Desafios da Psicoterapia com Pacientes Limítrofes

Os casos limítrofes são desafiadores para a clínica junguiana, especialmente por termos muito pouco publicado material sobre o tema. Recentemente, abordamos a temática dos casos limítrofes em dois textos aqui no blog, foram eles: “Estados Limítrofes ou Borderline e a Psicologia Analítica” e “Pacientes Limítrofes : Sofrimento e Trauma”. Nestes textos, enfatizamos a importância de compreendermos a organização limítrofe, cuja psicodinâmica pode ser o pano de fundo de diferentes manifestações clínicas que são desafiadoras como transtornos obsessivos-compulsivos graves, transtorno bipolar, transtornos alimentares, somatizações, dentre outras.

A organização dos quadros  limítrofes possui íntima relação com trauma relacional precoce, assim são pacientes que sofrem profundamente e vivem em processos dissociativos contínuos relacionados à vivência traumática, que foi descrita por Kalsched como um mecanismo interno de retraumatização.

Essas descobertas feitas por meio da exploração do mundo interior nos ajudam a explicar duas das constatações mais perturbadoras na literatura a respeito do trauma. A primeira constatação é que a psique traumatizada é autotraumatizante. O trauma não termina com a cessação da violação externa, mas prossegue com o mesmo vigor no mundo interior da vítima do trauma, cujos sonhos são, com frequência, assombrados por figuras interiores opressoras. A segunda constatação é o fato aparentemente perverso de a vítima do trauma psicológico continuamente dar consigo em situações de vida nas quais é retraumatizada. Por mais que ela queira mudar, por mais que ela tente melhorar a vida ou os relacionamentos, algo mais poderoso do que o ego continuamente debilita insidiosamente o progresso e destrói a esperança. É como se o mundo interior opressor de alguma maneira conseguisse encontrar o seu espelho externo em “reapresentações” condutíveis ao próprio fracasso – quase como se a pessoa estivesse possuída por algum poder diabólico ou sendo perseguida por um destino maligno. (KALSCHED, 2013, p.20)

O processo de retraumatização é uma consequência das defesas arquetípicas que, frente à devastação do trauma, cindem o mundo interior isolando o sofrimento e, assim, possibilita a continuidade da vida apesar do trauma. Em algumas situações, ego é tão profundamente afetado ou ferido que, em seus aspectos defensivos e de autorrepresentação, que o processo defensivo, chamado por Kalsched de “sistema arquetípico de autocuidado” assume uma configuração própria, com moldes patológicos.

As defesas arquetípicas, portanto, possibilitam a sobrevivência à custa da individuação. Elas garantem a sobrevivência da pessoa, porém à custa do desenvolvimento da personalidade. A “meta” delas, como vim a interpretá-las, é manter o espírito pessoal “em segurança”, porém desincorporado, encapsulado ou de alguma outra maneira expulso da unidade corpo/mente – impedido de ingressar na realidade do tempo e do espaço (KALSCHED, 2013, p. 79)

Esses casos sempre foram considerados desafiadores para a análise. No início do século XX, eram casos muito refratários à análise e, às vezes, considerados inanalisáveis, um exemplo bem conhecido foi “o Caso do Homem dos Lobos” de Freud. Por outro lado, Jung sempre alertava sobre os desafios com pacientes aos quais se referia como “casos de psicose latente”. Posteriormente, a terminologia acerca desses quadros foi evoluindo até se popularizar como limítrofes ou borderline, ou casos-limite como foram chamados pelo psicanalista André Green. Os casos mais graves foram descritos como transtornos de personalidade.

Dessa forma, é importante compreendermos que em nosso texto falamos de caso-limite ou borderline numa perspectiva psicodinâmica e não classificação psiquiátrica de “Transtorno de Personalidade Borderline”, que compreendemos este ser um caso extremo no espectro dos casos limítrofes.

Assim, o ponto de partida para compreender os casos limítrofes é a perspectiva do trauma precoce. A fim de prevenir um novo trauma, a psique se retraumatiza, limitando a capacidade do indivíduo experienciar a vida, o novo e estabelecer relações afetivas saudáveis. Deste modo, fantasias passam a mediar a relação com o mundo exterior, distorcendo as percepções, como que imersos num transe, que os conduz a fracassos em relacionamentos ou outras situações que ofereceriam um amadurecimento e expansão de possibilidades.

Essa contextualização é importante como uma base para pensarmos alguns dos desafios e possibilidades de manejo que encontramos junto aos pacientes limítrofes.

1 – Desconhecimento e preconceito

A primeira vez que ouvi sobre pacientes borderline foi em uma aula de psicopatologia, ainda na graduação, no início dos anos 2000. Nessa aula, a professora disse apenas que são pacientes muito difíceis, que seria necessário manter uma regra rígida de horários, sempre cobrar por sessão ou antecipado, pois eles poderiam sumir e não pagar, e que seriam pacientes com pouca aderência ao tratamento. Mas, nada foi dito acerca do sofrimento desses pacientes, apenas que são difíceis.

Em uma situação mais recente, em um grupo, quando foi falado acerca de um paciente, que sugeri ser limítrofe, fui interpelado dizendo que não podia ser limítrofe, pois o paciente não atacava o terapeuta ou a terapia, não tinha grande desorganização psíquica. Tentei explicar, sem sucesso, que falar de paciente limítrofe ou caso-limite fazia uma referência a uma percepção psicodinâmica e não do diagnóstico psiquiátrico de Transtorno de Personalidade Borderline, que no geral se referem aos quadros mais graves dos pacientes limítrofes, especialmente em momentos de crise.

Nessas duas situações, a percepção sobre esses pacientes é como se fossem apenas pacientes problema. Apresento essas situações pois, o preconceito e o desconhecimento são dois desafios importantes na compreensão a psicodinâmica e manejo desses quadros. Esses desafios antecedem a relação com paciente e, por isso mesmo, podem definir a relação com paciente.

Com isso, não quero dizer que não sejam pacientes complexos, com muitos desafios – sim, o são; contudo, compreender os processos que ocorrem na clínica é fundamental para dar continência ao paciente.

2 – O enquadre e início da psicoterapia

O primeiro desafio com o paciente é estabelecer um contrato inicial que possibilite sua entrada e a continuidade no tratamento. Não é comum um paciente buscar psicoterapia por ser limítrofe. De forma geral, o paciente busca por problemas no trabalho, no relacionamento, por compulsões, abuso de substâncias, somatizações, transtornos alimentares, ideação suicida, ataques ao corpo etc. Assim, precisamos estabelecer com clareza quais são os objetivos ou metas da psicoterapia, os valores, quantidade de sessões, técnicas utilizadas.

É importante que a psicoterapia seja previsível, isto é, tenha um ritmo e “rito” que permita que o paciente se sinta seguro, sem grandes alterações que intensifiquem as defesas do paciente. Lembrando que a transferência não é apenas com o psicoterapeuta, mas com o ambiente e o enquadre. As modificações devem ser conversadas com o paciente.

Em casos que o paciente apresente riscos, é importante deixar claro que se for preciso o psicoterapeuta entrará em contato com a família, mas é importante que seja feita um acordo (entre o paciente e o psicoterapeuta) sobre como esse contato será feito, para assim mantê-lo seguro acerca do contato e resguardar o máximo possível do sigilo. Outro aspecto necessário é a combinação acerca do acompanhamento com psiquiatra, ou outro profissional, caso necessário, deixando acordado que caso o profissional não seja procurado as sessões serão suspensas.

Em alguns momentos, o acordo será atacado, com tentativas de mudança, faltas, atrasos. É importante buscar o restabelecimento do combinado, mas, com a cautela de não parecer um ataque ou uma retaliação contra o paciente. O objetivo é deixar clara a responsabilidade do paciente sobre seu tratamento e evitar expectativas distorcidas sobre o processo.

Os pacientes limítrofes possuem uma profunda dificuldade em estabelecer uma relação saudável; assim, é possível que – em sua fantasia – haverá o risco um abandono, rejeição ou uma agressão, por isso se defendem contra a relação terapêutica.

3 – Processos defensivos intensos

As defesas são um aspecto do psiquismo que são pouco faladas ou ignoradas  no campo junguiano. Podemos descrever as defesas como funções psíquicas. E, para Jung as funções são “certa forma psíquica de atividade que, em princípio, permanece idêntica sob condições diversas” (JUNG, 1991, p.412). As defesas são um aspecto da vida psíquica que tem função proteger, estabilizar e organizar os processos psíquicos, isto é, as defesas possibilitam que o processo psíquico se diferencie, limite impulsos e estímulos (tanto psíquicos quanto somáticos), possibilitando a estabilidade ou sensação de continuidade e segurança do self e, posteriormente, do ego.

Como dito, o ponto de partida para compreensão dos quadros limítrofes é o trauma – que é uma experiência disruptiva, violenta que extrapola a capacidade de defesa ego. Ou seja, toda experiência que promova dor, ansiedade e ameaça que extrapole a capacidade do ego em metabolizá-la, isto é, em manter-se estável, íntegro e, assim, contornar ou controlar essa dor ou experiência, é um trauma – tanto no adulto quanto na criança.

Assim, quando o ego é incapaz de se manter funcional pelas próprias defesas, uma segunda linha defesa é ativada, são os processos defensivos basais, pré-simbólicos, que possibilitam o estabelecimento da vida psíquica na primeira infância, ou seja, são fundamentos para o desenvolvimento e organização do próprio ego na infância. Assim, essas defesas são denominadas defesas primitivas, arquetípicas ou do Self.

Melanie Klein foi quem primeiro descreveu o funcionamento das defesas primitivas na vida do bebê. Esse modo de organização psíquica e de apreensão da vida psíquica, defesas, relações objetais, manejo da angústia, foi chamado de posição esquizoparanóide. Esta posição não se restringe à infância: é um modo de organização psíquica presente em toda vida. Ogden(2017) aponta que estado mental esquizoparanóide indica um modo impessoal, não reflexivo, impulsivo de se relacionar, isto é, o ego não é sujeito da ação, ele é levado pelos processos inconscientes e defensivos.

As defesas primitivas são próprias à posição esquizoparanóide. Como temos poucas referências junguianas acerca dos processos defensivos, vamos fazer uma descrição acerca das defesas primitivas, utilizando as descrições Kernberg fez a partir do trabalho com pacientes limítrofes.

Discutiremos a seguir cada defesa primitiva.

Clivagem: A manifestação mais clara de clivagem é observada na percepção do paciente acerca do terapeuta ou do self como totalmente bom ou totalmente mau, com a possibilidade concomitante de uma inversão completa, abrupta, de todos os sentimentos e conceptualizações relevantes. Mudanças repentinas na percepção do paciente em relação ao terapeuta ou ao self, ou uma separação completa de reações contraditórias ao mesmo tema transferencial são manifestações de mecanismos de clivagem.

Idealização Primitiva – A idealização primitiva, a onipotência e a desvalorização derivam todos elas da clivagem. A idealização primitiva complica a tendência a ver objetos externos como totalmente bons ou totalmente maus, ao acentuar, artificial e patologicamente, a sua qualidade de bondade ou maldade.

A idealização primitiva cria imagens irrealistas, totalmente boas e todo poderosas, refletidas no tratamento que o paciente dá ao terapeuta como uma figura ideal, onipotente ou endeusada da qual pode depender sem questionamentos. O terapeuta pode ser visto como um aliado em potencial contra objetos totalmente maus, igualmente poderosos (e igualmente irrealistas) dentro do paciente.

Onipotência e Desvalorização – A onipotência e a desvalorização, assim como a idealização, afetam tanto as representações do self quanto as do objeto. De modo típico, os pacientes borderline se representam de um modo grandioso, inflado, tratando o terapeuta de uma maneira depreciativa, apesar de poder ocorrer também o inverso. Na fase inicial há frequentemente uma alternância de uma posição para a outra.

Identificação Projetiva – Tal como ressaltado no Capítulo 1, em contraste como níveis mais altos de projeção que se caracterizam pela atribuição a um outro de um impulso reprimido em si próprio -as formas primitivas de projeção, sobretudo a identificação projetiva. caracterizam-se por (1) tendência a continuar a experienciar o impulso que está sendo simultaneamente projetado sobre a outra pessoa, (2) medo da outra pessoa agora vista sob a influência do impulso projetado, (3) a necessidade, portanto, de controlar a outra pessoa e (4) uma tendência inconsciente a estimular a identificação temida e projetada na outra pessoa. A identificação projetiva implica, portanto, em interações, e isto pode se refletir de forma dramática na transferência.

O paciente que está tentando induzir uma certa reação no terapeuta pode acusar o terapeuta de ter aquela reação. Por exemplo: o paciente acusa o terapeuta de ser sádico, mas trata o terapeuta de uma maneira controladora, fria e depreciativa, sentindo, ao mesmo tempo, a necessidade de defender-se contra ele.

Denegação – A denegação em pacientes borderline reforça o processo de clivagem. Estes pacientes podem se lembrar de percepções, pensamentos e sentimentos acerca de si próprios ou de outras pessoas completamente opostos aos experienciados naquele momento, mas esta lembrança não tem relevância emocional alguma e não consegue influenciar o modo como eles se sentem agora. A denegação pode se manifestar pela falta de uma reação emocional apropriada a uma necessidade, conflito ou perigo imediatos, sérios.  O paciente demonstra calmamente uma conscientização cognitiva da situação, mas nega as suas implicações emocionais, ou fecha à consciência toda a uma área, “protegendo-se”, assim, contra uma área potencial de conflito.

A interpretação sistemática das defesas primitivas leva a mudanças nas relações de objeto ativadas na sessão. (KERNBERG et al, 1991,p.115-6)

As defesas descritas por Kernberg nos auxiliam a compreender os processos que vivenciamos com os pacientes nas sessões e entender os como os pacientes reagem em seu cotidiano. Os processos defensivos que se sobrepõem ao objeto e a realidade. Um aspecto que foge à percepção psicanalítica é o aspecto mitopoético da psique, isto é, a formação de imagens, representações coletivas para dar continência ao sofrimento insuportável.

Essas representações assumem forma de fantasias defensivas que, como

“um estado dissociado que não equivale nem a imaginar nem a viver em uma realidade externa mas a um tipo de meio-termo autoconfortante melancólico que continua para sempre, uma utilização defensiva da imaginação com o objetivo de evitar a ansiedade.” (KALSCHED, 2013, p.72),

Essas fantasias, muitas vezes de cunho arquetípico, aparecem como sonhos, na forma de devaneio, pensamentos, sensações e nas atuações. Mediando a relação dos pacientes com a realidade, isto é, distorcendo as percepções, julgamentos e sabotando as relações com a realidade. Assim, o processo defensivo é a base das resistências mais persistentes.

Para lidarmos com as defesas precisamos ter em mente que uma interpretação, isto é, a atribuição de significado a elemento inconsciente, pode ter pouco efeito ou ser tomado negativamente com o paciente limítrofe dada a natureza defensiva de sua organização psíquica. Assim, precisamos observar contra o qual objeto o paciente se defende e nomear o processo defensivo, para assim, e apresentar o objeto contra o qual o paciente se defende. Esse processo pode ser feito por meio observação confortativa ou da inferência elucidativa.

A observação confortativa é uma forma de apresentar ao indivíduo a parte cindida ou dissociada dos objetos. De forma geral, consiste em indicar ou chamar a atenção do paciente para um ato, padrões de comportamento, afeto, respostas para as quais o paciente possa não estar consciente. Não há uma explicação, apenas uma apresentação da situação. Por exemplo, “quando você fala, é como se todos os seus colegas de trabalho fossem ruins e contra você?”, em outra situação “você percebe como você se diminui para justificar as atitudes seu parceiro?.

A inferência elucidativa visa estabelecer uma possível relação entre um comportamento, afeto com uma dinâmica inconsciente ou relacionada com o passado. Por exemplo, podemos dizer que “você percebe que o seu medo, mais uma vez, te afasta as pessoas te fazem bem.” Ou “me parece que, apesar sofrer, você tenta cuidar de seus colegas, da mesma fora que você era obrigado a cuidar da sua mãe em sua infância”.

Em alguns casos, quando o tratamento está mais avançado, o paciente consegue lidar melhor com a realidade sem dissociar ou dividir os objetos, pode-se entrar com uma interpretação, ligando o processo defensivo com aspectos do trauma. Contudo, o paciente precisa estar com o ego fortalecido e organizado.

Em todo caso, o rêverie pode ser um recurso sempre importante que nos permite a construção simbólica de um objeto, a partir da contratransferência, com o qual o paciente possa se perceber e trazer a consciência o seu processo defensivo.

4 – Capacidade simbólica reduzida

De forma geral, os pacientes limítrofes possuem uma capacidade simbólica reduzida. Isso porque o processo simbólico é atacado pelas defesas impedindo afetos, lembranças, sensações relacionadas a devastação vivida no trauma sejam reintegrados. Acontece que a maioria dos junguianos pressupõe que o paciente possua sua capacidade simbólica preservada para lidar com sonhos, sintomas, técnicas expressivas, metáforas e amplificações.

A limitação da capacidade simbólica é percebida através do pensamento concreto, isto é, o pensamento orientado pelos objetos externos, na realidade exterior. Esse tipo de pensamento, comum em crianças menores, indicam no jovem ou no adulto um empobrecimento do mundo interior. Esses pacientes, tendem a responder diretamente, por exemplo, quando perguntamos sobre sua semana eles descrevem acontecimentos, sem presença e sem afeto ou subjetividade. Sobre o pensamento concreto Winborn comenta

Para os pacientes que pensam de forma concreta, a experiência é processada como um dado estático – “simplesmente é” em vez de “é como se”. O pensador concreto pensa principalmente em termos literais. por exemplo, se um carro aparece em seu sonho, ele tem muita dificuldade significativa em imaginar que a imagem do carro possa se referir a qualquer coisa que não seja que não seja um carro que possui, um carro que deseja ou um carro que viu recentemente. A ambiguidade e a complexidade geralmente são ameaçadoras, confusas ou sem sentido para o indivíduo que vivencia a vida de forma concreta. Como resultado, o pensamento concreto reifica a experiência, transformando experiências menos tangíveis em “coisas” que podem ser manuseadas, manipuladas ou conhecidas. As palavras não são utilizadas como veículos para a compreensão, mas como ferramentas a serem utilizadas para ações (Tuch 2011).

O pensamento concreto leva à realização imediata (ação) ou) ou descarga de um impulso, enquanto o pensamento simbólico permite algum atraso e reflexão antes que a necessidade sentida de ação seja posta em prática (Tuch 2011). Por fim, o pensamento concreto geralmente é um fator subjacente ou contribuinte para outras condições, como somatização, transtorno obsessivo-compulsivo, alexitimia, transtornos alimentares, perversões e vícios (ibid.). Com frequência, o corpo se torna a única via disponível para a expressão de sentimentos implícitos ou inconscientes. inconsciente quando o pensamento concreto predomina. (WINBORN, 2023, p. 96 – tradução nossa)

A capacidade simbólica limitada se torna um desafio para a comunicação no processo psicoterapêutico, pois a linguagem simbólica, metafórica ou mesmo alegórica não produz efeito transformador com o paciente, assim como uso de técnicas expressivas e imaginais. Isso pode gerar uma frustração e expectativas no paciente e no analista, o que pode levar resistências e respostas transferenciais negativas.

A psicoterapia com pacientes limítrofes tem no manejo da transferência-contratransferência o seu principal caminho. Assim, um recurso importante para o analista é utilizar da própria função transcendente e da contratransferência para dar contornos ao processos pré-simbólicos, relacionados com a parte psicótica da personalidade dos pacientes(que veremos mais adiante). O processo de construção simbólica a partir da contratransferência foi chamado por Schwartz-Salant de visão imaginal, sendo essencialmente similar ao Rêverie de Bion.

Através da função transcendente do analista, é possível acessar e transformar os elementos cindidos do paciente, atribuindo um contorno e significado tornando-os acessíveis ao ego do paciente. Esse é um passo importante para restabelecer a função transcendente do paciente, que posteriormente será capaz de responder as técnicas simbólicas comumente utilizada pelos junguianos.

5 – A somatização e Atuação

Os processos dissociativos do paciente limítrofes produzem níveis perceptivos distintos, onde o ego possui uma percepção limitada tanto dos processos somáticos quanto das ações ou comportamentos. Dessa forma, a somatização e a atuação são expressões defensivas que protegem o ego de conflitos passados, assim como de possíveis conflitos.  Segundo Kernberg,

a intolerância à experienciação de conflito psíquico e de dor pode tomar a forma de eliminação destes conflitos através da ação (acting out) ou por transferência simbólica do conflito para o domínio do físico e do biológico. O paciente, de repente, apresenta sintomas físicos, claramente psicogênicos. A maior parte dos pacientes com fraqueza de ego e grave patologia de caráter, ou seja, com condições borderline, tem um grau pequeno de tolerância à experiência intrapsíquica, transformando-a rapidamente em acting out ou em somatização. (KERNBERG et al, 1991, 176)

A atuação e a somatização, cada uma a sua maneira, podem ser grandes desafios ao processo terapêutico. Na atuação, o paciente traz para o campo transferencial ações que expressam ou extravasam o conflito psíquico, que podem acontecer na sessão ou entre as sessões. Durante as sessões o paciente o paciente pode alterar a voz, se atrasar, ter um gestual ou expressões agressivas, sair mais cedo, bater a porta, ao invés de expressar, em palavras, a raiva.  Fora da sessão, o paciente pode causar autolesões, agredir outros, entrar impulsivamente em relacionamentos “tóxicos”, retomar comportamentos anteriores patológicos, prejudicando o tratamento.

Do mesmo modo, somatizações como dores, limitações motoras , exaustão física, dentre outras tiram o foco do conflito, prejudicando o tratamento, impelindo o terapeuta para atuar conjuntamente.  

A atenção a esses processos é importante para o terapeuta não atuar, assim como poder trazer como objeto analítico os elementos que evitados e descarregados nas atuações e somatizações. No geral, o foco deveria ser no “como” essas atuações/somatizações prejudicam ou atacam o processo terapêutico, utilizando as formas interpretativas mencionadas anteriormente, a observação confrontativa e a inferência elucidativa, integrando a raiva ou outros sentimentos cindidos como forma de fortalecimento do ego.

6 – A Transferência e a contratransferência

A relação transferencial é o central no trabalho analítico. Quando atendemos pacientes limítrofes a transferência se manifesta de forma intensa e, relativamente, imprevisível. Isto porque, no processo transferencial lidamos tanto com conteúdos potencialmente acessíveis à consciência, como os complexos, quanto com conteúdos inacessíveis à consciência. Esses últimos se mantêm indiferenciados, pré-simbólicos, pela atuação das defesas que impendem a transformação simbólica. Esses conteúdos que foram descritos por Bion como sendo a “parte psicótica da personalidade”.

Sobre a parte psicótica da personalidade, Schwartz-Salant diz que “entendo aqueles aspectos da psique não contidos pelo si-mesmo e nos quais a função autorreguladora da psique falha”(2024, p 73). A parte psicótica da personalidade é formada por conteúdos cindidos de complexos, afetos intensos, fragmentos sensoriais, aspectos arquetípicos e defesas primitivas que são incompatíveis com a realidade.

Na atuação das defesas do self cindido em pacientes vítimas de trauma precoce, a psique inibindo a função transcendente, favorece a parte psicótica da personalidade, formando elementos ou objetos bizarros- na linguagem de Bion – que distorcem a percepção impedindo a relação com a realidade exterior. Esses elementos formam complexos bizarros, que não guardam propriamente uma memória com significando, mas congregam nosso caos interno, e foram apontados por Jung como complexo do trauma.

Todos temos esses aspectos “psicóticos”, quando irrompem nos vemos momentaneamente dissociados da realidade, sentimos ansiedade, temos intuições delirantes, mal-estar físico ou entramos em desorientação mental. No caso dos pacientes limítrofes, quando a parte psicótica da personalidade é tocada ou ativada, ela mobiliza os afetos intensos e ambivalentes, gerando intensa labilidade emocional, distorcendo da percepção e a relação realidade, comportamentos impulsivos, interpretação delirante que impedem a relação com a realidade.

Na maioria das situações, quando a análise toca em alguma dessas “partes psicóticas” e o caos psíquico se instaura com percepções fantasiosas e delirantes, é através da relação transferencial que conseguimos dar contornos, continência possibilitando a reorganização da psique. Contudo, existem situações que que os elementos ou complexos bizarros, ao invés de serem evacuados na identificação projetiva para situações e pessoas externas, eles se manifestam na transferência, distorcendo o campo transferencial gerando tipo de transferência que é chamada de transferência psicótica, delirante ou delusiva.

Quando o setor psicótico é avivado no trabalho analítico, surge uma transferência que tem um parentesco com a descrição de Harold Searles da transferência psicótica com analisandos esquizofrênicos. A transferência distorce ou impede uma relação entre analisando e terapeuta como dois seres separados, vivos, humanos e sãos”(…). (SCHWARTZ-SALANT, 2024, p.73)


Quando a transferência psicótica ou delirante se instaura as interpretações são absorvidas pelo núcleo delirante, tornando-as ineficazes ou mesmo alimentando hostilidades contra o analista e contra a psicoterapia. No geral, o analista é tragado para dentro da fantasia do paciente, suas palavras e ações passam a ser distorcidas pela fantasia delirante do paciente. O paciente entra num estado de fusão com o analista e não consegue ouvir ou distinguir as ações do analista das próprias fantasias. Assim, nesse

ponto que ocorre a transferência delirante, particularmente em pacientes com uma estrutura de ego fraca. Muitas vezes, isso é consequência da regressão a níveis primitivos em que os limites do ego são perdidos e a simbiose ocorre – mesmo que apenas temporariamente na hora analítica. É nessa situação que o analista precisa se deixar “envolver” com o paciente. Entrar no relacionamento dessa maneira é cheio de perigos para o analista, como Jung viu claramente. O ego do analista deve permanecer no controle. (ZINKIN, 2002, p.60 – tradução nossa)

A transferência delirante é um dos principais desafios da terapia com pacientes limítrofes, pois quando se manifesta é grande risco do paciente pode romper a relação terapêutica e abandonar a terapia. É importante que o terapeuta mantenha a clareza, coerência e o posicionamento tentar para sustentar o setting. É importante permanecer no controle, isto é, não atuar junto ao paciente, nem se levar numa contratransferência delirante.

Na contratransferência delirante, o terapeuta entra em um estado de fusão com o paciente, isto é, introjeta elementos do delírio ou dos sintomas do paciente. Nesses casos, o terapeuta entra em um processo de sofrimento e ansiedade em relação ao paciente, não conseguindo distinguir a sua função analítica e os processos do paciente que se alojaram nele. Diante da contratransferência delirante os caminhos possíveis são a supervisão ou o encerramento do processo terapêutico.

Considerações Finais

A clínica com pacientes limítrofes nos desafia a compreender a nossa própria sombra, nossos próprios processos de defesa e relação pois muitas vezes nos sentiremos agredidos, hostilizados ou mesmo exaustos na relação com os pacientes. É importante dar continência aos processos caóticos do paciente.  Schwartz-Salant (2024) diz que para a transformação ocorrer é necessário fé, educação e imaginação.

Esses elementos indicam pontos fundamentais para a condução e o manejo da psicoterapia. É necessária a atenção e investimento afetivo do terapeuta para suportar e enfrentar os processos defensivos – isso possibilita a construção de recursos internos para lidar e nomear as emoções e enfrentar os desafios relacionais internos e externos. A imaginação é o resultado da reconstrução da ponte simbólica, isto é, a restauração da função transcendente e, assim, da capacidade simbólica e criativa do paciente.

Os pacientes limítrofes precisam mais de contornos do que de regras.  Os contornos possibilitam perceber o que era irrepresentável neles próprios, dando continência a seu sofrimento. Em todo caso, sempre será um processo crítico e exigente tanto para o psicoterapeuta quanto para o paciente.

Referências


JUNG, C.G. Tipos Psicológicos. Petrópolis: Vozes, 1991.

KALSCHED,D. O Mundo Interior do Trauma, São Paulo:Paulus, 2013

KERNBEERG, O. F., Selzer, M. A., & Koensigsber, H. W.  Psicoterapia Dinâmica de Pacientes Borderlines. Porto Alegre: ArtMed. 1991

OGDEN, T. H. A Matriz da Mente: Relações Objetais e o Diálogo Psicanalítico. São Paulo, SP: Blucher; Karnac, 2017

SCHWARTZ-SALANT, O Mistério da Relação Humana, Petrópolis: Vozes, 2024.

WINBORN, Mark Working with patients with disruptions in symbolic capacity, Journal of Analytical Psychology, 2023, 68, 1, 87–108

ZINKIN, L. Flexibility in Analytic Technique in FORDHAM, M; HUBBACK, J;  GORDON, R; LAMBERT,K. Technique In Jungian Analysis, London:Karnac, 2002.

Fabrício Fonseca Moraes (CRP 16/1257). Psicólogo clínico junguiano graduado pela Ufes. Especialista em Psicologia Clínica e da Família pela Faculdade Saberes; especialista em Teoria e Prática Junguiana pela Universidade Veiga de Almeida e especialista em Acupuntura Clássica Chinesa IBEPA/FAISP; com formação em Hipnose Ericksoniana pelo Instituto Milton Erickson do Espírito Santo. É professor e diretor do CEPAES. Atua desde 2004 em consultório particular. .

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