
Pacientes Limítrofes : Sofrimento e Trauma
Falamos pouco sobre pacientes borderline ou limítrofes. E, quando se fala, geralmente são falas preconceituosas, com uma percepção muito negativa dos pacientes.
A visão predominante no meio junguiano vem da psiquiatria/psicopatologia descritiva que enfoca os sintomas, classificando-os, não valorizando os processos históricos e afetivos que atravessam o sujeito. Assim, os quadros limítrofes ficaram restritos ao diagnóstico de “transtorno de personalidade borderline” cujo diagnóstico corresponderia ao que a psicodinâmica compreenderia como os mais graves do “espectro borderline”.
Acredito que essa lacuna, acerca dos quadros limítrofes, se deva em parte ao fato de Jung não ter utilizado essa terminologia (vide o texto “Estados Limítrofes ou Borderline e a Psicologia Analítica”); e da preferência junguiana pelo uso referências impessoais, míticas e arquetípicas para pensar a clínica, em especial nas escolas clássica e arquetípica, que são hegemônicas no Brasil; com uma perspectiva que se afasta da clínica individual, focada na história e desenvolvimento do indivíduo. O campo arquetípico é importante no processo de amplificação, mas não substitui nem elucida a história pessoal.
Os quadros limítrofes ou casos-limite se referem a uma organização psíquica que apresenta um ego fragilizado, defensivo, com poucos recursos simbólicos, que fogem ao modelo de desenvolvimento associado ao processo de individuação. Schwartz-Salant, um dos autores junguianos pioneiros nesse campo, comenta
que as tentativas para compreender a fenomenologia da personalidade limítrofe exclusivamente em função de mecanismos psicóticos e/ou neuróticos são insuficientes para uma plena apreensão do distúrbio. O psicanalista francês André Green sugeriu que a categoria “limítrofe” deveria corresponder a uma identidade própria (1977, p. 17) e que ela pode exigir um modelo que não seja baseado na psicose ou na neurose. Concordo inteiramente com este ponto de vista. (SCHWARTZ-SALANT, 1992, p18)
Os quadros limítrofes, apesar da terminologia, não indicam apenas território ou uma fronteira entre a psicose e a neurose, mas uma organização psíquica específica que em dadas situações podem apresentar defesas e características tanto neuróticas quanto psicóticas. De uma forma mais ampla podemos compreendê-los como
Os pacientes que não se enquadram nos parâmetros da neurose ou da psicose, na literatura, recebem a denominação de “limite”, nome que os situa em um “espaço-entre”, ou seja, entre psicose e neurose. É uma classificação que acolhe pacientes com certas características comuns, embora alguns se aproximem mais das psicoses e perversões, enquanto outros apresentam aspectos que os aproximam mais das neuroses.
Predominam nesses casos sintomas como atuações, violência, dificuldades de simbolização, dificuldades ou peculiaridades no estabelecimento de vínculos, sintomas que, geralmente, não veiculam uma representação simbólica, como acontece nas neuroses.
Muitos autores incluem nessa categoria quadros psicossomáticos, distúrbios alimentares, adições e busca compulsiva de modificações do corpo (cirurgias, piercings, tatuagens). São os pacientes borderline na literatura inglesa, cas-limites entre os franceses e casos fronteiriços ou limite entre nós. Green (2000/2002) considera que, nos dias atuais, pacientes com configurações mentais borderline tornaram-se parte tão importante da clínica psicanalítica que é possível dizer que eles formam seu núcleo. (MATTOS, 2018, p.43)
Os quadros limítrofes não se restringem à categoria diagnóstica, mas uma percepção hermenêutica que possibilita compreender como quadros complexos e aparentemente muito distintos entre si, como citados por Mattos, possuem aspectos psicodinâmicos similares. Em todos esses casos, podemos encontrar a angústia de abandono, estados de dissociação e fusão com objeto como pano de fundo.
A perspectiva junguiana que mais se aproxima do estudo dos casos limítrofes é a perspectiva desenvolvimentista. Esta ganhou destaque no Brasil com o livro “O mundo Interior do Trauma” de Donald Kalsched, trazendo a infância e o trauma precoce para o debate junguiano no Brasil.
Em português, temos dois textos importantes de Nathan Schwartz-Salant para compreender os quadros limítrofes, são eles “A Personalidade Limítrofe” (1992) e o “O Mistério das Relações Humanas”(2024). Ele integra uma compreensão desenvolvimentista com a dimensão arquetípica dos quadros limítrofes.
Esses e outros autores, como Marcus West, Jean Knox são importantes nos auxiliam a compreender o sofrimento e a organização limítrofe.
O Trauma e sofrimento em pacientes limítrofes
Os quadros limítrofes são marcados por um profundo sofrimento. Muitas vezes esse sofrimento não possui representação de origem, isto é, uma memória que marca ou atribui um sentido ao sofrimento, ele é vivenciado como uma angústia fortemente enraizada na alma e no corpo. Mesmo nos casos em que os pacientes conseguem acessar memórias de situações traumáticas, as lembranças dolorosas não produzem significado, apenas os assombram e, frequentemente, fortalecem os processos defensivos.
O trauma precoce como descrito por Kalsched é o ponto de partida para entendermos a organização psíquica do paciente borderline. É importante termos em mente que
Quando usamos a palavra “trauma”, estamos nos referindo a alguma experiência aguda ou acumulativa que nos “despedaça”. Este despedaçamento é tanto um evento exterior que nos choca e um evento interior que chamamos de dissociação. (KALSCHED, 2019, p.442)
O termo despedaçar expressa bem a dimensão do sofrimento vivido no trauma. O “despedaçamento” é uma profunda desorganização do mundo da criança que rompe com as relações de apego, de segurança e interrompendo o processo de individuação. A experiência traumática gera uma grave desagregação na psique, produzindo sérias feridas narcísicas, isto é, deixando o ego profundamente ferido.
A incapacidade das defesas do ego frente a experiência traumática, mobiliza defesas primitivas, pré-egóicas como uma forma de buscar manutenção da vida e de reorganização da psique, que são chamadas de defesas do Self ou defesas arquetípicas. Essas defesas são caracterizadas por processos dissociativos, ataque aos vínculos, fantasias arquetípicas ambivalentes que aprisionam e protegem o ego fragilizado num mundo interior esvaziado. Essas defesas, apresentam características similares a posição esquizoparanóide descrita por Melaine Klein.
É preciso termos uma atenção quando falamos sobre trauma precoce. Como mencionado acima, o trauma pode ser uma experiência aguda, disruptiva como uma violência, uma forte ameaça a continuidade da vida (como uma doença ou acidente), ou uma perda significativa. Essas são as experiências reconhecíveis.
As experiências acumulativas, por outro lado, também podem se dar em casos de violências e abusos constantes, contudo, com frequência, as experiências de negligência afetiva, a falta de contato e sintonia mãe-bebê, de validação, excesso de cobranças, destroem a possibilidade da criança se perceber como suficientemente boa, digna de amor, inscrevendo o sentimento de rejeição e de abandono.
Quando falamos nessas experiências traumáticas sejam elas agudas ou cumulativas, muitas pessoas se reconhecem em algumas dessas experiências, mas não se enquadram nos quadros limítrofes. Isso ocorre, porque apesar de terem passado por experiências traumáticas, encontraram substitutos (como avós, madrinhas, tias ou professores) que forneceram contorno, acolhimento, segurança e afeto. Esse investimento afetivo possibilitou reparação das relações internas e externas. De outra forma, podemos dizer que a ferida narcísica dessas pessoas foi cuidada, deixando uma cicatriz, que é perceptível na autoestima, na síndrome do impostor(a), na autocobrança. Os pacientes limítrofes tem essa ferida aberta e exposta.
Schwartz-Salant(1992) comenta que, para o paciente limítrofe, é como se não houvesse o objeto bom, vivendo um estado de desesperança, vazio, aguardando o próximo abandono ou rejeição. Dessa forma, para lidar com esses sentimentos vivenciados como autojulgamento, dor, incapacidade, dentre outros. Alguns pacientes tentam controlar o sofrimento, se identificando com eles, e assim sofrem sozinhos, se punem das mais diversas formas e tentam agradar as pessoas ao redor, se fechando às relações para não serem vistas como são. Outros pacientes vivenciam as mesmas tensões interiores, mas descarregam a dor e o sofrimento nas relações, tensionando o convívio, gerando situações de agressividade, cobrança e angústia que levam ao ciclo de rompimento e abandono.
Em todo caso, sempre nos deparamos com a dificuldade de contato e de reflexão acerca das experiências vividas objetivamente.
O limítrofe muitas vezes experimenta ou uma lacuna imaginativa ou um fluxo torrencial de imagens e afeto em incontáveis fantasias passivas que destroem a capacidade de vivenciar sentimentos. A falsa imaginação funciona para cindir a pessoa de seus sentimentos; também favorece a cisão corpo-espírito e muitas vezes se manifesta em queixas somáticas. (SCHWARTZ-SALANT, 1992 p.223)
O processo defensivo contínuo anula a possibilidade de construção e elaboração simbólica, isto é, há uma inibição da função transcendente. O paciente é inundado de afetos que consegue traduzir ou elaborar simbolicamente, assim, ele atua. Comportamentos compulsivos, comportamentos autolesivos, abusos de substâncias e situações de risco são atuações diante do desespero interior, que continua não representado.
Os pacientes limítrofes são “destrutivos”?
Certa vez, em um grupo, no qual foi apresentado um caso de um paciente eu sugeri que seria um caso limítrofe, fui questionado por um colega que não poderia ser, porque o paciente não era disruptivo, não ficava faltando sessões, não mandava centenas de mensagens para o terapeuta, nem era agressivo ou fazia ameaças, pois segundo o colega “todos os pacientes borderline são assim”, se referindo ao Transtorno de Personalidade Borderline (TPB).
Tentei explicar que não me referia ao TPB do diagnóstico psiquiátrico, mas a organização psíquica limítrofe. E, que mesmo os pacientes limítrofes ou borderline diagnosticados como TPB, sofrem profundamente e, possuem as diferentes formas de defesa expressam a dificuldade de estabelecerem vínculos, inclusive na terapia. A ausência de discussão clínica sobre os casos limítrofes gera o desconhecimento que alimenta o preconceito.
Seriam todos os pacientes limítrofes “pessoas más ou destrutivas” como sugeriria o colega? Ouso dizer que não. Já atendi muitos pacientes limítrofes, em sua maioria padeciam no inferno de dissociações e fantasias autodepreciativas e dúvidas sobre si-mesmos. E, na busca se “serem pessoas boas”, serem aceitas e, assim, amenizar uma profunda culpa existencial, se doavam para os familiares, trabalho e pessoas próximas. Muitos deles atuavam em profissões de cuidado e saúde. Schwartz-Salant comenta que
A pessoa limítrofe pode ser um médium ou um indivíduo criativo e talentoso; no entanto é em geral apenas um “receptor” destas informações e só de vez em quando pode interagir com elas de um modo significativo. As pessoas limítrofes podem muitas vezes usar os seus dons psíquicos para ajudar os outros, mas podem fazer pouco para se ajudar. Sujeitas ao inconsciente, elas se sentem impotentes ao se confrontarem com tal conteúdo. Portanto, a função transcendente é fundamental à terapia do limítrofe.(SCHWARTZ-SALANT, 1992, p.239 – grifo nosso)
A capacidade de ajudar, de cuidar coexiste com o sofrimento do paciente limítrofe. Estigmatizar os pacientes borderline como pessoas destrutivas ou más é uma forma de retraumatizar essas pessoas. Assim, preconceito que é tão disseminado contra as pessoas limítrofes prejudica o diagnóstico, o reconhecimento das qualidades e as possibilidades de tratamento.
Referências Bibliograficas
MATTOS, Ligia Todescan Lessa. Um território sem fronteiras: os casos-limite. J. psicanal. [online]. 2018, vol.51, n.95 [citado 2025-05-09], pp.43-57. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-58352018000200005&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0103-5835.
KALSCHED,D. O Mundo interior do Trauma, São Paulo:Paulus, 2013
SCHWARTZ-SALANT, N. A personalidade limítrofe: visão e cura. São Paulo: Cultrix: 1992.
STEIN, M. (org) Psicanálise Junguiana: Trabalhando no Espirito de C.G.Jung, Vozes, Petrópolis, 2019.
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