como acredito que as oportunidades devem sem aproveitadas e vividas… fui. Sei apenas que quando a bateria da primeira escola de samba passou em frente ao camarote, fiquei perplexo.
Pude sentir literalmente a vibração do carnaval. Escola após escola, pude sentir a numinosidade do carnaval. Pude olhar o carnaval por uma outra ótica, e me perceber com um outro olhar. Perceber símbolos que me mobilizaram e ainda me mobilizam. Foi uma experiência transformadora. Mais do que nunca eu defendo as palavras de Jung,
Portanto, quem quiser conhecer a psique humana infelizmente pouco receberá da psicologia experimental. O melhor a fazer seria [pendurar no cabide as ciências exatas, despir-se da beca professoral, despedir-se do gabinete de estudos e caminhar pelo mundo com um coração de homem: no horror das prisões, nos asilos de alienados e hospitais, nas tabernas dos subúrbios, nos bordéis e casas de jogo, nos salões elegantes, na Bolsa de Valores, nos “meetings” socialistas, nas igrejas, nas seitas predicantes e extáticas, no amor e no ódio, em todas as formas de paixão vividas no próprio corpo, enfim, em todas essas experiências, ele encontraria uma carga mais rica de saber do que nos grossos compêndios.
Então, como verdadeiro conhecedor da alma humana, tomar-se-ia um médico apto para ajudar seus doentes. Poder-se-ia perdoar-lhe o pouco respeito pelas assim chamadas “pedras angulares” da psicologia experimental. Pois entre o que a ciência chama de “psicologia” e o que a práxis da vida diária espera da “psicologia” “há um abismo profundo”. (JUNG,2001, p.112-3 )
É importante frisar que “ser um conhecedor da alma humana”, implica no exercício contínuo de buscar conhecer a própria alma. E, é vivendo as experiências mais diversas que novas portas se abrem em nossas vidas e, assim, amadurecemos.
Termino este post, prestando meu respeito a todas as escolas de samba de da Grande Vitória! Desejo a todas um carnaval criativo, desejo que façam o melhor e mais belo carnaval de todos tempos. Para assim, tornar inesquecível do titulo deste carnaval, que espero seja da Unidos de Barreiros.
Referencias bibliográficas
PERNAMBUCO, J. , O Carnaval e a Etimologia, em: Professor Juscelino<http://www.professorjuscelino.com.br/blog/?id=55&titulo=O-CARNAVAL-E-A-ETIMOLOGIA>. Publicado em 28/02/2010. Acesso em: 12 Fevereiro de 2011.
JUNG, C.G. Aion – Estudos sobre o simbolismo do Si-mesmo, Petropolis, RJ, 1986.
___________ Os arquétipos e o Inconsciente Coletivo, Petropolis: Vozes, 2000.
______________. Psicologia do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 13ed. 2001.
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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)
Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos” Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.
Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes