Pensando a Relação com o Inconsciente a partir do Conto “O Sapateiro e os Duendes”

(16 de abril de 2012)

(Agradeço a psicóloga Giuliana de Paula Oliveira. por sua participação no insight que me trouxe a este post. Sucesso!)

O Sapateiro e os Duendes

Era uma vez um sapateiro que trabalhava duro e era muito honesto. Mas nem assim ele conseguia ganhar o suficiente para sobreviver. Até que, finalmente, tudo que ele tinha no mundo se foi, exceto a quantidade de couro exata para ele fazer um par de sapatos. Ele os cortou e deixou preparados para montar no dia seguinte, pretendendo acordar de manhã bem cedo para trabalhar. Apesar de todas as dificuldades, tinha a consciência limpa e o coração leve, por isso foi tranquilamente para a cama deixando seus problemas aos cuidados dos céus, e adormeceu. De manhã cedo, depois de dizer suas orações, preparava-se para fazer seu trabalho, quando, para seu grande espanto, ali estava os sapatos já prontos, sobre a mesa. O bom homem não sabia o que dizer ou pensar sobre aquele estranho acontecimento. Examinou o acabamento: não havia sequer um ponto falso no serviço todo e era tão bem-feito e preciso que parecia uma perfeita obra de arte.

Naquele mesmo dia apareceu um cliente e os sapatos agradaram-lhe tanto, que teria pago um preço muito acima do normal por eles; e o pobre sapateiro, com o dinheiro, comprou couro suficiente para fazer mais dois pares. Naquela noite cortou o couro e não foi para a cama tarde porque pretendia acordar e começar cedo o trabalho no dia seguinte: mas foi-lhe poupado todo o trabalho, pois quando acordou, pela manhã, o trabalho já estava feito e acabado. Vieram então compradores que pagaram generosamente por seus produtos, de modo que ele pôde comprar couro suficiente para mais quatro pares. Ele novamente cortou o couro à noite, e encontrou o serviço acabado pela manhã, como antes; e assim foi durante algum tempo: o que era deixado preparado à noite estava sempre pronto ao nascer do dia, e o bom homem prosperou novamente.

Certa noite, perto do natal, quando ele e a mulher estavam sentados perto do fogo conversando, ele lhe disse:

-” Gostaria de ficar observando esta noite para ver quem vem fazer o trabalho por mim.”

A esposa gostou da idéia. Eles deixaram, então, uma lâmpada ardendo e se esconderam no canto do quarto, por trás de uma cortina, para observar o que iría acontecer. Quando deu a meia noite, apareceram dois anõezinhos nus que se sentaram na bancada do sapateiro, pegaram o couro cortado e começariam a preguear com seus dedinhos, costurando, martelando e remendando com tal rapidez que deixaram o sapateiro boquiaberto de admiração; o sapateiro não conseguia despregar os olhos do que via. E assim prosseguiram no trabalho até terminá-lo, deixando os sapatos prontos para o uso em cima da mesa. Isto foi muito antes do sol nascer; logo depois eles sumiram depressa como um raio.

No dia seguinte, a esposa disse ao sapateiro:

– “Esses homenzinhos nos deixaram ricos e devemos ser gratos a eles, prestando-lhes algum serviço em troca. Fico muito chateada em vê-los correndo para cá e para lá como eles fazem, sem nada para cobrir as costas e protegê-los do frio. Sabe do que mais vou fazer uma camisa para um, e um casaco, e um colete, e um par de calças em troca; você fará para cada um deles um sapatinho”.

A idéia muito agradou o bom sapateiro e, certa noite, quando todas as coisas estavam prontas, ele as puseram sobre a mesa em lugar das peças de trabalho que costumavam deixar cortadas e foram se esconder para observar o que os duendes fariam. Por volta de meia-noite, os anões apareceram e iam sentar-se para fazer o seu trabalho, como de costume, quando viram as roupas colocadas para eles, o que os deixou alegres e muito satisfeitos. Vestiram-se, então, num piscar de olhos, dançaram, deram cambalhotas e saltitaram na maior alegria até que finalmente saíram, dançando pela porta para o gramado, e o sapateiro nunca mais os viu: mas enquanto viveu, tudo correu bem para ele desde aquela época.

Retirado de http://www.aterp.com.br/o-sapateiro-e-os-duendes.htm

Para mim esse conto é muito especial, pois, sempre que o leio eu vejo a compreensão junguiana acerca da relação com o inconsciente. Isso porque uma das principais características dos junguianos é a confiança no inconsciente. É a confiança no princípio autorregulador da psique.

Nesse conto, eu vejo no velho sapateiro honesto um belo exemplo ego e da consciência, que em sua ação cotidiana e diurna possui limites naturais, pois, o ego e a consciência por si mesmos não são autossuficientes. Devemos notar que nesse conto não indica uma atitude neurótica, pois, o velho sapateiro “trabalhava duro e era muito honesto”  e “Apesar de todas as dificuldades, tinha a consciência limpa e o coração leve, por isso foi tranquilamente para a cama deixando seus problemas aos cuidados dos céus”.

Por outro lado, a noite é representação mais propícia do mergulho no inconsciente, caracterizada pelo sono. No conto, quando o sapateiro desperta, faz suas orações, e ele descobre um par de sapatos, produzidos naquela noite. Assim, como os sonhos são produtos ou presentes dados a consciência pelo inconsciente.

De aberto a colaboração do desconhecido (=inconsciente) o sapateiro continua realizado seu trabalho e acolhendo e utilizando da melhor forma os sapatos que recebe, de forma, a se enriquecer ou poder prosperar. Aceitar e se permitir a relação com o inconsciente possibilita o enriquecimento simbólico/energético da consciência, estruturando e vitalizando o ego.   

A esse respeito, Jung nos diz algo bem interessante,

Quando conseguimos estabelecer a função denominada fun­ção transcendente, suprime-se a desunião com o inconsciente e então o seu lado favorável nos sorri. A partir desse momento, o inconsciente nos dá todo o apoio e estímulo que uma natu­reza bondosa pode dar ao homem em generosa abundância. O inconsciente encerra possibilidades inacessíveis ao conscien­te, pois dispõe de todos os conteúdos subliminais (que estão no limiar da consciência), de tudo quanto foi esquecido, tudo o que passou despercebido, além de contar com a sabedoria da experiência de incontáveis milênios, depositada em suas estruturas arquetípicas.

O inconsciente está em constante atividade, e vai combi­nando os seus conteúdos de forma a determinar o futuro. Pro­duz combinações subliminais prospectivas, tanto quanto o nosso consciente; só que elas superam de longe, em finura e alcance, as combinações conscientes. Podemos confiar ao inconsciente a condução do homem quando este é capaz de resistir à sua sedução.(JUNG, 2001, p. 106)

A última frase de Jung é especialmente interessante “Podemos confiar ao inconsciente a condução do homem quando este é capaz de resistir à sua sedução” . Vejamos no conto, na véspera do natal, o sapateiro e sua esposa se escondem para ver o que acontecia na oficina, ficando surpresos com os dois duendes nus, que faziam tão primoroso trabalho. É importante notar que o fato deles estarem nus, indica que eles era seres próprios da natureza. Frente aquela cena o pensamento deles é “recompensar”, “presentear” com roupas aqueles seres fantáticos. Isso é resistir a tentação.  Eles não pensaram em explorar ou dominar aquelas criaturas, se guiando pela riqueza que eles poderiam ter com os duendes.

Mas, eles optaram por respeitar os duendes oferencendo presentes, roupas. As quais os duendes vestem, brincam e voltam para a noite, sem perder suas características. Estabelecendo um acordo respeitoso. A relação com o inconsciente para ser frutifera precisa ser equilibrada, compreendo o que o inconsciente nos diz, percebendo suas formações de forma objetiva – como os duendes. Jung afirma que , 

Um dos requisitos essenciais do processo de confrontação é que se leve a sério o lado oposto. Somente deste modo é que os fatores reguladores poderão ter alguma influência em nossas ações. Tomá-lo a sério não significa tomá-lo ao pé da letra, mas conceder um crédito de confiança ao inconsciente, proporcionando-lhe, assim, a possibilidade de cooperar com a consciência, em vez de perturbá-la automaticamente. 
A confrontação, portanto, não justifica apenas o ponto de vista do ego, mas confere igual autoridade ao inconsciente. A confrontação é conduzida a partir do ego, embora deixando que o inconsciente também fale — audiatur et altera pars [ouça-se também a outra parte]. (JUNG, 2000, p.20-1)

Esse aspecto de respeitar o inconsciente e suas “mensagens” é fundamental. Muitas vezes, sonhamos ou mesmo somatizamos e afirmamos “Ah! Eu estou apenas somatizando”, como se a somatização fosse uma produção do Ego ou como se a somatização não estivesse dizendo nada! Um dos maiores perigos que corremos é de cometermos a “apropriação indébita” das produções do inconscientes, creditando-as ao Ego. Em outras palavras, seria mais adequado dizer “eu recebi um sonho” e não “Eu sonhei”. Pois, somente com a devida atenção podemos garantir o distanciamento ou objetividade necessária para lidar respeitosamente com o inconsciente. Essa relação gera um equilibrio saudável, uma sensação de integridade ou “inteireza”. É justamente, como o conto nos narra, “sapateiro nunca mais os viu: mas enquanto viveu, tudo correu bem para ele desde aquela época”.

A confiar no inconsciente é confiar na potencia de vida que reside no interior de cada um nós, que mesmo em meio a dor e ao sofrimento, busca o desenvolvimento e o   amadurecimento.

Rerefências Bibliográficas

JUNG, C.G. Psicologia do Inconsciente, Vozes: Petrópolis, 2001

_________. A Natureza da Psique. Petrópolis: Vozes, 5. Ed. 2000.

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

www.psicologiaanalitica.com

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