A Transferência na Psicologia Junguiana – Parte 2/2

No post anterior A Transferência na Psicologia Junguiana – Parte 1/2 discutimos acerca das contribuições de Jung à temática da transferência. Contudo, é incompleto pensar a transferência(T) sem considerar a contraparte do analista, isto é, a contratransferencia(CT). Apesar de Jung apresentar ideias sobre o uso terapêutico da introjeção, de considerar que toda relação transforma as partes envolvidas, não poderia haver a transferência sem a contratransferência, sinalizando a importância da contratransferência. Jung não falava diretamente sobre a CT, mas sobre a importância da personalidade do analista.

No cenário junguiano, coube Michael Fordham dar contorno e redimensionar a contratransferência e sua importância para para a prática da psicoterapia. A T/CT forma um campo único, integral, muitas vezes representado pelo vaso alquimico onde o analista e paciente estão envolvidos e ambos se transformam. Linda Carter afirma que

“O analista não “possui” ou “tem” uma contratransferência; ele está “em” uma experiência fenomenológica cocriada com o outro. As duas pessoas da díade analítica estão em conjunção, simbolicamente sustentada pelo vaso alquímico construído através do relacionamento analítico. A contratransferência não pode nunca ser completamente analisada porque não é uma coisa ou ente em si; ao invés disso ela é emergente num dado momento e num dado relacionamento. Certamente, compreender o conteúdo narrativo da história de um paciente é central para a prática do analista, mas simplesmente tornar o inconsciente consciente não basta para a mudança e a individuação. compreender como se é “com outro” é essencial, juntamente com a capacidade para a função reflexiva e para o jogo com a metáfora e a analogia (CARTER, 2019, p.308)

Desde modo, a T/CT envolve elementos da psique tanto do analista quanto do paciente, essa conjunção simbólica exige autoconhecimento e autopercepção para compreender os processos contratransferenciais que são naturais, inconscientes e, muitas vezes, sutis. A CT se manifesta como a introjeção de conteúdos do paciente pelo analista

Fordham descreveu quarto possibilidades de manifestação/compreensão da CT são elas: Sintônica, ilusória, delirante e arquetípica. De forma geral, os efeitos ou qualidade da CT se manifestarão de acordo com a disponibilidade do ego do terapeuta acolher e simbolizar essas reações que emergem da relação com o paciente.

1- Contratransferência Sintônica: A CT sintônica também chamada de útil ou verdadeira é indica a relação adequada do terapeuta com o o paciente e consigo mesmo. Segundo Fordham,

“a introjeção útil ocorre enquanto se ouve o paciente e, se mantido à distância do ego do analista, fornece material através do qual uma interpretação pode ser formulada. Então, uma dialética interna pode ocorrer e, se o analista também puder projetar a si mesmo, e particularmente as partes infantis, ao paciente e combiná-las com o conhecimento adquirido do paciente, uma interpretação válida pode resultar disso. A parte interna da dialética pode ser quase instantânea ou demorada, mas exige a projeção antes que uma interpretação efetiva possa ser feita. essa situação, creio eu, foi indicada por Jung nos diagramas das projeções cruzadas na “psicologia da transferência”. FORDHAM,M et al , 1974, p. 278 – tradução nossa)

Fordham propõe uma atenção especial aos conteúdos manifestos pela introjeção de aspectos do paciente – que conteúdos seriam esses? Sensações físicas (azia, tontura, sono, dor, tensão, etc), sentimentos (raiva, tédio, impaciência, ternura, pena etc.), lembranças (da infância, de situações, de livros ou filmes, histórias, pessoas etc.) conteúdos esses relacionados com os complexos do analista (daí a importância da análise pessoal), mas foram evocados pela relação com o paciente e sem esta possivelmente não apareceriam.

Se o terapeuta perceber esses conteúdos emergindo enquanto o paciente fala e não se identificar com os mesmos (considerando que não são “autenticamente” seus mas derivam da relação com o paciente), ele pode se relacionar com o conteúdo, extrair dele sua temática e afeto e compreender o que foi sintonizado entre ele e o paciente podendo assim compreender o que está ativo no paciente e a natureza de sua transferência. A partir dessa compreensão acerca do paciente, uma interpretação ou intervenção se tornam simbólicas e podem integrar os conteúdos do paciente projetados e percebidos a partir do inconsciente do analista.

2 – A Contratransferência Ilusória também chamada de CT neurótica, ocorre quando o terapeuta se identifica com os conteúdos e pode agir a partir desses conteúdos (como infantilizar o paciente, tomado pelo complexo materno) ou agir defensivamente ignorando os conteúdos ou mesmo justificando como sendo dos pacientes. Nessas situações, o terapeuta perde a conexão com o paciente.

“Ocorre quando o analista não examina suas reações ao paciente, mas percebe que algo se alojou em si mesmo, proveniente da interação com o paciente. Se ele continuar a não prestar atenção a isso, como Fordham percebeu, ele pode se comportar como se não tivesse ouvindo o que o paciente está dizendo, (…), que pode levar a fazer comentários intuitivos que parecem “brilhantes”. mas são realmente exemplos do material projetante do analista que ele ainda não digeriu na relação com paciente.” (ASTOR, J. Michael Fordham, 115)

A CT ilusória pode ser um momento (ou momentos do processo terapêutico) ou inviabilizar o processo dependendo do conteúdo. Segundo Fordham as principais características dessa modalidade é

“seguintes características: (1) houve uma ativação inconsciente, ou melhor, vagamente consciente, de uma situação passada que substituiu completamente minha relação com o paciente; (2) durante esse tempo nenhuma análise do paciente foi possível.” (Fordham, M, 1974, p.139

3 – A Contratransferência delirante é um caso particular de contratransferência que envolve especialmente casos mais graves como psicose e transtornos graves. Nessa situação o analista introjeta objetos do delírio do paciente, identificando-se com os mesmos. Nesse processo pode romper com a realidade, sejam com elementos delirantes, paranóicos, ideação suicida, em alguns aspectos essa identificação pode ser como “folie à deux”.

É claro, no entanto, que ele[Jung] tem certeza de que o paciente pode ter efeitos muito drásticos sobre o analista e que isso pode induzir a manifestação patológica nele, particularmente quando pacientes esquizofrênicos e limítrofes estão sendo tratados: pode se instaurar no médico com uma paranóia  induzida pelo paciente, com uma paranóia  induzida, e médicos e enfermeieras podem sofrer “ataques psicóticos curtos” induzidos por pacientes sob seus cuidados. Fordham, 1974, p.242

A transferência delirante tende a mobilizar os aspectos pré-simbólicos, psicóides para os quais o ego pode não tem referência, é sempre importante que o analista tenha uma vida pessoal viva, sólida para a qual ele retorne. assim como o suporte de supervisão para elaborar essas T/CT (especialmente no inicio de carreir), em todo caso os sintomas tendem se desfazer com a suspensão do tratamento.

4 – A contratransferência arquetípica está associada a transferência arquetípica, ou seja, está associada a conteúdos do Self que se deintegram e através da relação transferencial são reintegrados, ou seja, padrões arquetípicos que são atualizados e necessários à individuação. A potencia dos conteúdos arquetípicos podem “fascinar” o analista – fazendo com que se identifique com a numinosidade arquetípica.

É importante notar que a CT arquetípica fala de conteúdos impessoais com os quais o analista precisa ter atenção e, como diz Warren Steinberg (1992), e um certo censo humor acerca de si mesmo, para de distanciar rir e elaborar a numinosidade de forma saudável, sem perder a pessoalidade e humanidade.

Ao prestar atenção na CT presentamos mais atenção ao paciente, notamos a complexidade da relação e podemos nos sentir parte do processo. Isso exige autoconhecimento, amor, paciencia, humildade e disponibilidade do terapeuta para se perceber, revisitar em seus conteúdos e sofrimentos pessoais – que ressoam com o sofrimento do paciente. Através da relação transferencial podemos visualizar além dos conteúdos transferidos mas também as defesas, resistências e dinâmicas que precisam ser humanizadas para serem elaboradas pelo ego.

Não podemos deixar de considerar que a contratransferência está intimamente relacionada com a dinâmica/temática do arquétipo do curador-ferido, que foi comentado em outros textos aqui no blog, segue os links:

http://psicologiaanalitica.com/pensando-alguns-aspectos-do-curador-ferido/

http://psicologiaanalitica.com/algumas-palavras-sobre-o-curador-ferido/

Caso tenha ficado com dúvidas, entre em contato!

Referências Bibliográfica:

Astor, J. Michael Fordham: Innovations in Analytical Psychology. London: Routledge, 1995

CARTER, L. Contratransferência e intersubjetividade in Stein, M. Psicanálise Junguiana Petrópolis: Vozes 2019

Fordham, M R. Gordon, J. Hubback and K. Lambert (eds), Technique in Jungian Analysis. London: Heinemann, 1974.

STEINBERG,W. Aspectos Clínicos da Terapia Junguiana, São Paulo: Cultrix, 1992.

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Pós-graduando em Acupuntura Clássica Chinesa (IBEPA/FAISP). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

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