Grupo de estudos junguianos 2024!

A proposta para o primeiro semestre é revisitar textos de Jung visando compreender conceitos fundamentais e amplificá-los à luz da psicologia analítica contemporânea e desenvolvimentista.  

✅ A proposta de textos base para primeiro semestre serão:  

Jung, C.G Sobre o inconsciente – Os arquétipos e o Inconsciente coletivo 

Jung, C.G. Considerações Gerais sobre a teoria dos Complexos – A Natureza da Psique 

Jung, C.G. A Função Transcendente – A Natureza da Psique 

Jung, C.G. O Eu – Aion – Estudos do Simbolismo do Si-Mesmo 

Jung, C.G. A sombra – Aion – Estudos do Simbolismo do Si-Mesmo 

Jung, C.G Sizigia: Anima e Animus – Aion – Estudos do Simbolismo do Si-Mesmo 

Jung, C.G, O si-mesmo Aion – Estudos do Simbolismo do Si-Mesmo 

Jung, C.G, Consciência, inconsciente e Individuação – Os arquétipos e o Inconsciente coletivo 

Obs: Textos poderão ser adicionados ou trocados de acordo com o grupo. 

✅ Como funcionará? A leitura do texto será feita antes do encontro. No encontro será feita uma apresentação geral do texto e será aberto espaço para comentários e dúvidas acerca do texto lido. A partir das dúvidas e comentários serão feitas amplificações. 

✅ Quando nos encontraremos? Nas segundas-feiras, das 20 as 21h30, segundo o cronograma. 

1o. Semestre:  

Fevereiro: 05/02; 19/02 e 26/02 – dia 12/02 é carnaval. 

Março: 04/03; 11/03; 18/03 e 25/03. 

Abril: 01/04; 15/04; 22/04 e 29/04 – em abril 08/04 é festa da penha, feriado em Vitória. 

Maio: 06/05; 13/05; 20/05 e 27/05. 

Junho: 04/06; 10/06 e 17/06 e 24/06 

Totalizando 19 encontros no primeiro semestre. 

Os encontros serão online, pela plataforma zoom. Os encontros serão gravados. 

✅ Investimento/mensalidade (primeiro semestre): 

Estudantes de graduação e ex-alunos da formação do CEPAES: 100 reais ( ou 460 em até 5x no cartão) 

Profissionais: 120 reais. (ou 550 em até 5x no cartão). 

Após o pagamento o participante serã inscrito no grupo do whatsapp

Inscrições: clique aqui!

✅ Coordenação: 

Fabrício Fonseca Moraes – (CRP 16/1257). Psicólogo clínico junguiano graduado pela UFES. Especialista em Psicologia Clínica e da Família pela Faculdade Saberes; especialista em Teoria e Prática Junguiana pela Universidade Veiga de Almeida; Especialista em Acupuntura Clássica Chinesa pelo Instituto Brasileiro de Ensino e Pesquisas Aplicadas/Faculdade Interativa de São Paulo e com formação em Hipnose Ericksoniana pelo Instituto Milton Erickson do Espírito Santo;  Diretor Clínico do CEPAES, Professor do curso da Formação em Psicoterapia Junguiana. Estuda a Psicologia Analítica desde o ano 2000, e atua desde 2004 em consultório particular.  

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Pensando a interpretação na Psicologia Analítica

“a interpretação psicológica (já preparada pelos alquimistas) conduz à ideia da totalidade humana. Esta ideia tem primeiramente importância terapêutica, porque pretende apreender por meio de um conceito o estado psíquico resultante do lançamento de uma ponte para transpor uma dissociação, a saber, a distância entre a consciência e o inconsciente.”

Jung, Mysterium coniunctionis

Um tema pouco falado na psicologia analítica é a interpretação, para alguns esse tema é quase uma “heresia”, pois insistem de forma quase solene e doutrinal “Jung não fazia interpretações”. Enfim, não entraremos nessa discussão infrutífera, pois nos textos de Jung o termo “interpretação” aparece livre dos preconceitos(como vemos na epigrafe), diferente do que alguns alimentam. Essa “polêmica” tem relação com fato de haver uma separação da clínica com teoria. Isso ocorreu especialmente porque Jung não deixou escritos sobre técnica analítica, frisando basicamente seu método dialetico e fundamentalmente e a amplificação, justamente para evitar que a análise deixasse de ser uma experiência singular entre analista-paciente e se fixasse em perspectivas teórico-doutrinárias. 

Não obstante, muitos analistas buscaram delimitar aspectos da clínica e da relação terapeutica que poderam ser descritos como “técnica analítica junguiana”, na medida que em servem como uma referência geral, um nome que possibilita que o analista compreenda seu trabalho – na medida que o exerce em sua particularidade e na relação com o analisando.

Parte da dificuldade em trabalhar a interpretação na psicologia analítica está em definir o que é a interpretação. Lambert, faz uma referência etimologica importante que nos ajuda a pensar a importância do termo “interpretação” nos diz que 

Partridge, em Origens, demonstra a derivação da palavra interpretação” do latim pretium que significa “preço”, com paralelos em louvar, precioso, apreciar e depreciar (1958, p. 525). Uma interpretação refere-se ao trabalho de um negociador, intermediário ou de um agente comissionado. Presumivelmente, os analistas são, de alguma forma, tudo isso. Eles descrevem e negociam entre as várias partes da personalidade do paciente e, em discussão com o paciente, atribuem-lhes peso ou valor entre, por exemplo, as suas complexidades e as suas simplicidades, o seu ego e o inconsciente, o ego e o self; etc. Isto também se aplica à transferência do paciente e a outras relações interpessoaisi (LAMBERT,1981, p45)  

O papel do analista como um mediador, que observa, que entra em contato com o inconsciente do paciente, auxiliando no reconhecimento e integração de conteúdos importantes – que o paciente julgava sem valor. O investimento de energia do analista, possibilita que o paciente acolha o valor sua história, de seus conteúdos e seus valores para viver a individuação.  Ao interpretar o analista convida o paciente a olhar para si, de modo diferenciado. Promovendo a integração e dialogo interior.  

Michael Fordham foi um importante analista que enfatizou clínica em sua obra, compreendendo a clínica a partir de seus próprios processos clínicos e não pela amplificação mítica/arquetípica. Acerca da interpretação ele afirmou

(…)este procedimento tanto conecta o paciente com seu passado de uma forma significativa e pode iniciar o processo de mudança para libertá-lo de ficar preso nele pelo resto da vida. (FORDHAM, 1974, p.XI tradução nossa)ii  

Nessa perspectiva a interpretação se refere a intervenção feita junto ao paciente que possibilite o paciente integrar sua história, a qual podemos também nomear como passado, complexos, sombra ou inconsciente.  

Com esse intuito a interpretação assume um papel importante no processo analítico por ser capaz propiciar o processo simbólico de transformação da atitude da consciência do paciente. Este processo, contudo, não deve ser compreendido como exercício teórico ou de imposição de uma teoria. Fordham apresenta alguns pressupostos interessantes para se pensar a interpretação, são eles: 

(1) Uma interpretação é principalmente, mas não exclusivamente, um ato intelectual derivado da experiência de um analista.  

(2) Conecta as afirmações do paciente que possuem uma fonte comum desconhecida pelo paciente. Então, quando o analista fala ao paciente sobre a fonte, ele faz uma inferência que vai além do material atual em questão. 

(3) Para ser eficaz, uma interpretação deve ser organizada e foram feitas tentativas para definir a sua estrutura, por vezes de forma muito precisa. Ezrael (1952), por exemplo, propôs que nada poderia ser chamado de interpretação que não incluísse a palavra “porque”, para indicar a inferência do analista. Isso restringe demais o termo e, sem negar o valor de uma definição tão precisa, omite o elemento preditivo necessário ao considerar o efeito que uma interpretação terá sobre o paciente. 

(4) A interpretação deve ter por objetivo ajudar o paciente a controlar a ansiedade, aliviar a culpa excessiva ou outras obstruções ao bom funcionamento da sua vida mental. Faz isso trazendo um processo ou estrutura inconsciente, para a relação com o ego, alargando assim o campo da consciência. Se isso não acontecer com frequência adequada, o procedimento analítico e, especificamente, a aliança terapêutica, será prejudicada e o trabalho contínuo de análise pode cessar.

(5) O valor interpretação está representado no afeto enraizado no inconsciente do analista inconsciente do analista. Isto fornece aquele elemento de espontaneidade que numa interpretação que faz toda a diferença na sua eficácia. 

(6) A validade de uma interpretação só pode ser verificada na entrevista analítica. De acordo com esta proposição, o que o analista comunica ao seu paciente é essencialmente diferente do que ele sabe após a entrevista, ou pensa que descobre sobre um paciente quando fala com um colega, ou quando escreve um artigo ou livro em que o material de uma entrevista está a ser analisado mais do que aconteceu na entrevista. Qualquer descoberta que ele faça nestes contextos não é passível de validação no contexto analista-paciente porque está a ser dirigida a um público diferente; assim, uma interpretação só pode ser verificada em relação em relação aos destinatários. Não quero insinuar que as discussões fora das entrevistas sejam inúteis, que não servem para nada; podem esclarecer dados difíceis, mas o que se pensa não pode ser validado em relação ao paciente.iii(FORDHAM, 1986, 113-4 – tradução e grifos nossas) 

A partir desses pressupostos podemos compreender a dimensão da interpretação pela visão de Fordham. Como resultante natural da relação analítica, a interpretação decorre da elaboração dos processos contratransferencias (que explicitam os aspectos afetivos e conteúdos incosncientes projetados no analista). Como a interpretação visa o restablecimento relação da consciencia ou inconsciente, integrando os conteudos que geram sofrimento. A interpretação sempre é validada pelo paciente, em seu processo simbólico e de transformação. Não importa o quão “brilhante” ou original seja a interpretação se não fizer sentido para o paciente, isto é, se não for validada pelo paciente, é inútil.

A interpretação é uma comunicação especial dentro do enquadre analítico. Como dito acima, a interpretação tem uma intenção (integrar processos conscientes e inconscientes), um objeto (que pode ser a transferência, um sonho, resistência, defesas, projeções, fantasias, etc…), um processo (que atende a relação dialética entre paciente e analista) que se manifesta sobretudo na linguagem verbal – mas, pode ter expressões não verbais.

Apesar da interpretação ser um processo racional, a sua expressão não deve ser uma “racionalização teórica ” ou intepretação é uma comunicação simbólica que se ajusta a realidade do paciente. Mark Winborn, falando sobre a interpretação nos diz

Uma boa interpretação, tal como um bom poema, começa muitas vezes com o algo familiar mas, ao longo do caminho, revela algo não visto anteriormente ou não pensado, ao mesmo tempo que cria algo novo na psique do paciente. Esta é a base poética da interpretação.
Uma interpretação eficaz exige que se escute o paciente como se escuta um poema ou uma canção – isto é, ouvir como as palavras se juntam (a sintaxe para além do o significado semântico), a forma como as metáforas são transformadas e manipuladas, e como os poemas e as canções que nos cativam são aqueles que não só nos falam mas também nos surpreendem de alguma forma. (WINBORN, 2019, p.46 – tradução nossa)

A interpretação é uma metafora, um análogo possível ao conteúdo inconsciente que possibilita que a emergência do símbolo. Na interpretação busca-se apresentar o paciente a si mesmo. Dessa forma, é sempre uma sintese, uma criação conjunta. A linguagem da interpretação é uma ponte simbólica do individuo para ele mesmo, sendo essencial que contenha abertura para o novo, não sendo taxativa, racionalista ou teórica.

Como a interpretação emerge na relação analítica, ela precisa ser considerada como muita atenção pelo analista para não gerar interpretações inoportunas, inadequadas ou equivocadas. Winborn sugere que modelo de reflexão

Outro modelo de organização que considero útil são os quatro W’s – [what, where, When, Why] o que, onde, quando e porquê- que é adaptado de um modelo desenvolvido por Riesenberg-Malcolm (1995). A autora propõe três fatores centrais a serem considerados pelo analista durante o processo interpretativo que pode ser resumido como “o quê”, “onde” e “quando “que formam a lógica por detrás de uma interpretação. Considero benéfico considerar o modelo de Riesenberg-Malcolm de forma mais alargada do que ela o apresentou, e acrescentei acrescentei uma área adicional de enfoque – nomeadamente o “porquê”. (WINBORN, 2019, P.90-1 – traduação nossa)

Esses quatro elementos são muito úteis diante da possibilidade da interpretação. Vejamos cada um:

O quê – Segundo Winborn, indica o foco da interpretação, o que será interpretado? Poderia ser a trnasferência, a contratransferência, a relação com um complexo, um processo de defesa, resistência, um simbolo, um sintoma, um sonho, tema arquetípico recorrente.

Onde – Se refere a localização da preocupação do paciente, seja relacionado ao próprio paciente (dentro de si mesmo), ao analista ou na relação entre analista e paciente. Assim, pode partir do ponto de vista subjetivo do paciente, do percepção do analista ou intersubjetivo.

Dependendo do assunto da interpretação, ela pode ser formulada a partir da auto-perspetiva do paciente, a perceção que o paciente tem de mim, a perceção que o paciente tem de outra pessoa importante, ou a preocupação do paciente com o que está a acontecer numa relação, incluindo a sua relação comigo. Por exemplo, um paciente que se sente pouco atraente pode estar mais pode estar mais preocupado com a sua auto-perceção do que com o fato de eu o ver como pouco atraente.Para que uma interpretação que envolva o sentimento de falta de atratividade do paciente seja eficaz, seria importante focar a interpretação apenas na auto-perceção do paciente e deixar de fora outras perspectivas possíveis. Essa interpretação pode focar-se em como surgiu o sentimento de falta de atratividade ou quais os factores que mantêm essa auto-perceção. (Winborn, 2019, p. 91 – tradução nossa)

Quando – Se refere o momento em que se oferece a interpetação, isto é, da disponibilidade ou receptividade do paciente a interpretação. “O tempo de uma interpretação é baseado na experiência, julgamento, intuição, conhecimento do paciente e conexão com a contratransferência.”(ibid, p. 91-2 – tradução nossa) A interpretação pode ser imediata ou levar anos para ser apresentada. Devendo o analista se perguntar quando é apropriado oferecer a interpretação, tanto quando surge para o analista e quando paciente terá recepitividade para receba-la.

O porquê – Este é o elo de ligação entre todos os elementos anteriores. É se questionar se a interpretração é necessária, se atende as questões que o paciente traz para análise e se com ela o processo poderá avançar.

Esses quatros elementos ajudam na reflexão, na organização e na comunicação com o paciente. Naturalmente, o processo de elaboração da interpretação depende da capacidade do analista estabelecer uma relação dialética tanto com o paciente quanto com seus próprios conteúdos internos. A capacidade de estabelecer essa relação de dialética interna, possibilita perceber o que é percebido por seus orgãos sensoriais, atos falhos, emoções, afetos, suas fantasias e imagens que emergem a partir de sua relação com o paciente. Para a tanto é importante abrir um espaço interno, sem julgamento que possibilidade que os processos inconsciente do próprio analista se manifeste como resposta ao paciente.

O processo interpretativo envolve um variáveis que contribuem para o processo: teoria analítica, intuição, sentimento, influências inconscientes influências inconscientes, as personalidades do paciente e do analista, e o campo intersubjetivo constituído pela díade analítica. No entanto, cada uma destas variáveis requer uma metodologia para estruturar a sua utilização.(…) A noção de ciclo de interpretação sublinha igualmente a ideia de que nenhuma interpretação existe isoladamente. Cada interpretação é uma pequena peça de trabalho psicológico psicológica no contexto narrativo mais alargado de uma análise; cada uma delas contribui potencialmente para para o movimento progressivo da psique em resposta à situação analítica. (WINBORN, 2019, p.51-2)

Winborn (2019) sugere compreender que para além de “um ato analítico” a interpretação seja compreendida como o processo interpretativo, que inclusive possa ser compreendido em partes, como fases ou passos, ressaltando os diversos aspectos do processo interpretativo. Os quatro aspectos/fases seriam:

Observação confrontativa – Consiste em indicar ou chamar a atenção do paciente para um ato, padrões de comportamento, afeto, respostas para as quais o paciente possa não estar consciente. O “confronto” nada mais é que colocar esse conteudo diante do paciente. Um exemplo, seria “eu tenho percebido, que sempre que você fala da sua mãe você arregala os olhos e se encolhe na poltrona”. Uma carateriste do confronto é não ir além do que é apontado. é apresenter o objeto, é apresenter e permitir que o paciente sinta, perceba e entre em contato com esse fato que se faz notar ao analista. Uma vez conscientizado, naturalmente haverá um movimento interno no paciente que buscará o sentido/significado dessa vivência apontada pelo analista.

Inferência elucidativa – ou “esclarecimento por inferência” Este é um passo intermediario entre a Observação confrontativa e a interpretação. Seu objetivo não é explicar, mas estabelecer uma possivel relação entre algo manifesto (sintoma, comportamento, afeto, etc…) com algo que vai para além do mesmo, indicando outro movimento interno. Contudo, sem estabelecer uma explicação. Por exemplo, após um paciente, sofria com o execesso de controle dos pais, se dar conta que conseguiu fazer suas primeiras escolhas por si mesmo, pode-se apontar “você parece espantado com a autonomia que você está ganhando”. É importante considerar que as inferências elucidativas assim como as observações confrontativas se sucedem mutuamente, em meio ao dialogo do analista com o paciente, sempre permeada por perguntas que possibilitam essas expressões do paciente.

Interpretação – A interpretação é uma comunicação atribui um significado a algum conteúdo do paciente que antes não era percebido. Ou seja, a interpretação estabelece uma relação entre um conteúdo atual com sua matriz inconsciente – que geralmente está associado um complexo. Para tanto, é necessário compreender a história do paciente, compreender seus padrões, para poder trazer de forma completa, porém suscinta, uma interpretação que integre o momento atual com a história, produzindo um sentido simbólico que integre a vivência atual e sua história até então consciente. Em exemplo avulso de uma interpretação poderia ser “me parece que julgamento tão severo que você tem sobre as pessoas que se aproximam, é uma forma de você se proteger você da uma rejeição ou do sentimento de rejeição que você sentiu na sua adolescência”.

Construção – A construção remente a própria construção do processo anaítico, onde os padrões interpretativos conduzem a uma nova percepção de si, a uma nova expressão de relação interior e do Self. Assim, a construção está intimamente ligada ao processo de transformação e individuação.

A interpretação é uma expressão da função transcendente vivida na relação transferencial. Por isso, em última análise só fará um sentido imediato ao par analítico. Assim, o analista deve se ater a realidade psiquica do paciente, compreendendo que processo se dá no campo intersujetivo (transferêncial) co-criado pelo analista e paciente, sem se fixar em premissas teóricas e significados rigidos.

A análise produz sempre uma certa indeterminação, onde não dá para se fixar numa ideia de “certo e errado”, o foco é a individuação e a transformação da personalidade. Esta transformação só é possivel quando sustentamos a tensão entre o “saber” e do “desconhecido”, vivenciando e integrado o “desconhecido” através da experiência simbólica e afetiva do Self.

A interpretação é um ato analítico fundamental, pautado na ética e no processo de individuação do analista e visando a individuação do analisando.


Referências

FORDHAM, M R. Gordon, J. Hubback and K. Lambert (eds), Technique in Jungian Analysis. London: Heinemann, 1974. 

FORDHAM, M. Jungian Psychoterapy – A study in analytical psychology, London: Maresfield, 1986. 

LAMBERT, K, Analysis, Repair and Individuation, London: Academic Press, 1981. 

WINBORN, M. Interpretation in Jungian Analysis, New York: Routedge, 2019.

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico Junguiano, Supervisor Clínico, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Especialista em Acupuntura Clássica Chinesa (IBEPA/FAISP). Formação em Hipnose Ericksoniana. Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos” Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 99316-6985. / e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes /Instagram @fabriciomoraes.psi

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Complexos Culturais    

Dra. Kelly Guimarães Tristão

(Este texto é um fragmento da tese de doutorado de Kelly Guimarães Tristão “O CAPSIJ como lugar de cuidado para crianças e adolescentes em uso de substâncias psicoativas. 2018.”

Para compreender o conceito de complexos culturais, elemento importante especialmente para o entendimento do lugar dos indivíduos no grupo social a que pertencem, e como esse grupo os afeta também inconscientemente, é preciso tecer uma articulação entre a teoria dos complexos (Jung) e a teoria do inconsciente cultural (Henderson). 

A Teoria dos complexos é uma construção teórica fundamental na perspectiva junguiana.  Segundo Jung, um complexo de tonalidade afetiva “é a imagem de uma determinada situação psíquica de forte carga emocional e, além disso, incompatível com as disposições ou atitude habitual da consciência” (2013, p. 43). Assim, o complexo possui uma “tonalidade emocional própria”. O complexo tem como núcleo o arquétipo, ao redor do qual são atraídas, e se amalgamam num mesmo lugar psíquico, diversas imagens, ações, sentimentos, com qualidade similar a seu núcleo.  Dotado de grande coerência interna, possui uma certa autonomia, comportando-se no âmbito da consciência como que tivesse voz própria.  

A teoria do Inconsciente cultural, outro nível importante para a compreensão do conceito de complexo cultural, advém de Joseph Henderson (1984), que introduziu a ideia de um nível cultural da psique chamado de “inconsciente cultural”. A teoria de Henderson abre uma porta para a teoria junguiana compreender a psique também num espaço entre o nível pessoal e o nível arquetípico; possibilitando, assim, o entendimento de que tanto o nível pessoal como o coletivo são culturalmente influenciados.  

Nessa direção, entende-se o coletivo a partir de duas dimensões: uma arquetípica, que é natural e transcultural; e outra cultural, que é histórica, étnica e estereotípica. A partir dessas dimensões, os seres humanos também realizam aquisições via inconsciente. (Araújo, 2002).  

Parece estar ele falando de temas culturais que influenciam o indivíduo, pois localiza essas estruturas, que chama de “primitivas”, numa espécie de “alma étnica”, material simbólico derivado da cultura. Do ponto de vista psicológico, as sobrevivências seriam o conteúdo formativo do inconsciente, não só da face individual, mas também da coletiva, independente da ‘fachada superficial do psiquismo consciente’ (Araújo, 2002, p. 30). 

Tanto quanto o corpo e a dimensão ideativa-emocional, a sociedade e a cultura são fontes da realidade simbólica, e através de seus diferentes símbolos torna-se possível comparar as culturas e perceber suas semelhanças estruturais, sem perder de vista as diferenças históricas e culturais (Araújo, 2002).  

Os complexos culturais são de campos energéticos dinâmicos que promovem uma distorção do mundo para a consciência, gerando respostas automáticas para o outro. Isso torna a realidade do outro invisível, ainda que tal atitude seja inconsciente a nós mesmos. (Singer, 2012). Trata-se, portanto, de um […] agregado emocionalmente carregado de memórias históricas, emoções, ideias, imagens e comportamentos que tendem a se agrupar em torno de um núcleo arquetípico que vive na psique de um grupo e é compartilhado por indivíduos dentro de um coletivo identificado (Singer, 2012, p. 5 citado por Novaes, 2016). 

Os complexos culturais são compartilhados por indivíduos dentro de um contexto grupal ou coletivo especificado. Segundo Singer (2010), para entender aspectos emocionais, ou mesmo psicopatológicos, que circundam determinados grupos, é importante compreender os complexos culturais envolvidos. Isso pode ser compreendido a partir da ideia de que os complexos culturais são fundados em repetidas experiências históricas “que se enraizaram na psique coletiva de um grupo e na psique de cada um dos membros de um grupo, e eles expressam valores arquetípicos para o grupo. Como tal, os complexos culturais podem ser pensados como os blocos de construção fundamentais de uma sociologia interior” (Singer, 2010. p. 6). 

Pode-se compreender, portanto, algumas características fundamentais dos complexos culturais, conforme assinala Klimber (2003): 

I. Os complexos que atuam no contexto grupal do inconsciente cultural organizam crenças e emoções coletivas de maneira a favorecer a organização de uma parte significativa da vida do grupo, assim como fantasias que podem operar dentro da psique individual. Os complexos culturais intermediam o relacionamento de uma pessoa com o um grupo, cultura ou etnia específica de referência. 

2. Os complexos cultuais operam de forma autônoma na psique de cada indivíduo ou na psique do grupo. Isso implica dizer que eles ordenam compreensões restritas à percepção das diferenças, ou mesmo enfatizam as diferenças em estereótipos. Por outro lado, os complexos culturais acentuam a identificação grupal ou a diferenciação do grupo com o outro externo a ele, favorecendo, desta maneira, sentimentos de pertença ou de forte alienação. 

3. Ao passo que organizam as emoções, atitudes e comportamentos que constituem o grupo, os complexos culturais operam como campos energéticos afetados. Entretanto, a dinâmica é impessoal “os complexos culturais não fazem acepção de pessoas, não cuidam de ninguém além do grupo […] Eles simplesmente impulsionam as pessoas para o sentimento e a ação” (p. 230). Dessa forma, produz-se nos membros do grupo, através de uma indução psicológica, sentimentos de comunidade.  

4. Os complexos culturais favorecem a relação emocional do indivíduo com os modelos culturais do grupo.  Quando operam de maneira positiva, os complexos culturais constituem um sentimento individual de pertença. A identidade é, dessa forma, organizada a partir de uma identificação com o grupo (cultural, étnico, racial ou social). Da mesma forma, ao se constelar a função negativa do complexo cultural, esta promove a construção de estereótipos e preconceitos que fundamentam atitudes que enxergam o outro como farsante. 

5. Os complexos culturais proporcionam ao indivíduo e aos grupos um senso de pertença e identidade em uma continuidade histórica, os pressupostos emocionais compartilhados significam que o arquétipo do Self (princípio organizador) é evocado por complexos culturais, que então lhes disponibilizam toda a energia nos níveis arquetípico e pessoal da psique. É necessário dizer que isso pode tornar os complexos culturais muito perigosos (como a multidão do linchamento), mesmo que eles permitam, em outros momentos, inspirar o espírito coletivo de maneiras mais positivas (patriotismo, por exemplo). 

Ao se tentar compreender e organizar a história psicológica de determinada cultura, através dos complexos culturais, verifica-se que a memória cultural não se relaciona somente aos membros da cultura/grupo, mas à própria cultura/grupo que produz seus próprios campos emocionais. O memorial cultural se utiliza da psique individual de seus membros para difundir afetos e ideologias, de maneira a moldar valores, prescrições, rituais, expectativas e a própria história do grupo. Nessa direção, a maneira como os grupos/culturas concebem a dívida para com o passado, bem como as reparações exigidas do futuro, são profundamente influenciados pelos complexos culturais (Singer, 2003).  

A exemplo, se a experiência do espírito do grupo, a nível grupal, é positiva, a ligação do grupo não obrigatoriamente irá ativar um sentimento de ódio arquetípico ao externo ao grupo. Se de outro modo, a experiência do espírito grupal foi negativa, pode-se disparar as defesas arquetípicas do espírito grupal. Assim, pode-se refletir sobre os complexos culturais como “blocos de construção” elementares para conceber a construção do nível cultural da psique grupal e dos membros do grupo. 

Defesas arquetípicas do espírito grupal 

O espírito grupal diz de uma representação da experiência matriz na vida do grupo. Quando essa experiência é considerada bem nutrida e saudável, o espírito grupal sustenta e orienta o grupo e cada membro. Do contrário, quando o espírito do grupo está traumatizado, vulnerável ou ferido, ativam-se as “defesas arquetípicas”, que podem assumir uma energia violenta e agressiva, a fim de proteger o “valor cultural sagrado” e a possibilidade de extinção do grupo (Singer, 2003). Nessa compreensão do complexo cultural, é preciso entender três componentes fundamentais: (i) as feridas traumáticas do grupo, lugar ou valores que conduz o espírito do grupo; (ii) o medo de extermínio do espírito pessoal ou do grupo por um estrangeiro; (iii) o surgimento do guadião/protetor, ou vingador, promovendo a defesa aos “perseguidores” do espírito grupal. 

As defesas arquetípicas do grupo, ativadas em alguns complexos culturais, direcionam e transformam o espírito agressivo do grupo. “Eu vejo essa resposta como automática, reflexiva, impessoal e, de certa forma, a maneira mais natural para a psique grupal no aperto de um complexo cultural reagir” (Singer, 2003, p. 203). Assim, a potência dos complexos culturais, que originam tais conflitos, se deve ao caráter autônomo dos complexos. Ou seja, é como se eles adquirissem uma vida própria, “não só na resposta do grupo aos ataques ao seu espírito coletivo, mas também na forma como parecem assumir a residência permanente no cultural nível da psique no indivíduo” (p. 205). 

Assim, os grupos, o lugar dos indivíduos no grupo e os atravessamentos inconscientes nos indivíduos podem ser compreendido pelos complexos culturais, seja pelas características de pertença grupal, seja pelas defesas arquetípicas ativadas, em especial nas relações estabelecidas no espaço de cuidado, ou mesmo nas projeções realizadas pelo externo  ativadas pelos complexos culturais que envolvem o grupo no qual o indivíduo está inserido. 

REFERENCIAS 

Araujo, F. C. de. (2002). Da cultura ao inconsciente cultural: psicologia e diversidade étnica no Brasil contemporâneo. Psicologia: Ciência e Profissão, 22(4), 24-33. Recuperado em 14 de junho de 2017, de 2 https://dx.doi.org/10.1590/S1414-98932002000400004 

Jung, C. G. (2013). A Natureza da Psique. (10ª ed.). Petrópolis: Vozes. 

Kimbles, Samuel, L. (2003). Cultural Complexes and Collective Shadow Process. In: Beebe, J. (org). Terror, violence and the impulse to destroy: perspectives from analytical psychology (pp. 211-234). Canadá: Daimon. 

Singer, T. (2003). Cultural Complexes and Archetypal defenses of the group spirit. In: Beebe, John. Terror, violence and the impulse to destroy: perspectives from analytical psychology (pp. 191-211).  Toronto: Daimon. 

Singer, T., & Kaplinsky, C(2010). The Cultural Complex.  (Reprinted through the courtesy of the editor/Publisher: “Cultural Complexes in Analysis”. In Jungian Psychoanalysis: Working in the Spirit of C.G. Jung, edited by Murray Stein pp. 22-37. Open Court Publishing Company, Chicago.).  Recuperado de https://aras.org/sites/default/files/docs/00042SingerKaplinsky.pdf em 10 de agosto de 2017 

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Em busca da Mulher Selvagem e o processo de individuação feminino: reflexões sobre o “Arquétipo da Mulher Selvagem” e a psicologia analítica 

Por Dra. Kelly Guimarães Tristão

A modernidade exige da humanidade uma postura frente à vida que nos afasta muito do contato com o simbólico, em especial, da mulher moderna, com todo o acúmulo de afazeres, papéis e cobranças, bem como medos e culpas. Tais exigências, com o trabalho, a maternidade, a sexualidade e a espiritualidade, promovem uma sobrecarga, o que dificulta ter um tempo para ter contato com os elementos do inconsciente, e também um contato com o mundo externo de maneira mais saudável. Nossas relações ficam muito prejudicadas com um todo. Daí essa necessidade como Jung traz em Vida Simbólica (2017b), que o ser humano precisa de símbolos, e precisa de símbolos urgentemente. Para nos ajudar nesse processo de manter esse contato saudável da consciência e com o inconsciente. 

Pensar no arquétipo da mulher selvagem é, antes de mais nada, pensar em estabelecer uma relação saudável com o inconsciente e com o mundo externo. Assim, ele aponta para uma função em nossa vida. É o chamado abrir a porta! Que é justamente esse processo de eu me permitir conhecer aquilo que está além do que eu conheço sobre mim na atualidade. A porta só vai se abrir do lado em que estou, sou eu que tenho que abrir essa porta para que eu entre e tenha o contato com esse desconhecido.   

Pode ser que isso exija de mim uma série de coisas. O abrir a porta é como entrar na Floresta, e eu vou ter que deixar coisas que eu tinha, coisas que eu era para trás. Então, o entrar na Floresta, o se abrir para esse desconhecido, algumas vezes nos trará desafios que talvez não estejamos prontos no momento para superar. Mas é preciso  começar a construir instrumentos, pra nos auxiliar a abrir essa porta, atravessar essa floresta, e aprender a lidar com o que pode encontrar no caminho. 

O “arquétipo da mulher selvagem” fala do relacionamento essencial com o mundo onde vivemos, e que para muitas pessoas foi soterrado. Foi soterrado pelas exigências, foi soterrado pelo machismo, foi soterrado pela culpa (moral ou religiosa). Foi soterrado por uma série de fatores. Então, é quase como se tivéssemos que desenterrar os ossos que estão ali (como no Barba azul), para que possa se construir carne (como na mulher esqueleto) e preencher essa carne de alma. O primeiro ponto de como que a gente faz isso, é perceber a existência da vida e desse momento de existência. 

Algumas pessoas não conseguem perceber sua existência, o próprio corpo, os próprios sentimentos, os próprios pensamentos, os próprios desejos. E quando se fala dessa compreensão, dessa vida, nesse momento, podemos recorrer à amplificação em relação com os Lobos. 

Pensar a relação “com os lobos” é pensar no elemento gregário, do se relacionar com o outro. Sabemos pela experiência que os nossos pensamentos, sentimentos e ideias não são facilmente legitimados, visto que quem legitima usualmente, como a Polly Young-Eisendrath  (1990) traz, é o homem branco, cis, com recursos econômicos e “reconhecimento social”. Como as mulheres não tem esse aspecto legitimado, é comum não se autorizar a muitas coisas. Daí se tem a importância de estar em grupo, de estar em grupos de mulheres, especificamente, para que nossos pensamentos e ideias sejam legitimados e para que a gente valide nossos sentimentos.  Eu preciso desse olhar do outro também pra me sustentar, para que eu possa me reconhecer. Enquanto um EU, enquanto um ser humano. Enquanto uma mulher! Não quando um homem diz o que eu sou.  Precisa dos grupos nesse processo. Precisa desse sentimento de pertencimento. 

Esse Sentimento de pertencimento, entendendo a partir da ideia de complexos culturais (Singer, 2003), é o que nos ajuda a lidar também com os elementos inconscientes que são parte do grupo, que às vezes chegam e trazem uma mobilização…e a gente não entende nada do que está acontecendo, mas precisamos entender. É o anseio que temos a gente acaba tendo por esse arquétipo da mulher selvagem, que acontece muito fortemente a partir do momento em que se encontra alguém que o vivencia. É o que nomeamos na perspectiva Junguiana, de humanização do arquétipo.  

Quando essa vivência básica de organização psíquica, ou seja arquetípica, é humanizada a partir da relação com outro ser humano, ou em uma instituição, ganha forma. Ele ganha presença. E nos identificamos com ele! Mas sendo arquetípico, ele é potência, ele existe em cada um. Mas como sabermos se existe, se nunca tivermos ciência, se nunca pudermos vivenciar?  Assim, é mais fácil quando se vivencia a partir do outro, quando esse outro traz essa expressão desse arquétipo. Neste momento, podemos tanto reconhecer como também ser tocado, ser afetado por ele. Então podemos ter a oportunidade de desenvolver melhor. (você pode entender melhor sobre esse tema nesse artigo) 

Sabemos que o arquétipo é um conteúdo do inconsciente coletivo, sendo assim, ele tem algo que fala da história, da evolução da humanidade. E nessa evolução existem elementos que nos aproximam. Assim como falamos que o nosso corpo tem uma história evolutiva, a nossa psique também tem uma história evolutiva.  

O arquétipo diz dos padrões mais basais de organização psíquica. São as formas. Como se tem reações, sentimentos, ideias relacionadas a uma mesma temática, e isso provoca na gente uma forma de se relacionar.  Depois que esse elemento se torna consciente, ele deixa de ser arquétipo. Assim, o que se tem acesso é uma representação arquetípica, que pode vir por meio da psique ou da matéria. O elemento arquetípico é psicóide. Ele é os dois (matéria e psique). Essa matéria, seja  corpo, terra, seja elemento da natureza,  como elementos da mulher selvagem vão ser expressos no nosso corpo, nos nossos ciclos, mas também na nossa psique. Então a gente não pode fazer uma distinção, é isso ou aquilo. Logo, isso fala desse elemento, desse arquetípico que é primordial e que não pode ser diferenciado. Matéria e psique, são as mesmas coisas.  

Dito isto, precisamos entender que não existe o “o arquétipo da mulher selvagem”. Nesses termos falamos de um conjunto de símbolos ou representações arquetípicas que se faz presente através da imagem da “mulher selvagem”. Como se popularizou o uso de “arquétipo da mulher selvagem”, vamos usá-lo como expressão ou força de linguagem, mas como representação arquetípica, ele aponta ou nos permite vivenciar o potencial do arquétipo em si, mas qual arquétipo se faz conhecer pela “mulher selvagem”?  Já, já vamos falar dele.  

Quando temos acesso à representação arquetípica da Mulher Selvagem teremos acesso às atitudes, comportamentos, que dizem respeito àquele arquétipo. Ela vai se manifestar na Natureza básica feminina, que vai assumir várias expressões em lugares diferentes do mundo, mas o terreno fértil é o mesmo. Desta forma, quando falamos dessa natureza básica feminina, enquanto representação arquetípica da mulher selvagem, precisamos compreender que esse “selvagem” não se trata de falta de controle, de impulso, mas pelo contrário, diz respeito à possibilidade de viver e  de ter uma relação com a vida de uma forma íntegra. Na perspectiva junguiana compreendemos o “ser inteiro”, que abarca os opostos: do bom e do mal! O sagrado e o terreno! Que precisam ser integrados também. Integrar nossa possibilidade de viver de forma na realidade inata e com limites saudáveis.  

Esses limites saudáveis, são importantes quando falamos da mulher selvagem. Não estamos falando de rituais, mas do aprendizado de lidar com outro, esse outro que é tudo o que é diferente do Eu. Seja o meu outro interno (conteúdos do inconsciente), seja com outro externo, que são as pessoas, a natureza, o trabalho, entre várias outras coisas. Assim, precisamos construir, enquanto ser humano, esses limites saudáveis, que tanto nos ajudam a entender quem somos, porque nos diferencia do outro. Como nos ajuda também colocar limite no outro, e não ser sobrecarregado com o excesso de contato com os objetos externos. Isso não é algo que é exclusivo à mulher, o arquétipo da mulher selvagem está presente em todo e qualquer ser humanos, seja na mulher, no homem e na pessoa que não se identifica nessa binaridade. 

Nesse sentido, o Jung (2017 a) aponta que o arquétipo é potência para todo e qualquer ser humano. No entanto, para as mulheres, esses limites saudáveis se tornam muito importantes, por conta de toda a história de limitações….as que as mulheres vivenciaram e vivenciam. Então as representações do arquétipo da mulher selvagem são também essas imagens que nos lembram quem nós somos! E o que a gente está representando!!! Nas estórias que os contos trazem, tem-se a mulher que vive desde sempre, a força espiritual, que se organiza e organiza a vida. 

Os nomes que cada uma delas tem nos contos e estórias vão trazendo a compreensão da representação desse arquétipo da mulher selvagem. Quando pensamos quem elas são e quem elas representam, falamos do inconsciente coletivo, falamos de herança, que tem um caráter evolutivo. Então fala da nossa história! Logo, a gente precisa retomar um pouco essa história. 

Em termos arquetípicos, falamos sempre de polos. Um arquétipo vai ter sempre polos opostos. O polo oposto à mulher selvagem é a deusa, logo, precisamos trabalhar, elaborar os dois aspectos. Essa selvagem, que fala desse terreno, desse biológico, desse corpo, mas também a deusa que fala desse elemento do sagrado. Neste sentido, quando nos prendemos somente a um dos elementos, estamos massacrando o arquétipo da mulher selvagem. Por outro lado, muitas vezes as vivências sobre o feminino se prendem muito ao aspecto das deusas, e nessa relação com esse sagrado, com essa deusa, negligencia-se uma compreensão da atualidade, dessa mulher que é história, mas que é atualidade também. Dessa mulher que é corpo, dessa mulher que se relaciona com outra. 

Para explanar um pouco nessa história do feminino, enquanto esse feminino terreno, podemos resgatar um texto de Rose Marie Muraro (2017), autora  Feminista Brasileira, na introdução do livro Maleus Malleficarum (O martelo das feiticeiras), que trabalha esse feminino enquanto inserido num coletivo.  

Segundo a autora, historicamente, o feminino é relacionado à Terra. Esse útero, é um útero sagrado, porque não se tinha uma compreensão de que o homem participava também desse processo de fertilidade, de desenvolvimento de uma nova vida. Era como se fosse fecundado pelos deuses, logo esse elemento sagrado do útero era muito forte. Poderia se falar, talvez da inveja do útero, porque só a ele cabia essa possibilidade do sagrado no corpo presente, algo que era atribuído somente às mulheres. Mas essa mulher também tinha outras características, como por exemplo, o conhecimento da agricultura que, segundo os historiadores, as mulheres, na realidade, começaram a entender um pouco melhor essa compreensão dos ciclos da agricultura, justamente porque podiam relacioná-los aos ciclos do próprio corpo, ao período de descanso, ao período de fertilidade, ao período de produção.  Esse feminino inicial, dessa mulher selvagem efetivamente fala também da relação, entre a vida e a morte. De saber que vai existir a morte, que vai levar alguma coisa, assim como vai vir a vida também. Além disso, tem-se também o papel da curandeira, desse cuidado, desse curar! Nesse processo, a gente entende esse feminino inicial, esse feminino selvagem. 

Assim, a história fala desses limites saudáveis que se estabelecem. Por exemplo, um trabalho que era suficiente para o cuidado de si mesmo e de uma parte do grupo, que não era algo que visava o exagero, o poder. Era um cuidado suficientemente necessário. Entendemos que não existe uma supremacia feminina, mas que uma relação desse feminino com o sagrado, com o equilíbrio, com o masculino, com os homens que também tinham funções importantes e fundamentais para aquela coletividade. Só que com o processo de escassez de Terra, de uma Terra produtiva, fértil, a humanidade foi desenvolvendo os domínios das caças grandes, a necessidade de poder, as questões relacionadas com as guerras, e consequentemente, o poder em relação ao grupo passa a ser medido pela força, não pela coletividade. Essa força passa a relacionar-se também a um processo de controle dos corpos, especialmente do controle dos corpos femininos, já que eles tinham a importância de gerar. Nesse momento, o gerar não possui mais a importância sagrada e passa a ser visto como a forma continuidade daquele homem. Temos então esses processos com rigidez e regras.  

Pra pensarmos em termos junguianos lançaremos mão de “A Grande Mãe” (2021) e “O medo do feminino” (2000) e como para enterremos a relação da psique à história. Neumann traz a compreensão de que a consciência vai sendo construída à medida que se tem contato cada vez maior com as regras, com os limites. Mas que no início tem-se um processo que ele chamava de arquétipo de primordial. Esse arquétipo primordial, existe antes de todas as separações possíveis. 

Inicialmente, quando a gente vai falar sobre a história dos povos, segundo Neumann (2000), temos o feminino, que tinha uma relação simbólica muito maior, que ia se estabelecendo a partir, especialmente, do contato com o próprio corpo, com as mudanças, com o ciclo, e com o inconsciente, porque o inconsciente está no corpo. O Inconsciente é esse feminino. Não o feminino entendido a partir da mulher, mas essa ideia do feminino que fala do contato com os deuses, esses elementos mitológicos e simbólicos. A evolução da história da consciência, vai partindo inicialmente de um dinamismo arquetípico muito marcado pelo materno, pelo cuidado desse materno e pelas questões simbólicas, para uma existência, uma presença muito mais forte de elementos do paterno, do patriarcado, que aqui vai ser representado por uma forma extremamente negativa. O dinamismo paterno por excelência pode ser negativo ou positivo, ele também é saudável. Mas o patriarcado fala de uma rigidez de limite, de regra, de uma rigidez no direcionamento para o mundo externo, de uma rigidez de objetivos. E não deveria ser assim. Segundo Neumann, esse paterno teme o feminino. Porque o estar em contato com esse feminino é você ter que parar para ter um contato consigo mesmo, e não estar o tempo todo se lançando para o mundo. Esse processo histórico da mulher selvagem, é representado também nessa compreensão da psique. Como essa psique vai se organizando no decorrer da humanidade. 

A mulher selvagem e a deusa, na realidade fala de um mesmo elemento, que é esse elemento do feminino. O Campbell (2004) aponta, que ao entender a cosmogonia, ou seja, o processo de criação do mundo, percebemos que 4 etapas. Na primeira etapa, fala-se de um mundo criado pela deusa mãe, de Gaia,  também a Nanã Buruku, um mito nagô, essa mãe Terra primordial, que trouxe e que proporciona esses elementos para a criação do homem. Essa etapa inicial dos mitos cosmogônicos vai sendo muito mais representada por essa criação a partir de um feminino. Numa segunda etapa, tem-se de um Deus mais andrógeno, não é masculino ou feminino. É uma energia que possua as duas características, masculino, feminino ou mesmo um casal. Como exemplo do hinduísmo Shiva, é a energia, energia criadora e a destruição, que juntos promovem a existência do mundo, assim como a destruição da nova existência. Na terceira etapa, tem-se um Deus macho, que toma o poder dessa deusa ou que cria o mundo sobre o corpo da deusa. A exemplo, a mitologia sumérica, especialmente Siduri,  que era  responsável pela criação  do Jardim das delícias. E  Gilgamesh a relega a uma posição inferior quando ele toma o poder dela. Na última etapas dos mitos cosmogônicas, o macho que cria um mundo sozinho, e como exemplo na mitologia cristã, temos o Javé. 

Paralelamente, na história da mulher terrena, da mulher selvagem, vai sendo substituída pelo patriarcado, pelo masculino, que controla e que domina os corpos, e as almas; e que tem domínio da cultura. O sagrado também vai fazendo esse processo, porque ele vai sendo essa representação da vida que está sendo construída, dessa história da humanidade que está sendo construída.  

Quando Neumann traz no livro “A grande mãe” (2021) a ideia do arquétipo primordial, ele vai entender que os arquétipos vão sendo humanizados à medida que a gente vai tendo contato com elementos da vida, com humano, a partir da relação com o outro. O primeiro arquétipo a ser humanizado é o materno, e depois que ele é humanizado, a partir dessa relação externa, ele é elaborado e integrado à psique. E passa a ter essas possibilidades a partir de cada relação humana que o indivíduo acaba estabelecendo. Então tem-se inicialmente é um todo que começa a ser percebido ao ser humanizado, a partir da relação com os dinamismos.  

Quando falamos do arquétipo feminino, abordamos primeiro os elementos mulher selvagem e da deusa, mas isso pode ser destrinchado. A Tony Wolf (1985), por exemplo, traz uma ideia dos 4 elementos do feminino: o materno, a amazona, a médium e a hetaira. Então, quando se fala dos arquétipos do feminino vem primeiramente a questão da mãe, mas é possível perceber no processo de leitura de Mulheres que correm com os lobos, que em cada um dos contos, vamos tendo a presença de um ou mais desses aspectos do feminino.  

Essa mulher selvagem que Clarissa  Pinkola Estés (1997) nos aponta, nada mais é do que o arquétipo do Self, expressado por esse feminino.  Porque o arquétipo de Self? Porque quando essa psique vai se organizando, falamos do arquétipo do self. Entendemos aqui que todos nós temos essa potência para organização, para a busca de uma totalidade. Logo, quando falamos da mulher selvagem, reconhecemos essa expressão própria do Self… Essa organização que se estabelece a partir de elementos do feminino. É claro que em determinado momento da vida do indivíduo, a organização dele vai se dar por outros elementos, mas esse princípio de organização, esse princípio de busca, quando falamos da mulher selvagem, estamos falando justamente disso, dessa forma de organização ativa nesse momento, expressa no feminino. Ou seja, ao nos referirmos à mulher selvagem, entendemos que estamos  retomando o nosso processo desenvolvimento, que o Jung chama de processos de individuação. O processo de individuação é nossa  oportunidade de ter contato com cada um dos elementos inconscientes, elabora-los e integra-los, mas também a possibilidade de ampliar a nossa relação com a consciência, com elementos do mundo externo. Então, pensar na mulher selvagem é pensar em trazer esses elementos femininos para o nosso processo de individuação. Pensar em como a gente vai se desenvolvendo ou amadurecendo no nosso processo de vida. Aqui não falamos só de elementos femininos, mas elementos em relação com o feminino. 

Vivenciar essa mulher selvagem é uma prática. É algo que se constrói no dia a dia, nas relações com as coisas, nas relações com as pessoas, nos nossos comportamentos, nas nossas atitudes, nos nossos momentos de ficar quieto. Nos nossos momentos de vazio, porque o vazio é um terreno propício para a criatividade, para as possibilidades também. 

Quando pensamos em vivenciar a mulher selvagem falamos por nos interessar mais por sentimentos, pensamentos, esforços que fortaleçam e protejam as mulheres. É um investir na vida criativa, nos relacionamentos com significados, nos ciclos… os próprios ciclos, e nos ciclos que ela está inserida. Também é na sexualidade, no trabalho, na diversão. É ter uma relação com todos esses processos com significado. 

É vivenciar esses processos de maneira a não estar o tempo todo à mercê do outro, ou da preocupação, ou do olhar ou do julgamento desse outro. No entanto, precisamos de um olhar sim, do nosso grupo para nos auxiliar a nos legitimar, mas não precisamos ser controlados pelo outro.  

Vivenciar a mulher selvagem é organizar essa psique objetiva, organizar esses elementos inconscientes, que muitas vezes estão negligenciados. Neste contexto, precisamos desenvolver  um ego suficientemente forte para poder dar conta disso; a gente precisa retomar de forma saudável a nossa relação entre esse princípio arquetípico  organizador e da totalidade, e o nosso ego, que é a nossa referência de quem somos. Isso fala da nossa jornada heróica, que implica entrar nessa Floresta ou atravessar essa porta, vivenciar os desafios, reconhecer o que aprendeu. Reconhecer as estratégias construídas se utilizar delas para enfrentar a vida. 

É aproximar-se da natureza instintiva: 

“implica delimitar territórios, encontrar nossa matilha, ocupar o corpo com segurança e orgulho independentemente dos dons e das limitações do corpo, falar e agir em defesa própria, estar consciente, alerta, recorrer aos poderes da intuição, do pressentimento inato às mulheres, adequar-se aos próprios ciclos, descobrir aquilo a que pertencemos, despertar com dignidade e manter o máximo de consciência possível (Pinkola Estés, 1997, p. 260). 

E onde a mulher selvagem está presente? 

Ela está presente, onde quer que haja uma mulher que seja solo fértil. 

REFERÊNCIAS  

Campbell, J. As máscaras de Deus na mitologia Ocidental. Vol 3. São Paulo: Palas Athena. 2004. 

 Polly Young-Eisendrath, Florence L. Wiedemann. Female Authority: Empowering Women through Psychotherapy. Guilford Publications, 1990.  

Jung, C. G. Os arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Vozes: São Paulo, 2017.  

Jung, C. G. Vida Simbólica. Petrópolis: Vozes, 2017. 

Muraro, R. M. Introdução. KRAEMER, Heinrich; SPRENGER, James. O martelo das feiticeiras, malleus maleficarum, escrito em 1484 pelos inquisidores. Tradução de Paulo Fróes. 28. ed. Rio de Janeiro: Record, 2017. 

Neumann, E. O medo do feminino: E outros ensaios sobre a psicologia feminina. São Paulo: Paulus, 2000. 

Neumann, E. História  da Origem da Consciência. São Paulo: Cultrix, 1995 

Neumann, E. A Grande Mãe. São Paulo, Pensamento- Cultrix: São Paulo, 2021. 

Pinkola Estés. Mulheres que Correm com os Lobos. Rocco, 1997 

Singer, T. Cultural Complexes and archetypal defenses of the group spirit. In: Beebe, J. Terror, violence and the impulse to destroy: perspectives from analytical psycholoy. Toronto: Daimon, 2003.  

Wolf, T.  Structural forms of the feminine psyche. C. G. Jung Institute Zurich, 1985 


Dra. Kelly Guimarães Tristão (CRP 16/1398)

Doutora em Psicologia (UFES), Psicóloga Clínica Junguiana, Pesquisadora e Supervisora Clínica.
Especialista em Teoria e prática Junguiana (UVA/RJ); Especialista em Psicologia Clínica e da Família ( Saberes/ES).
Docente de pós graduação e da Formação em Psicoterapia Junguiana/CEPAES.
Atua em Consultório particular desde 2005.

Contato: 27 992573335/ email: kellytristao@cepaes.com.br
Instagram @kellytristao.psi

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A Contratransferência : uma visão junguiana

A psicologia analítica é, antes de tudo, uma abordagem psicoterapêutica. É bem verdade que os estudos junguianos se desenvolveram ampliando os horizontes teóricos e práticos para além das quatro paredes do consultório ou da clínica individual, mas sua essência é baseada na atitude clínica.

O encontro analítico se desenrola num contexto que é descrito como a relação transferencial-contratransferencial que abarca a dinâmica consciente-inconsciente na interrelação contínua da psique do terapeuta e do paciente. Uma metáfora possível é o vaso alquimico, onde as transformações podem ocorrer de modo seguro.

Apesar de Jung ter dado contribuiões importantes à compreensão da relação transferêncial, esta se tornou secundária, devido a certa ambivalência em alguns textos de Jung acerca da transferência. Contudo, em relação à contratransferência, Jung pouco se manifestou diretamente, embora, não possamos ignorar que a exigência da analíse didática foi uma das contribuições indiretas de Jung à temática da contratransferência.

No texto que publiquei A Transferência na Psicologia Analítica pt2/2 eu comentei alguns aspectos gerais da transferência enfocando as categorias apontadas por Michael Fordham como possíveis formas e manifestações da contratransferência. Gostaria de ampliar a discussão iniciada naquele texto.

Um diálogo profundo

A contratransferência é um processo natural que se desenvolve em qualquer relação de cuidado, contudo, necessita de uma atitude ativa do analista para se tornar um instrumento terapêutico. A relação transferencial (isto é, da transferência e constratransferência) não aparece explicidamente na obra de Jung, apesar de uma de suas mais conhecidas frases expressar justamente a relação transferêncial.

O encontro de duas personalidades é como a mistura de duas substâncias químicas diferentes: no caso de se dar uma reação, ambas se transformam.”

(Jung, A prática da psicoterapia , p. 68)

São três aspectos importantes: duas personalidades (psicoterapeuta e paciente) e a reação. A reação é o estabelecimento do campo ou relação transferêncial – que transforma o paciente na medida que em transfere aspectos inconscientes de sua personalidade para o psicoterapeuta e introjeta aspectos da personalidade do analista em si mesmo. Por outro lado, o analista se transforma com os conteúdos transferidos/introjetados do paciente, como forma de aglutinar, elaborar e de catalisar os processos do paciente.

Na contratransferência o conteúdo inconsciente introjetado, ora percebido como afeto, ora como sensação, é transformado em comunicação simbólica pela atitude analítica. Pela dialética interior se apercebe esse movimento o que possibilita que esse conteúdo contido pelo analista possa ganhar forma e ser devolvido pelo analista ao paciente na forma de interpretação. Fordham comenta,

a introjeção útil ocorre enquanto se ouve o paciente e, se mantido [o objeto introjetado] à distância do ego do analista, fornece material através da qual a interpretação pode ser formulada. Então a dialética interna pode ocorrer e se o analista puder projetar a si-mesmo, e particularmente as partes infantis, no paciente e combina-las com conhecimento adquirido com o paciente, pode resultar uma interpretação válida. A parte interna da dialética pode ser quase instantânea ou demorada, mas requer uma projeção antes que a interpretação efetiva possa ser feita. (Fordham, 1974, p. 278,)

A dialética interior é descrita por Fordham como similar a imaginação ativa, mas por ser relacionada aos conteúdos ativados pela transferência. A síntese obtida pelas reações contratransferenciais, não podem ser avaliadas como algo pessoal, como produto da psique pessoal no analista, mas como uma produção compartilhada, que só pode ser compreendida à luz da psique do paciente – e por isso deve elaborada simbolicamente e devolvida ao paciente como interpretação ou como imagens simbólicas para ser trabalhadas como visão imaginal, como propõe Schwartz-Salant .

Tipos e varições

A classificação da contratransferência é apensas uma forma de visualisarmos, em linhas gerais, a possibilidade de manifestação. O que define de fato é a postura do analista e sua capacidade analisar suas próprias reações diante da contratransferência ou da contrarresistência desenvolvida no processo. No texto já citado, A transferência na psicologia analítica pt.2/2 eu discuti outras formas de transferências mais específicas. Aqui gostaria de focar em duas:

Contratransferência Verdadeira, sintônica ou útil – É o processo descrito acima na dialética interior, se refere ao aspecto positivo, criativo e saudável da transferência. Que permite ao analista se conectar, compreender e integrar conteúdos do paciente de forma tranquila.

Contratransferência neurótica ou ilusória – Ocorre quando o analista se identifica com os conteúdos do paciente ou com os próprios conteúdos ativados pelo paciente. Nesse aspecto o analista pode atuar ou responder ao paciente de acordo com seus próprios conteúdos (ou neurose ou necessidade) sem que estas favoreçam ou tragam benefícios reais ao paciente. Podemos pensar nesse sentido o aspecto do poder descrito pelo Guggenbul-Craig, quando se refere a sombra do analista em sua obra O abuso do Poder.

A contratransferência pode se dar de forma sutil ou aguda. Quando ocorre de forma sutil, ao longo das sessões o analista pode não se aperceber dos afetos brandos que vão se manifestando como simpatia, interesse, incômodo que não perturbam a relação mas colorem de diversas formas a percepção do analista. Em sua forma aguda, ou seja um rompante de tédio, raiva, ou sensação fisica durante a sessão, tende a chamar mais atenção, fazendo que o analista perceba de uma forma mais clara.

Duas formas de contratranferência que valem a pena comentar são a contratransferência erótica e a agressiva. Em todo caso, elas podem ser sintônicas ou ilusórias dependendo de como o analista lidou com sua experiência.

A respeito da contratransferência erótica Steinberg (1992) enumera alguns fatores que podem se relacionar ou desencadear a resposta sexual do analista. São eles:

  1. Compensação de uma relação insatisfatória entre analista e paciente.
  2. Sentimentos sexuais podem indicar uma carência sexual pessoal do analista.
  3. Pode se relacionar com a neurose própria do analista.
  4. Pode se relacionar com uma conduta sedutora do paciente de forma consciente ou inconsciente.
  5. Pode ser relacionar a uma percepção inconsciente da sexualidade reprimida do paciente.
  6. Pode ser uma concretização de um evento simbólico.

Do mesmo modo, Steinberg (1992) sugere algumas pistas para compreendermos a contratransferência agressiva. Segundo ele a contratransferência agressiva:

  1. Pode indicar o medo do paciente em estar numa relação de intimidade ou amor.
  2. Pode indicar sentimentos de raiva reprimida no paciente que este não reconhece conscientemente ou teme em expressar diretamente.
  3. Pode ser expressão da própria contratransferência neurótica.
  4. Pode indicar a introjeção de várias estruturas da personalidade do paciente (contratransferência delusiva).
  5. Pode indicar possíveis desenvolvimentos futuros do paciente ainda não perceptíveis a este.

A percepção dos sentimentos, pensamentos e sonhos de fundo erótico devem ser analisados pelo analista à luz da relação com o paciente, e caso o analista tenha dificildade de compreensão, deve procurar supervisão. Vale dizer que seria importante que o supervisor e analista pessoal sejam pessoas diferentes.

É muito importante compreender as feridas do analista ou ganchos presentes que sustentam as transferências.

Muitos caminhos

São várias as formas como os junguianos lidam e trabalham com a contratransferência. Muitos clássicos optam em suporta-la sem falar diretamente ou abertamente sobre a mesma. Muitas vezes, suprimindo as lacunas com a presença ativa através da autoexposição – que pode ser vista tanto de um aspecto positivo ou negativo (uma autoexposição neurótica, enfatizando o aspecto sombrio e impositivo do analista, e não o conteúdo simbólico da relação transferencial).

Com frequência, a autoexposição conscensiosa pode ser um instrumento simbólico importante na relação terapeutica, contudo, deve ser avaliada com atenção diante da relação transferencial para não ser uma atuação inconsciente diante dos conteúdos introjetados pelo analista.

Outra forma de trabalhar com a contratransferência, num processo contínuo é descrito por Nathan Schwartz-Salant como “visão imaginal” onde o analista compartilha a experiência simbólica das imagens interiores que emergem da contratransferência na relação terapêutica, de modo similar a uma imaginação ativa compartilhada com o paciente.

Sedgwicks (1999) dá uma sugestão de fases para se compreender e trabalhar com a contratransferência:

  • Preliminar : Se refere a formação, estudo, autoconhecimento do analista que possibilitará compreender o próprio processo e o processo do paciente.
  • “Limpando o campo”: consiste em se abrir para a experiência do inconsciente do paciente, sem julgamento , sem pressuposições acerca do paciente, permitindo que o conteúdo se manifeste.
  • Recepção: se refere ao acolhimento integral do paciente, isto é, uma atenção aos múltiplos processos do paciente – pensamentos, fantasias, estados de humor, expressões físicas e verbais etc. – que possam trazer reações do analista.
  • Seleção: consiste em selecionar, diante dos múltiplos estímulos, quais são mais pertinentes/relevantes à questão do paciente. E se manter na direção, percebendo o caminho que se contrói a partir das associações (tanto do paciente quanto do próprio analista).
  • Contenção: O analista serve de continente para os conteúdos do paciente. Esse processo pode se alongar, e o analista suportar e dar forma em si mesmo ao conteúdo do paciente.
  • Resolução: Consiste na forma ou meio que o analista utiliza para devolver ao paciente o conteúdo assimilado por este.
  • Incubação: após a devolução do conteúdo ao paciente, o analista deve aguardar, quase num estado de suspensão entre as interpretações e a compreensão do paciente sobre as mesmas.
  • Validação: é a fase onde se verificam as mudanças tanto em relação às percepções contratransferenciais, comportamentos e atitudes do paciente e também nas manifestações inconscientes, como os sonhos.

Essas etapas são didáticas e favorecem a reflexão acerca da importância da conscientização da contratransferência e de seu uso como fator fundamental para a construção do processo de mudança do paciente.

Refererências bibliográficas

JUNG, A Prática da Psicoterapia,Petrópolis: Vozes, 1999.

Fordham, M R. Gordon, J. Hubback and K. Lambert (eds), Technique in Jungian Analysis. London: Heinemann, 1974.

SEDGWICKS, D. The wounded Healer, Routledge: NewYork, 1999.

STEINBERG,W. Aspectos Clínicos da Terapia Junguiana, São Paulo: Cultrix, 1992.

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico Junguiano, Supervisor Clínico, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Pós-graduando em Acupuntura Clássica Chinesa (IBEPA/FAISP). Formação em Hipnose Ericksoniana. Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos” Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 99316-6985. / e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes /Instagram @fabriciomoraes.psi

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