Perspectivas Junguianas acerca do Ego – Parte 3/3 (Psicopatologia)

Nessas três postagens “Perspectivas Junguianas acerca do Ego” procurei comentar sobre a formação do ego, sobre características do Ego como funções e defesas. Para nesta terceira e última, gostaria de comentar alguns aspectos sobre psicopatologia relacionada ao Ego. Nesse sentido é importante considerar que meu olhar está intimamente associado com a concepção desenvolvimentista da psicologia junguiana.

Creio ser um pouco irônico pensar nessa proposta falar de “psicopatologia” e “ego” visto q são duas temáticas amplamente ignoradas no cenário junguiano. Um raros trabalhos que comentam conciliam estas temáticas o “Jung e os Pós-Junguianos”(1989) de Andrew Samuels, que, sendo uma obra crítica, discussão geral sobre o ego nas diferentes perspectivas junguianas. Samuels, traz uma visão da psicopatologia associada ao ego na escola clássica, ele diz

Devemos agora voltar a nossa atenção às afirmações de Jung a respeito da patologia da ego-consciência.

A primeira possibilidade é de que o ego não emerja satisfatoriamente de sua unidade e identidade originais com o self; haverá portanto pouca discriminação ou pouca ego-consciência, e a personalidade será governada pelos complexos autônomos em competição.

A segunda possibilidade é de que o individuo permita a seu self, ou sua personalidade total, se tornar limitado pela identificação com o ego – que com isso se torna inflacionado. O individuo se comportará como se não houvesse nada além do ego e do ego-consciência dentro de si. O inconsciente e os complexos protestarão por serem negados dessa forma, e se desenvolverá uma tensão entre o ego e o self muito maior que o grau saudável, e com consequências destrutivas.

A terceira possibilidade é a de que o ego possa se identificar com uma atitude externa extrema, abandonando a posição mediadora e rompendo com o restante do aspecto de possibilidades. Para fazê-lo, o ego irá “selecionar” a partir de dados emocionais, de modo que elementos que não se adaptem ao padrão consciente sejam negados ou eliminados.

A quarta possibilidade é que o complexo do ego seja incapaz de se relacionar, de modo fértil e imaginativo, com os outros complexos de maneira que possam ocorrer a personalização e a diferenciação dos complexos que Jung julga vital para o crescimento. O individuo não consegue deixar que surjam imagens da fantasia ou não consegue se relacionar com elas caso surjam.

A quinta possibilidade é a que o ego venha a ser subjugado e arrebatado por um conteúdo interno.

A sétima, e ultima , a possibilidade da psicopatologia do ego tem a ver com a função inferior (…). A função inferior pode estar pouco integrada e disponível que as intenções da consciência ficam totalmente sem sentido.

(SAMUELS, 1989, p. 86)

A descrição da visão clássica de Samuels é extremamente útil, poderia dizer que possibilidades que essas possibilidades compreendem ego em relação a Self, em relação/mediação aos conteúdos internos (complexos) e externos (papéis e funções coletivas), capacidade de elaborar os símbolos e estar em relação com o inconsciente. Essa visão abarca a grande maioria dos quadros que vemos no dia a dia, contudo, meu sentimento é que o ego é visto de modo passivo, como se esses quadros e outros não dependessem diretamente dele. Gostaria de ampliar um pouco essa lista do Samuels, acrescentando outros aspectos tomando o ego como centro do debate.

(a) Desordem no Self – a dificuldade na formação do Ego

No post Perspectivas Junguianas acerca do Ego – Parte 1 apontamos uma concepção desenvolvimentista acerca da evolução do ego. Na escola clássica, há uma suposição de um ego preformado, que deveria se diferenciar do Self. Como vimos, para Fordham, o ego se desenvolve a partir das experiências do Self com o ambiente – o que envolve relações objetais e de apego. Nesse sentido, a primeira situação não envolveria o ego em si, mas um transtorno no desenvolvimento. Essa discussão acerca do desenvolvimento do Ego ganha contornos a partir da prática clinica com pacientes do Transtorno do espectro autista, segundo Fordham,

o núcleo essencial do autismo representa uma forma distorcida a integração primária da infância, e que autismo idiopático é um estado desordenado de integração, devido ao seu persistência até o fracasso do Self em deintegrar (Fordham, 1976, p.88 – Tradução nossa)(1)

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Assim, o Self primário continuaria integrado de modo que os deintegrados – base para a atualização e desenvolvimento da representações do Self – que dão origem aos núcleos do ego ou não se deintegram (permanecem integrado) ou não são reintegrados adequadamente como experiências pessoais. Desse modo, aspectos arquetípicos do desenvolvimento, como a possibilidade de relações de apego e com os objetos, poderiam ficar comprometidas em graus variados.

(b) Ego Rígido: dificuldades em elaborar símbolos

Os símbolos constituem um aspecto vital da vida psíquica. Jung apontou que os mesmos possibilitariam a circulação da energia entre a consciência e o inconsciente assim como nutrir o ego, possibilitando estabilidade da consciência. Antes de comentar diretamente sobre a psicopatologia associada a capacidade de elaborar os símbolos, precisamos fazer uma digressão para pensar a relação do ego com os símbolos.

A capacidade do ego em elaborar símbolos ou de lidar simbolicamente com a realidade depende qualidade das relações que o individuo teve em seu processo formativo, isto é, da segurança e estabilidade das relações que ego pode estabelecer com a realidade interior e exterior. Os símbolos integram diferentes campos da experiência(psiquico-fisico; consciente-inconscinte; interno-externo), por serem o fruto da atividade integradora que Jung nomeou de “função transcendente”. Deste modo, não são criados pelo ego, inclusive compreende-se que os primeiros símbolos são anteriores a fase de formação plena do ego, se desenvolvendo junto com a capacidade de percepção e relação com os objetos.

É importante considerar que os símbolos são as primeiras representações que configuram o psiquismo integrando os conteúdos interiores/inconscientes com conteúdos exteriores, dando forma a realidade propriamente psíquica a experiência individual e consciente. Os primeiros símbolos compreendidos como símbolos do Self, que podem ser estendidos a objetos específicos, possibilitando, trazendo segurança e sustentação aos processos integrativos do Self – especialmente do próprio Ego. Para Fordham os “objetos transacionais” descritos por Winnicott eram os símbolos do Self.

Ao longo de toda a vida o processo de formação, elaboração dos símbolos se desenvolve num espaço seguro. Incialmente esse espaço é físico, é o ambiente – normalmente personificado pela mãe ou figura materna – gradativamente o espaço segura torna-se psíquico, simbólico ou potencial – como Winnicott nomeou. Na infância, o espaço potencial/simbólico se torna perceptível pela capacidade imaginativa e de autenticidade da criança expressas no brincar. Na vida adulta, se manifestará nas formas de lidar com a arte, religião e os diversos campos da cultura – que possibilitam a integração dos conteúdos internos que conduzem ao processo de individuação.

Nesse aspecto, devemos considerar como pontos fundamentais os processos defensivos tanto do Self (descritos por Kalsched no seu livro “O mundo interior do trauma”) e do ego.

As defesas do Self se manifestam presentes em situações onde há um colapso dos processos defensivos do ego – onde é incapaz de “metabolizar” a situação dor/sofrimento (que pode ser por violências; ausência de afeto/segurança ou ambivalência) ou onde a ameaça continuidade da vida se torna iminente. Quando ocorre na infância, a experiência traumática pode ocasionar a interrupção da atividade imaginativa, rompendo com os vínculos (internos e externos) no trauma precoce, quando ocorre na vida adulta no geral, temos quadros de transtorno de estresse pós-traumático. As defesas do Self protegeriam o individuo de uma cisão psicótica, contudo, às custas criatividade, autenticidade e possibilidade imaginativa.

As defesas do Ego visam a manutenção e a continuidade das funções do ego (como comentado no post anterior). Diferente das defesas do self, as defesas do ego amadurecem, se diversificam de modo a termos várias possibilidades como são descritas na psicanálise.

Essa digressão foi necessária para poder pensar quadros graves que estão intimamente relacionados com o desenvolvimento do ego. Podemos pensar duas possibilidades: a primeira a experiência vivida na infância(ou seja como é apreendida pelo individuo) é de tal modo sofrida/aversiva com predominância de objetos negativos, sensação de desamparo/medo/insegurança que a relação com a realidade interior e exterior se tornam insuportáveis fazendo que as defesas atuem de forma rígida impedindo a exploração da realidade, elaboração simbólica e amadurecimento do ego. Nessa situação, o ego se mantém imaturo, reativo, ansioso, muitas vezes dissociado das experiências internas e externas, impedido de estabelecimento vínculos.

A outra possibilidade, de modo similar primeira, ocorre quando o ego se desenvolve com a predominância de objetos negativos/de insatisfação/desprazer, fazendo que essas experiências sejam incorporadas a identidade do ego – em outras palavras o ego se identifica com aquilo que gera dor/insatisfação, com o que deveria ser evitado, de modo a coesão do ego se torna instável, muitas vezes o próprio ego se torna objeto das defesas, comprometendo o autoconceito, a autoimagem e muitas vezes gerando os mais diversos ataques ao corpo.

Nessas duas situações podemos entrever os quadros de transtornos de personalidade e neuroses graves. Em ambos os casos há um predomínio de atividade defensiva que prejudicando tanto a formação quanto elaboração simbólica. Isso porque a função dos símbolos é integrar, unir – as defesas visam evitar que as experiência de sofrimento sejam revividas ou relembradas atacando o processo de formação simbólica. Por isso, muitas vezes pacientes com esses quadros são muito concretos, objetivos, muitas vezes é percebia a atuação e a passagem ao ato na analise.

É importante considerar que a labilidade emocional está relacionada com os afetos que não possuem contorno simbólico, não se apresentam à consciência de forma que o ego possa reconhecelos e integra-los. Muitas vezes, emergem em seu aspecto arquetípico/psicóide/pré-psíquico que não se traduz em pensamento ou imagem, apenas como sensações – geralmente de angustia e desespero.

No trabalho com esses pacientes, com frequência é necessário simbolizar junto com o paciente. Schwartz-Salant no livro “A personalidade limítrofe”, cabe ao analista de “posse” da comunicação produzida na contratransferência transformar esses elementos psicóides, pré-simbólicos do paciente com sua “visão imaginal” em símbolos com os quais o paciente pode lidar, dando contorno, continência a esses conteúdos muitas vezes invisíveis da psique do paciente – o terapeuta seria, temporariamente, a função transcendente para o paciente. Naturalmente, técnicas expressivas e sandplay também são de grande valia na transformação de elementos pré-simbólicos em símbolos.

(c) O Ego Defensivo

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A relação saudável do ego com os conteúdos internos e externos tem como ponto central a diferenciação, ou seja, é fundamental que o ego tenha força e coesão para se perceber sujeito, distinguindo o que é seu e o que não é. A dificuldade de diferenciação entre o mundo interno e externo abrange a quase todos os casos que encontramos, visto que esta diferenciação é o ponto chave para o processo de individuação. De certo modo, ao longo da vida estamos quase sempre identificados quer com uma função social, quer com um padrão de um complexo. A manutenção desse estado de identificação está relacionada tanto ao ambiente muitas vezes limitador quanto a falta de recursos do ego para assumir novos desafios e mudanças.
Nessa perspectiva notamos a presença das defesas que visam prover segurança e estabilidade ao ego, distorcendo a compreensão da realidade. Assim, os padrões evitativos de relacionamento, a identificação com padrões dos complexos ou mesmo com os padrões da coletividade servem como estratégias defensivas, mantendo o ego imaturo, sem repertório, restrito numa ilusão de segurança – mesmo que às custas de muito sofrimento.

Ao longo da vida o ego amadurece continuamente, não há uma meta “específica”, apenas um caminho. A dificuldade de viver as transformações, o risco de mudança, ativam as defesas que muitas vezes paralisam o ego impendindo-0 de viver o processo de individuação. Grande parte das psicopatologias associadas a esse quadro defensivo estagnam a vida, tirando fluidez, deixando uma “vazio seguro”.

A análise das defesas, projeções, fantasias do paciente são muito úteis para compreender essa dinâmica defensiva do ego – pois, muitas vezes, a produção onírica, o trabalho com os símbolos são bem limitados.

Para Concluir…

Esses três textos são provocações para pensarmos mais acerca do ego. Muitas vezes comento que o ego é “figurante de luxo” está sempre presente nos textos, mas com pouca atuação.

Notas:

(1) the essential core of autism represents in distorted form the primary integrate of infancy, and that idiopathic autism is a disordered state of integration, owing its persistence to failure of the self to deintigrate.

Referências bibliográficas

FORDHAM, MICHAEL, The Self and Autism, London: Heinemann Medical [for] the Society of Analytical Psychology, 1976.
SAMUELS,Andrew. Jung e os Pós-junguianos, Rio de Janeiro: Imago, 1989.

SCHWARTZ-SALANT, N. A personalidade limítrofe: visão e cura.São Paulo: Cultrix: 1992.

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

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