Religião, Espiritualidade, Ética e Psicoterapia: uma reflexão junguiana

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O Texto foi revisado em 27/09/24

A experiência religiosa é um aspecto fundamental de nossa vida social e pessoal. A partir dela nos orientamos pela crença, descrença ou indiferença, dando contornos e modelando a forma como estabelecemos nossas relações interpressoais, a escolha dos grupos que particiamos, a forma como nos compreendemos como individuos e nossa função social. Esses modelos podem vir de uma perspectiva moral, doutrinária oriunda da tradição e da instituição religiosa ou numa perspectiva ética onde a partir da experiência pessoal com o sagrado, da reflexão e relações o individuo faz suas escolhas.

Apesar da grande importância na vida das pessoas, muitos profissionais e abordagens dentro da psicologia tendem a ver a religiosidade das pessoas com excessiva reserva. Por vezes, estudantes de psicologia já me questionaram sobre eu falar abertamente a relação entre a religião/ religiosidade/espieitualidade e psicologia, pois na faculdade o “professor falou que não podia falar de religião com o paciente” ou que “falar de religião no consultório é anti-ético”.

De fato, essas falas se devem a uma interpretação rígida do artigo 2, alinea b do Código de Ética do Profissional da Psicologia e de uma visão equivocada ou mesmo o desconhecimento acerca do fenômeno religioso. Vejamos o que diz o

Art. 2. Ao psicólogo é vedado

b) Induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas,religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais;

O artigo 2 alinea b do código de ética não é “contraria a religião” como alguns fazem parecer, este é um artigo que basicamente conversa com o artigo 5o da Constituiçao Federal que versa em defesa da liberdade de opinião, crenças, orientação sexual, da individualidade, autodeterminação do cidadão. Assim, o código de ética resguarda de liberdade do paciente, compreendendo que o paciente ao buscar a psicoterapia pode estar numa situação de vulnarabilidade, cabendo ao profissional respeita-lo, não se aproveitar da relação terapeutica para qualquer tipo de proselitismo.

Deste modo, o código de ética indica que o profissional precisa compreender e respeitar as crenças do paciente sem induzir ou impor as próprias crenças pessoais ao processo terapeutico do paciente. Ressaltando que a indução a crença ou descrença é igualmente condenado pelo código de ética.

A respeito da relação entre Psicologia e Religião o Conselho Federal de Psicologia, em 2013, produziu um documento chamado “Posicionamento do Sistema Conselhos de Psicologia Para a questão da Psicologia, Religião e Espíritualidade” nele temos considerações importantes, que dizem:

VII .Mas pautar-se na obrigatória laicidade não implica negar uma interface que pode ser estabelecida pela psicologia e a religião, e pela psicologia e a espiritualidade.
VIII. A religião é um dos elementos mais complexos e irredutíveis da tessitura das culturas.Aborda a relação das pessoas com aspectos transcendentais da existência. Seus fundamentos e práticas orientam de forma significativa as ações humanas. Pessoas e instituições que orientam seu fazer social tendo por referência a religião o fazem, a partir de um pressuposto que reflete suas crenças e, portanto, sua religiosidade.
XI. A busca do fundamento sagrado da vida, daquilo que confere sentido à existência é, entretanto, de ordem espiritual. Desta forma, compreende-se que as religiões se encontram na espiritualidade.
Todavia, a buscado sentido último da existência, não se reduz à religião.
(…)
XI. Reconhecemos a importância da religião, da religiosidade e da espiritualidade na constituição de subjetividades, particularmente num país com as especificidades do Brasil. Neste sentido compreendemos que tanto a religião quanto a psicologia transitam num campo comum, qual seja, o da produção de subjetividades, entendendo ser fundamental o estabelecimento de um diálogo entre esses conhecimentos. Este fator requer da Psicologia toda cautela para que seus conhecimentos, fundamentados na laicidade da ciência, não se confundam com os conhecimentos dogmáticos da religião. Reconhecemos, também, que toda religião tem uma dimensão psicológica e que, apesar da Psicologia poder ter uma dimensão espiritual, ela não tem uma dimensão religiosa, o que nos remete ànecessidade deaprofundarmos o debate da interface da Psicologia com a espiritualidade e os saberes tradicionais e populares, além de buscarmos compreender como a religião se utiliza da psicologia.
(…)
XIV. Todavia, somos terminantemente contrários a qualquer tentativa fundamentalista de imposição de dogma religioso, seja ele qual for, sobre o Estado, a Ciência e a profissão e, a qualquer forma de conhecimento que procure naturalizar a desigualdade social, a pobreza ou o cerceamento dos direitos constitucionais. Por isso, não pouparemos esforços para garantir o estado de direito e as instituições democráticas, compreendendo ser essa a condição sine qua non para a manutenção e o desenvolvimento da saúde psicossocial da população brasileira, base para um processo saudável de subjetivação. (Conselho Federal de Psicologia, 2013)

Nessa mesma direção, visando a proteção da liberdade e dignidade individual o Conselho Federal de Psicologia emitiu a Resolução 07/2023, que estabelece os limites acerca da laicidade da psicologia e os limites do exercicio profissional a fim de garantindo a integridade e dignidade de toda pessoa. Ao estabelecer esse limites, não há uma negação da religião, religiosidade ou espiritualidade, mas uma delimitação que possibilita o dialogo sem que ocorra uma mistura das práticas psicológicas e das concepções religiosas.

Desta forma, devemos compreender e estudar o fenômeno religioso de tal forma que valorizemos a experiência religiosa dos atendidos. Segudo Ávila,

“o termo ‘experiência religiosa’ para designar a experiência imediata e intuitiva de algo ou de alguém que me transcende, que pode ser uma experiência meramente pontual ou uma vivência de fundo, que aparece de forma mais ou menos estável ao longo da vida do individuo. Essa vivência intima e pessoal pode cristalizar-se numa vivência religiosa plena ou não. Pode estruturar-se racionalmente, gerando uma determinada cosmovisão, um corpo de crenças estável, ou deixar-se influenciar, de forma sincrética , pelas distintas ofertas fornecidas pelo ambiente e pela cultura. (AVILA, 2007, p.98)

A vivência religiosa que pode ser funcional, organizadora promovendo saúde ou disfuncional causando adoecimento. Para distingui-las, é necessário compreender o ponto de vista do paciente, suas experiências e os fundamentos que constituem a crenças religiosas e seu modo ser e ver o mundo.

A dificuldade da compreensão da dimensão religiosa trazida pelo paciente(e consequentemente do trabalho ético) se dá pelo desconhecimento dos processos simbólicos saudáveis e transformadores que podem estar associados às narrativas religiosas; desconhecimento da história, da doutrina e dos valores de cada religião ou de das denominação religiosa; desconhecimento acerca fenômenos presentes na religiões como glossolalia (falar em linguas), êxtase, transe, visões e alterações na percepção/sensação como fenômenos que fazem parte do processo religioso e que não devem ser equiparados a fenômenos psicopatológicos.

A pouca ou nenhuma atenção dada pelas faculdades de psicologia aos processos estudados pela psicologia da religião, área que não é delimitada no Brasil, favorece não só ao preconceito, mas a erros na conduta por profissionais que desconhecem formas de abordar a experiência religiosa dos pacientes – misturando a própria experiência religiosa com a experiência do paciente.

Religiosidade e Espiritualidade na Clínica

Como devemos compreender a religiosidade e espiritualidade entra na clínica? Essa questão é fundamental, assim, devemos compreender que essa vivência religiosa varia para cada pessoa, gerando diferentes atitudes. O profissional deveria estar atento às atitudes dos individuos frente religiosidade e a espiritualidade, que poderiam ser descritas como

1 – Pessoas religiosas cuja vivência religiosa é tão significante quanto determinante no seu modo de ser. Assim, sua devoção está sempre presente no discurso, no modo como fala, no modo como se comporta e ouve. Com essas pessoas a atenção aos processos religiosos é importante para se sintam ouvidas e compreendidas em sua fé.

2 – Pessoas religiosas cuja vivência é significante, porém não determinante em sua vida, sendo flexivel e aberta a novas possibilidades independente de sua religiosidade. São pessoas que, apesar de sua vivência religiosa e espiritual serem importantes, estas não serão abordadas na psicoterapia.

3 – Pessoas afastadas de sua matriz religiosa ou em crise de fé, cuja significancia e determinação da experiência religiosa é incerta, podendo ser mais ou menos flexíveis a novas possibilidades. Este é terreno pantanoso devemos ir com cautela, pois é comum que diante de de novas perspectivas diante da vida, podem reagir com medo, culpa e se fecharem, levando levando um retorno defensivo a sua matriz religiosa, por isso, devemos considerar cuidadosamente esses relatos afastamentos e crises de fé.

4 – As pessoas que se afirmam a-religiosas ou ateístas nesse caso, no máximo verificaríamos a história religiosa familiar de sua origem religiosa. O campo religioso não é abordado nesse campo.

Levando em consideração esses fatores, podemos pensar a religiosidade e espiritualdiade em pelo menos três situações: anamnese, linguagem e encaminhamentos/parcerias.

Anamnese: É muito importante verificar se o paciente pratica ou tem alguma referência de religiosidade e espiritualdiade no momento: como é envolvimento pessoal (compreendendo suas crenças) e social (atribuições, cargos, frequência de atividades) e para se ter uma dimensão de como se deve ser dada atenção ao esse aspecto da vida do psciente, assim como qual era a referência religiosa de sua familia durante sua infância. Compreender a origem religiosa do sistema familiar pode nos dar uma perspectiva do desenvolvimento da culpabilidade, preconceitos, temores, fantasias – isso é importante para compreender aspectos históricos e associado aos complexos de pacientes não-religosos quanto verificar (posteriormente) se há conexão com os valores e crenças que o paciente professa no presente e se há signficancia ser abordada no tratamento.

Na area médica, tem crescido o uso de instrumentos designados como “anamnese espirtitual” que são questionários que permintem compreender a crença, a relevancia para o individuo e como ele compreende o papel da religiosidade e espiritualdiade no processo enfrentamento da doença.

Linguagem: Quando verificamos que a religião é um tema significante e recorrente na terapia do paciente, podemos ajustar nossa linguagem tanto de modo a não agredir o paciente, assim como utilizar metaforas/alegorias e figuras de linguagem aos símbolos que fazem parte da universo do paciente.

Isso significa ler, conviver e aprender com pessoas das diferentes religiões que estão em nosso dia a dia. É importante ter noção de narrativa bíblica (nem me refiro a teologia, digo do texto), para atender um evangélico, do mesmo modo ao atender um candomblecista é conhecer o mínimo das caracteristicas dos orixás, preceitos e obrigações; sobre as entidades da umbanda para compreender sua importância para o umbandista.

Encaminhamentos: Em algumas situações é importante conhecer líderes religiosos que possam auxiliar a pessoa do paciente em suas questões de fé, que não cabem ao psicólogo. Assim, caso o paciente não se sinta confortável com seu própria lider religioso, podemos indicar ou encaminhar o paciente para um lider de acordo com a matriz religiosa do paciente.

Ter contatos com líderes religiosos como padres, pastores(as), reverendos(as), pais/mães de santo ajudam ter encaminhamentos que podem auxiliar o paciente suas questões propriamente religiosas. ajudam a podermos pensar em referência religiosas auxiliem caso um paciente precise dentro de sua própria concepção e matriz religiosa. É importante conhecer lideres que possam compreender o trabalho do psicólogo e trabalhar em parceria, mas reconheço infelizmente não são muitos que conseguem essa visão. Compreendendo a saúde em seu aspecto amplo como bem estar fisico, mental, social e espiritual, devereríamos compreender que bons líderes religiosos poderiam ser parceiros – assim como fazemos com outros profissionais da saúde.

A Religião e Espiritualidade na Psicologia Analítica

Jung sempre foi enfático ao afirmar que não defendia uma ou outra confissão religiosa, mas compreendia a religiosidade e espiritualdiade como atitudes do individuo frente ao mistério. O psicólogo não precisa defender ou validar um ponto de vista religioso ou sobrenatural para reconhecer seu valor psiquico para o individuo. Jung dizia

Minha atitude é, portanto, positiva com relação a todas as religiões. No seu conteúdo doutrinário reconheço aquelas imagens que encontrei nos sonhos e fantasias de meus pacientes. Em sua moral vejo as mesmas ou semelhantes tentativas que fazem meus pacientes, por intuição ou inspiração próprias, para encontrar o caminho certo de lidar com as forças psíquicas. O sagrado comércio, os rituais, as iniciações e a ascese são de grande interesse para mim como técnicas alternativas e formais de testemunhar o caminho certo. (JUNG, 1989, p. 326)

Fica evidente que Jung reconhecia na religiosidade e espiritualdiade possibilidades que favorecem o desenvolvimento psiquico que foram se constituindo ao longo da história humana. Com isso, devemos perceber que a vivência religiosa pode oferecer rotinas estrututadas (rituais pessoais saudáveis), construção de uma visão de mundo pessoal (mitologia/simbolismo pessoal), consciência ampliada e autopercepção (práticas meditativas e contemplativas), dentre outras formas possibilitam a elaboração de processos psíquicos internos e externos.

Nessa perspectiva Jung considerava as religiões e a psicoterapia como pares no processo de cura ou elaboração do sofrimento da alma humana. Isso é muito caro à psicologa analítica pois integra a psicoterapia ao universo simbólico do paciente. Isso não é uma questão do profissional ter ou não religião, mas de entender a história, as práticas e as doutrinas religiosas – como dito acima, isso vem com estudo, experiência e disponibilidade para compreender a multiplicidade vivências religiosas. E ter clareza que a clínica não tem a ver com a “nossa” experiência pessoal, mas sempre com a experiência do paciente.

Começamos citando o Código de Ética da Psicologia, contudo, gostaria de concluir com uma citação muito importante de Jung que tantos anos antes repercutia a mesma preocupação expressa veio a ser expressa no artigo 20 aliena b do Código Ética. Ele diz:

(…)o psicoterapeuta está obrigado a um autoconhecimento e a uma crítica de suas convicções pessoais, filosóficas e religiosas, tanto quanto um cirurgião está obrigado a uma perfeita assepsia. O médico deve conhecer sua equação pessoal para não violentar seu paciente” (Jung, 2000, p.154)

Violentamos nosso paciente quando impomos nossas crenças, muitas vezes também o violentamos quando, mesmo por desconhecimento, negamos/rejeitamos suas crenças como parte essencial de sua vida e que podem contribuir para sua saúde. Compreender e respeitar é um princípio fundamental para o exercício profissional – incluindo o lidar com as crenças religiosas dos pacientes.

Referência Bilbiográficas

ÁVILA, Antonio, Para conhecer a Psicologia da Religião, Edições Loyola: São Paulo,SP, 2007.

Conselho Federal de Psicologia – CFP. POSICIONAMENTO DO SISTEMA CONSELHOS DE PSICOLOGIA PARA A QUESTÃO DA PSICOLOGIA, RELIGIÃO E ESPIRITUALIDADE. Disponível em https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2014/06/Texto-aprovado-na-APAF-maio-de-2013-Posicionamento-do-Sistema-Conselhos-de-Psicologia-para-a-questão-da-Psicologia-Religião-e-Espiritualidade-8-2.pdf

JUNG, C.G. Freud e a Psicanálise. Petrópolis: Vozes, 1989.

JUNG,C.G. Civilização em Transição , Petrópolis,: Vozes 2000

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico Junguiano, Supervisor Clínico, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Pós-graduando em Acupuntura Clássica Chinesa (IBEPA/FAISP). Formação em Hipnose Ericksoniana. Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos” Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. / e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/

Twitter:@FabricioMoraes /Instagram @fabriciomoraes.psi

Fabrício Fonseca Moraes (CRP 16/1257). Psicólogo clínico junguiano graduado pela Ufes. Especialista em Psicologia Clínica e da Família pela Faculdade Saberes; especialista em Teoria e Prática Junguiana pela Universidade Veiga de Almeida e especialista em Acupuntura Clássica Chinesa IBEPA/FAISP; com formação em Hipnose Ericksoniana pelo Instituto Milton Erickson do Espírito Santo. É professor e diretor do CEPAES. Atua desde 2004 em consultório particular. .

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