Recentemente o psicanalista lacaniano Christian Dunker, que é professor da USP, youtuber e autor de vários livros, lançou em seu canal do “Falando Nisso”um video(https://www.youtube.com/watch?v=17SRTF3pE70) onde retorna às antigas acusações à Jung sobre ele ser simpático ou adepto do Nazismo e/ou dele ser anti-semita, gerando indignação e reações em todo movimento junguiano, que deu origem a um manifesto presente nas redes.
Dunker reascendeu uma discussão vazia que já foi mais que debatida ao longo das décadas e com ampla documentação que refutam a relação de Jung com nazismo e anti-semitismo. Para piorar, ele se baseou dois autores fora do eixo de estudos sobre o tema: Richard Noll e Elisabeth Roudinesco . O primeiro é amplamente reconhecido como um detrator de Jung e rechaçado pela falta fundamentação de suas críticas que acusava Jung de querer criar um “movimento carismático” ou um culto em torno de si. A segunda autora que é uma renomada estudiosa da psicanálise lacaniana, sem nenhuma produção específica acerca da psicologia analítica.
A escolha dos autores e o modo como Dunker utiliza as informações (de modo quase oracular) causam profunda estranheza, pois como Dunker sendo professor, pesquisador e orientador de pós-graduação na USP pode ser tão displicente ao utilizar autores marginais à uma temática séria. Acredito que ele não aceitaria que seus alunos utilizassem dessa superficialidade para discutir temas deste modo. Pode-se dizer “ah! mas é um video no youtube!” Contudo, a relevância no cenário acadêmico e psicológico/psicanalítico de Dunker, exige que o mesmo seja no mínimo responsável com suar afirmações. Dizer “não sou especialista em Jung” não servem de defesa nem justificativa, afinal, um profissional com a reputação com a de Dunker, o mínimo esperado seria com buscar um especialista para dialogar ou contribuir com esse debate ou mesmo buscar autores reconhecidos.
Infelizmente, esse tipo de disseminação informações equivocadas sobre Jung e o pensamento junguiano não é incomum, desde a graduação sempre ouvi erros e ataques como o de Dunker totalmente infundados, sem conhecimento e cheios de arrogância de psicanalistas que não estudaram nada de Jung e do pensamento junguiano e se autorizavam comentar sobre a psicologia analítica. Nesse evento, Dunker personificou uma postura psicanalítica que ecoa desde dos dias do “Comitê” formado por Freud para defender a “ortodoxia” e atacar seus dissidentes – com intolerância, impossibilidade de colaboração e dialogo. Onde mesmo sem conhecimento assume a postura de acusar/julgar a Jung(a capa do vídeo é claramente uma sentença, visto identificar Jung com a estética nazista). É lamentável essa postura.
Gostaria apenas de pontuar alguns aspectos:
– A insistência em considerar Jung como “discípulo de Freud” – que diz que é “pensar junto” considerando os pensadores que Freud afastou é no mínimo estranha, Acredito que Dunker não utiliza uma visão coerente com a história da psicanálise. Caso o leitor tenha interesse, vale a pena visitar um antigo texto nosso: Discípulo e Dissidente: Repensando algumas distorções de 2013.
– É muito curioso que no video citado, Dunker começa desqualificando um biografo de Freud (Crews) por atacar Freud por situações não comprovadas, mas mesmo assim utiliza um “biografo” Noll que faz o mesmo com Jung. Uma curiosa incoerência.
– Ele lê a afirmação no dicionário da Roudinesco que Jung aceitou a presidência da Sociedade Médica Geral para a Psicoterapia. Vale lembrar que Jung era vice-presidente da mesma sociedade, que foi solicitado por Kretschmer (médico judeu) que com ascensão de Hitler, que Jung o sucedesse – visto que não era judeu nem estaria sobre a pressão de Hitler por ser suiço.
– A divisão do inconsciente judaico e inconsciente ariano. O texto de 1934, que como Dunker optou em se prender ao “resumo da Roudinesco”, acredito ser melhor citar os dois parágrafos que são citados como cerne da fala de Jung
É óbvio que isto não deve transformar-se em autotapeação ingênua; ao contrário, nenhum psicoterapeuta deveria perder a oportunidade de examinar-se criticamente à luz dessas psicologias negativas. Freud e Adler viram claramente a sombra que acompanha a todos. Os judeus têm esta peculiaridade em comum com as mulheres; na condição de mais fracos fisicamente, precisam aproveitar as falhas no armamento do inimigo e devido a esta técnica, que lhes foi imposta durante séculos na história, os judeus estão melhor protegidos lá onde os outros se sentem mais vulneráveis. Por causa de sua cultura que é ao menos duas vezes mais antiga do que a nossa, têm maior consciência das fraquezas humanas e de seus lados sombrios do que nós e, por isso, são bem menos vulneráveis neste sentido. Graças também à sua cultura antiga, conseguem viver, com plena consciência, em boa, paciente e amigável harmonia com suas qualidades menos boas, ao passo que nós ainda somos muito jovens para não termos “ilusões” sobre nós mesmos. Além disso, fomos encarregados pelo destino de criar uma cultura (temos necessidade dela) e para isso são indispensáveis as chamadas ilusões na forma de ideais unilaterais, convicções, planos etc. A exemplo do chinês culto, o judeu enquanto membro de uma raça com cultura de aproximadamente três mil anos tem um campo de consciência psicológica bem maior do que o nosso. Por isso também é menos perigoso para o judeu em geral avaliar negativamente seu inconsciente. O inconsciente ariano, porém, encerra forças de expansão e germes criativos de um futuro a realizar-se e que não podemos desprezar como romantismo infantil sem risco psíquico. Os povos germânicos ainda jovens estão em perfeitas condições de criar novas formas de cultura e este futuro ainda jaz no escuro do inconsciente de cada indivíduo como germe carregado de energia, capaz de transformar-se em chama vigorosa. O judeu como nômade relativo jamais criou uma forma própria de cultura e, ao que tudo indica, jamais vai criá-la, uma vez que todos os seus instintos e aptidões pressupõem uma nação mais ou menos civilizada e capaz de albergá-la em seu desenvolvimento.
[354] A meu ver, a raça judaica como um todo possui um inconsciente que pode ser comparado ao do ariano só com reservas. Com exceção de alguns indivíduos criativos, o judeu médio já é muito consciente e diferenciado para suportar a gravidez das tensões de um futuro por nascer. O inconsciente ariano tem maior potencial do que o judaico; esta é a vantagem e desvantagem
de uma juventude ainda não totalmente desligada do barbarismo. Acho que foi grave erro da psicologia médica até agora ter aplicado indiscriminadamente a cristãos germânicos e eslavos categorias judaicas que nem se aplicam a todos os judeus. Com isso, o mais precioso segredo do homem alemão, ou seja, sua profundeza de alma criativa e intuitiva foi desprezada como brejo infantil e banal, enquanto meus alertas tiveram a suspeição, durante décadas, de antissemitismo. Esta suspeita partiu de Freud. Ele não conhecia a alma germânica, assim como seus seguidores alemães também não a conheceram. Será que ela ensinou algo melhor ao violento surgimento do nacional-socialismo sobre o qual o mundo todo voltava seus olhos arregalados? Onde estavam a tensão e o ímpeto inauditos quando ainda não existia o nacional-socialismo? Jaziam escondidos na psique germânica, naquele solo profundo que é bem outra coisa do que o monturo de dejetos infantis não realizáveis e de ressentimentos familiares não resolvidos. Um movimento que afeta um povo inteiro também amadureceu em cada indivíduo. Por isso afirmo que o inconsciente germânico encerra tensões e possibilidades que a psicologia médica precisa considerar em sua avaliação do inconsciente. Ela não lida com neuroses mas com pessoas. E este é exatamente o belo privilégio da psicologia médica: poder e dever tratar o homem todo e não apenas funções artificialmente separadas[2]. Por isso seu campo deve ser bem vasto a fim de serem revelados aos olhos do médico não apenas as aberrações patológicas de um desenvolvimento psíquico anormal mas também as forças construtivas da psique que criam o futuro, e não apenas uma parte nebulosa mas o todo – que é o mais importante. (JUNG, 1999, p. 156-8)
Podemos ver que Dunker ao se restringir a uma leitura de Roudinesco perde totalmente a referência do contexto. É assustador ele fazer uma “interpretação” de um texto da Roudinesco como se fosse do Jung. Parece ser amador demais para ele.
Contudo, não podemos ignorar o quanto a noção de psicologia racial – seja ela judaica ou ariana – foi superficial e eivada estereótipos. A críticas não foram apenas externas, junguianos importantes criticaram Jung como Neumann que em carta afirmou:
(…) os tristes remanescentes judeus que abriram caminho até você são os que permanecem, os mais diaspóricos, assimilados e nacionalizados, individuais e retardatários, mas de onde, caro Dr. Jung, você conhece a raça judaica, o povo judeu? Talvez seu erro de julgamento seja condicionado (em parte) pela ignorância geral das coisas judaicas e a aversão secreta e medieval a elas que assim leva a saber tudo sobre a Índia de 2000 anos atrás e nada sobre o hassidismo de 150 anos atrás? Além disso, não há resquícios de um mal-entendido em uma frase como: “O inconsciente ariano tem um potencial maior do que o judeu (um)” o que permite a uma raça primitiva afirmar que eles são os que são?” Tanto o movimento hassidista quanto o do sionismo demonstram a vivacidade inesgotável do povo judeu, pois só um interesse deficiente pode ignorar a afronta de um fenômeno como, por exemplo, o renascimento da língua hebraica que estava morta por 2.000 anos e o assentamento na Palestina (…) (JUNG, NEUMANN, 2015. p 13 – grifo nosso)
Neumann e outros junguianos contemporâneos de Jung não fecharam os olhos para seus erros, não obstante às criticas, por conhecerem Jung e saberem que não era anti-semita Neumann juntamente com James Kirsch, ambos judeus, foram os principais defensores de Jung junto a comunidade judaica. É evidente a infelicidade e o erro das afirmações de Jung, especialmente um período de intolerância e num estado de exceção (que ganhava força em toda Europa, não apenas na Alemanha) , em essa distinção de psique étnica ou de nação serviria ao propósito de poder como do Hitler.
Dunker ironiza a noção de psique étnica ou das nações de Jung, que sim era equivocada, pois, nesse inicio de trabalho na pesquisa dos processos coletivos e apoiado em estereótipos e referencias míticas. Contudo, ao tripudiar de Jung, ele ataca aspectos importantes como as particularidades de cada grupo em sua constituição socio-histórica e como isso afeta os individuos – como ele cita uma ironizando a ideia de uma “psique preta” ou uma psicologia preta.
Atualmente, os junguianos utilizam os conceitos de inconsciente cultural/complexos culturais, para que compreendem a inter-relação entre a história coletiva, que integra a identidade consciente/inconsciente de um grupo seja ele étnico e social, chegando aos individuos que fazem parte do mesmo. Muitas vezes essa história coletiva é de dor e sofrimento vivida ao longo de gerações – por exemplo, 300 anos de escravidão, seguindo por décadas racismo estrutrural, na ausência de oportunidades e de politicas públicas, afetam os negros e negras ora gerando o sofrimentos(vivido socialmente e internamente), ora gerando movimentos de resistência e luta. Não podemos atender um negro/negra sem levar em conta as marcas do racismo de nossa sociedade.
Do mesmo modo, é necessário compreender o machismo estrutural e a violência de gênero que atravessam nossa cultura para compreender a vivências/dores/sentimentos das mulheres e pessoas lgbtqia+. O que ressaltamos é há uma história coletiva que nos atravessa e nos constitui para uns marcada por lutas e sofrimentos outros privilégios e “poder”.
Retornando ao video, Dunker cita uma entrevista radiofônica de 1933, que a tradução em português (assim como em inglês) não dão o teor elogioso a Hitler – Samuels (1995) comenta que a analise do texto em alemão Jung usa termos soam elogiosos à liderança de Hitler, ou ao regime em ascensão ao público alemão. São nesses termos que, como Dunker comenta que Jung confessa que “escorregou”. Sim, Jung escorregou nas palavras escritas e pronunciadas, mas isso o torna “nazista”!? Jung se identificou ou foi contagiado (mesmo que momentaneamente) com o espirito da época que invadia a Alemanha contudo, as “escorregadas” não tornaram Jung nazista, ele não se afiliou nem fez propagandas ao regime.
Deste modo, é irresponsável e equivocado dizer que Jung era simpatizante do nazismo frente as críticas e posturas que ele teve – como podemos ver em Bair (2006) – era crítico de regimes que massificavam (tanto o nazismo quanto o comunismo) e ao fato de que durante a II Guerra Jung foi informante dos Aliados. Dunker propõe a questão sobre se a vida pode ser misturar a obra – associando essas “escorregadas” como fundamentação ao anti-semitismo e ao nazismos, contudo, o que dizer quando os membros importantes do circulo intimo de Jung eram judeus? Podemos citar James Kirsch, Erich Neumann, Gerhard Adler, Jolande Jacobi e Aniela Jaffé. Que desde os anos 30 – período que aconteceram as falas – já conviviam e continuaram conviver com Jung (e defendendo-o dessas acusações mesmo depois de sua morte).
Nosso objetivo não é “passar pano”. Muito pelo contrário, em vários textos de nosso site apontamos que Jung possuía contradições, preconceitos, era machista como notamos em vários textos e relatos. Contudo, as ilações de ser “nazista” ou simpatizante do nazismo ou de anti-semitismo não se sustentam.
A literatura junguiana acerca dessas acusações é vasta. Neste texto, faço apenas uma contribuição para refletirmos acerca desse triste e lamentável episódio que foi o video de Dunker.
Referências Bibliográficas
BAIR, Deirdre, JUNG – Uma biografia (V.1 e 2); São Paulo: Ed. Globo, 2006.
JUNG, C. G Civilização em Transição, Petropolis: Vozes, 1999.
JUNG, C.G.; NEUMANN, E. Analytical Psychology in Exile: The correspondence of C.G. Jung and Erich Neumann, Princeton : Princeton University Press, 2015.
Samuels, A. A psique política. Rio de Janeiro: Imago. 1995.
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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)
Psicólogo Clínico Junguiano, Supervisor Clínico, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Pós-graduando em Acupuntura Clássica Chinesa (IBEPA/FAISP). Formação em Hipnose Ericksoniana. Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos” Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.
Contato: 27 – 9316-6985. / e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes /Instagram @fabriciomoraes.psi