Arte e Psicoterapia: uma quase apologia[1]

 

(25 de março de 2010)

O uso da arte como instrumento terapêutico já era difundido desde a Antiguidade. Já era conhecida e documentada pelos gregos desde o século V a.C. Na tradição judaico-cristã o uso da arte como instrumento terapêutico é relatado na Bíblia[2], aproximadamente no século X a.C. Contudo, a arte como instrumento de ordenação da realidade já era utilizado desde a pré-história, como podemos observar nas pinturas rupestres. O uso contemporâneo da arte como instrumento terapêutico começou a ser sistematizado a partir dos anos de 1940. Desde então técnicas inspiradas nas expressões artísticas vem ganhando cada vez mais espaço entre os psicólogos.

A arte é um fenômeno humano transdisciplinar, que envolve os mais diversos campos do saber. Na psicologia essa transdisciplinaridade é percebida pelo uso da arte por diferentes abordagens psicoterápicas. Como a psicologia comportamental psicanálise, psicologia transpessoal, psicoterapia corporal, psicologia analítica, gestalt-terapia dentre outras.

Aqui utilizaremos o enfoque da psicologia analítica junguiana para pensarmos o uso desse fenômeno. Jung foi um dos pioneiros da psicologia contemporânea a utilizar o potencial da arte como instrumento da prática psicoterápica, no ensaio “A Função Transcendente”[3] de 1916,  Jung já sugeria que seus pacientes pintassem as imagens sejam de sonhos ou quaisquer que lhes ocorressem.

A arte, arquétipos e Símbolos

A arte é a grande testemunha da história humana.  A capacidade de interação e transformação da realidade foi documentada pela expressão artística. E, talvez, podemos dizer que a arte foi o veiculo pelo qual o homem pode se tornar homem.  O homem e a arte são elementos indissociáveis.

A consciência é estruturada simbolicamente, isto é, pela união de elementos que são próprios do homem e elementos que são próprios do meio.  A capacidade humana de produzir símbolos propiciou uma relação diferenciada com o meio, onde um gesto deixaria de ser apenas um movimento corporal e se tornaria algo a mais, seria um movimento corporal pleno de significado. A emergência da consciência simbólica do homem foi documentada por meio das pinturas rupestres.

As pinturas rupestres juntamente com a produção de artefatos (pontas de lanças, machados, esculturas) são os mais antigos documentos/evidencias de ordenação psíquica. Esses documentos históricos nos narram o processo de como o homem foi interferindo no meio através do desenvolvimento de instrumentos e técnicas e, assim, de como foi descobrindo, a si mesmo e ao outro, e se diferenciando dos demais animais.  As pinturas como a de Lascaux ou esculturas como a “vênus de Willendorf” nos mostram que o homem há cerca de 30 mil anos, já olhava para uma pedra ou para as paredes e via mais do que elas eram.  A arte é alma humana em movimento na história.

Para pensar a arte e sua relação com a psicologia, devemos ser cuidadosos para não cairmos no reducionismo psicológico. Jung (1991) compreendia que para falar da arte ou da obra de arte deveríamos nos abster de uma categorização psicológica da arte/obra de arte. Para a psicologia deveria se “contentar” com o processo criativo que se manifesta no indivíduo.

O processo criativo não é “algo” que pertença a um individuo. Mas que atravessa o indivíduo. Talvez, nesse momento,  fosse mais correto chamar de impulso e não de “processo” criativo. O impulso criativo atravessa o indivíduo, assim como atravessa a cultura e os séculos.

Jung compreendeu que esse impulso criativo como sendo próprio do psiquismo humano.  Ao impulso de criação que se manifestaria de forma típica organizando o psiquismo e possibilitando o desenvolvimento do mesmo Jung chamou de arquétipos.

Os arquétipos são os processos de organização simbólica humana que a consciência humana apreende como imagens plenas e prenhes de sentido.  Os arquétipos são apreendidos pela consciência por meio dos símbolos, ou seja, pelas formas psíquicas que possuem uma representação consciente, mas cujo significa do não é claramente definido.

Quando são utilizadas “técnicas artísticas” como pintura, modelagem, composição, desenho, colagem, literatura eles propiciam o contato com o ímpeto criativo que, através do fazer artístico, propicia a produção de símbolos. Revitalizando e reorganizando a consciência daquele indivíduo, isto é, o modo como ele experimenta o mundo interno e externo.

Segundo Jung, “o processo criativo consiste (até aonde nos é dado segui-lo) numa ativação inconsciente do arquétipo e numa ativação inconsciente do arquétipo e numa elaboração e formalização na obra acaba” (JUNG, 1991, p.71).  Cabe aqui pensarmos as relações entre o processo criativo e impulso criativo. Para compreender melhor a diferença podemos fazer a seguinte metáfora: o impulso criativo é como um rio subterrâneo que corre nas profundezas. O processo criativo são os meios de captar e aproveitar as águas desse rio.

Assim, nos artistas esse rio está muito próximo superfície e, muitas vezes, corre livremente na superfície tornando extremamente férteis suas margens – embora o risco de “inundações” sejam maiores. Em pessoas saudáveis esse rio subterrâneo alimenta superfície como pequenos riachos.  Em pessoas neuróticas esse rio não chega à superfície. O neurótico tem que buscar outros meios para lidar com esse empobrecimento psíquico. Nesse contexto o processo artístico entra como a possibilidade de “criar poços” e através destes poços fertilizar a superfície da consciência.  Esses poços são os símbolos.  O símbolo “aglutina a energia psíquica e redistribui de maneira a transformar os processos inconscientes em conscientes e vice-versa(…)” (BYINGTON, 1983, p. 10).

Não podemos perder de vista que ao falarmos da arte, falamos de é um fenômeno natural, inerente ao ser humano. Todas as culturas produzem formas artísticas de expressão. A arte, assim como os símbolos, não é produzida de modo puramente consciente (ou artificial).   Para pensarmos a relação entre arte e psicoterapia devemos pensar um pouco sobre a psicoterapia.

Pensando a Psicoterapia

A psicoterapia ou a psicologia clínica é um fenômeno contemporâneo, nascendo no final do século XIX. Contudo suas raízes se perdem na história quando a relacionamos com as práticas mágico-religiosas de cura que ao longo da história vem se ocupando dos fenômenos da alma.

A dificuldade que podemos encontrar na relação entre as práticas mágico-religiosas de cura e os métodos contemporâneos de psicoterapia está o processo histórico de formação do saber científico. A ciência moderna se desenvolveu resistindo e se opondo ao dogmatismo religioso, influenciada pelo iluminismo e pelo positivismo compreendendo o mundo por suas próprias categorias, desvalorizando ou mesmo negando o saber que antes era relacionado à religião ou à “sabedoria mítica popular”.  Esse processo levou, inicialmente, a uma visão organicista das doenças da alma, isto é, as doenças da alma, que também eram vistas como ”aflições divinas”, foram reduzidas a um epifenômeno de um organismo doente. O empirismo e materialismo se instauraram como modelo médico, reduzindo, pela visão organicista, a uma disfunção fisiológica. É nesse cenário que, como dizia Jung, os deuses tornaram-se doenças.

Quando nos referimos a passagem de uma divindade a uma doença,  nos referimos a um processo de perda de significado simbólico. Vejamos, quando numa sociedade a doença é fruto de um castigo divino ou de uma intervenção divina, ela implica o indivíduo no processo obter o favor ou o perdão da divindade, seja por meio de reconhecimento de erros, mudança de atitude com outras pessoas (familiares, p. ex.), ou mesmo mudança em sua alimentação. Assim, nas culturas onde a doença é atravessada pelo sagrado, há um imperativo de mudança ou de tratamento que é próprio dos mitos daquela cultura ou religião.  A doença, quando manifesta, tem sempre o caráter de remeter o indivíduo e/ou indivíduos próximos ao sistema mítico ordenador daquele grupo, de forma a obter o favor divino pela cura.  A mudança de atitude é necessária para que o deus infligiu a doença se compadeça e a retire.

A mitologia (ou religião) narra eventos que aconteceram em um tempo sagrado, isto é, num tempo contínuo que é desde sempre e se renova constantemente. Os mitos são “modelos exemplares” que possibilitam a organização da consciência, pessoal e  coletiva, frente a um acontecimento potencialmente desestruturante, fornecendo a mesma orientação e sustentação.

Em outras palavras, os mitos são estruturas coletivas que fornecem uma orientação ao homem, situando-o no seu espaço e tempo, e dando um sentido a sua existência de forma a orientá-lo em suas ações para o futuro. O sagrado é justamente a possibilidade que se impõe ao comum ou natural, isto é, ao profano.  Um depende do outro.  As doenças, sejam elas do corpo ou da alma, eram/são vistas no mundo religioso como provenientes do mundo sagrado das divindades, isto é, as doenças seriam causadas pelo divino e pelo divino seriam curadas. Como exemplo, no mundo grego,

(…) quando alguém se encontrava doente a solução era recorrer a um “médico divino e não a um médico humano”(…). A razão para tal procedimento era que o homem da era clássica via a doença como o resultado de uma ação divina, que só poderia obter a cura através de outra ação divina. Nas clínicas da antiguidade praticava-se, pois, uma forma definida de homeopatia, em que um remédio divino vencia uma doença divina. Conferir tal dignidade à doença acarreta a vantagem inestimável de conferir-lhe também um caráter curativo. A divina afflictio contém, dessa maneira, seu próprio diagnóstico, terapia e prognóstico, desde que, é claro, a atitude correta a ela tenha sido adotada. O que possibilitava a atitude adequada era o culto, que consistia simplesmente a cargo do médico divino toda a arte da cura. Ele próprio era a doença e o remédio também.(GROESBECK, 1983, p. 74)

Numa perspectiva arquetípica a doença e a cura são faces da mesma moeda.  A “doença divina”, isto é, a doença com um sentido ou significado coletivo possibilita o movimento interno de cura. Pensando na prática da psicoterapia contemporânea nos deparamos novamente com a questão do sentido.  Quando Freud, acompanhando Breuer, compreendeu que os sintomas histéricos possuíam um sentido, um significado.  Freud penetrou no âmbito simbólico do sintoma ou das formações do inconsciente, isto é, compreendeu que havia muito mais no sintoma do que era manifesto.

A psicoterapia, na perspectiva junguiana, tem como objetivo o resgate do sentido da doença ou desse sintoma, para que através de uma releitura o individuo possa mudar sua atitude consciente em relação a totalidade psíquica que o envolve. Se fossemos falar de um “processo de cura” este seria um processo onde o indivíduo inicia um relacionamento profundo consigo mesmo, a fim de encontrar em si o agente de cura interior.

Guggenbühl-Craig sugere que existe um arquétipo ”médico/paciente” que é ativado todas as vezes que uma pessoa fica doente. O doente procura um médico ou doutor externo, mas o fator intra-psíquico, ou “fator curador”, ou ainda o “médico interior” é também mobilizado. Mesmo o médico externo sendo muito competente, as feridas e doenças não poderão ser curadas se não houver a ação do “médico interior”.(…) (Basta lembrar o grande número de pessoas que ainda morre de pneumonia, muito embora a pneumonia seja uma doença curável.) É freqüente ouvirmos explicações do tipo: “sua resistência interna cedeu” ou “ ele não estava querendo melhorar”. De um ponto de vista arquetípico, era o médico interior que não estava funcionando. (GROESBECK, 1983 p. 77)

Podemos pensar que a psicoterapia é a busca pelo “fator curador” inerente ao indivíduo. Contudo, este efeito do “fator curador” ou desse “médico interior” depende da disposição da consciência na relação com o inconsciente. E, talvez seja esta a grande questão da psicoterapia: possibilitar que a consciência tenha um contato transformador com o do pólo curador deste arquétipo constelado no inconsciente. Podemos compreender a constelação deste arquétipo como o movimento de reorganização inconsciente para suprir as deficiências da relação com a consciência, podendo ser acompanhado pela constelação de outros arquétipos.

Outro aspecto que Guggenbühl-Craig chama atenção é a possibilidade da cisão do arquétipo.  Segundo o mesmo, essa cisão se daria quando

(…) o paciente, por exemplo, talvez projete o seu terapeuta interior sobre o médico que o trata e este poderá projetar suas próprias feridas no paciente. Essa projeção de um pólo do arquétipo sobre o mundo exterior poderá proporcionar uma satisfação momentânea. Mas, a longo prazo, indica que o processo psíquico está bloqueado.” (GUGGENBÜHL-CRAIG,1978, p.99)

Com a projeção do pólo curativo deste arquétipo no terapeuta, o pólo da doença, com o cliente, este, ao olhar para si, vê apenas impossibilidade.  No contexto analítico, devemos compreender essa projeção como transferência e/ou contra-transferência. Guggenbühl-Craig aponta para a deficiência da relação terapêutica onde o terapeuta favorece polarização o arquétipo saúde-doença. A polarização em si é um fenômeno natural, que leva o cliente a buscar auxílio fora de si mesmo. Contudo, se essa polarização encontra sustento e reforço, pode se tornar uma cisão, diminuindo ainda mais a relação entre a consciência e o inconsciente. Por outro lado, essa contratransferência também fala da incapacidade desse terapeuta em lidar com sua sombra ou suas feridas.

Como dito, a projeção ou transferência desse pólo arquetípico é o que possibilita o inicio de um tratamento. Contudo, o que vai propiciar o desenvolvimento é a capacidade do terapeuta em receber essa projeção, sem se seduzir por ela, e no momento certo devolvê-la ao cliente como a possibilidade dele se organizar.

Mas, como pensar a relação de técnicas artísticas com a psicoterapia de base analítica? E a transferência? Antes de pensarmos em respostas para esse tipo de pergunta, devemos refletir um pouco sobre o paradigma da psicologia clínica.

Repensando o Paradigma

Na história da psicologia aprendemos que a psicologia clinica contemporânea emerge da medicina, a partir dos desdobramentos de trabalhos de pioneiros como Freud, Janet e Jung. Apesar de ter se afastado ao longo dos anos do modelo médico, psicologia clínica guarda alguma identidade com o modelo médico de onde emergiu. Relação que podemos perceber até pelo uso do próprio termo “clinica” vem do grego “kliné” que significa cama ou leito.

Psicologia clínica, em sentido próprio, se refere a uma área da psicologia ou uma área de atuação do psicólogo, na qual exerce a psicoterapia. Entretanto, esses termos nos trazem elementos importantes para pensarmos a questão de paradigma subjaz a termos/conceitos. Nesse processo, é importante buscarmos a imagem que se esconde por trás das palavras ou que deram sentido a essas palavras as quais usamos de forma quase “descuidada”.

Falamos que a Clinica, ou kliné, é a cama ou leito. E, psicologia, em seus termos que formam, seria psyché, isto é, “alma, sopro ou principio vital” e logos “estudo ou discurso”.  Se pudéssemos jogar com as palavras teríamos psicologia clinica como o “estudo ou discurso da alma no leito”. Que nos leva a pensar uma “alma” doente. E, assim, falamos de um modelo médico. O termo Medicina que usamos, vem o termo homônimo latino, cujo significado é remédio, também é associado à arte de ministrar o remédio, que por derivação, a arte de curar.

Por outro lado, temos a psicoterapia, quase desdobramento necessário da prática clinica. Psicoterapia é um termo formado pelos termos gregos psyché + therapéia que em grego pode ser compreendido como servir, honrar, assistir, cuidar e tratar.  Nessa riqueza de significados, poderíamos pensar a psicoterapia um “servir a alma” ou “cuidar da alma” assim como o “tratar da alma”.

Falta pensarmos a arte vem do termo latino, Ars, que possui sentidos variados como profissão, trabalho, habilidade e num sentido mais amplo “o trabalho que o homem faz”.

Ao pensar nesses significados e nas imagens que nos advém, podemos olhar para o modelo médico e o modelo artístico na psicologia.  No modelo médico falamos de uma psicologia clínica ou um “estudo da alma no leito” de uma alma que carece de um “remédio”.  Por outro lado, falamos de um modelo artístico onde a psicoterapia ou “cuidar da alma” enquanto ela está no seu “fazer” na vida. Talvez a diferença fundamental entre modelo médico para o modelo artístico está na compreensão do estado da psique, em outras palavras é pensar se está ou não a psique no leito? Está ou não a psique doente e impossibilitada?

É necessária a compreensão de que a patologia, do grego de pathos que é sofrimento ou passagem, é um processo muitas vezes necessário e que serve a Saúde.  Heráclito, já afirmava que “De todas as coisas a guerra é pai, de todas as coisas é senhor; a uns mostrou deuses, a outros, homens; de uns fez escravos, de outros, livres”. A guerra, do grego pólemos (de onde temos polêmica), é o conflito ou a tensão necessária para a criação. A psicopatologia ou “discurso do sofrimento da alma”, uma forma de criação.

Pensar a mudança de paradigma que propomos é mudar o olhar sobre a psique.  Pois, caso contrário à inclusão das “artes” como práticas psicoterápicas pode se tornar mais um “medicamento”.  E a “técnica” se tornar mais um “procedimento”. Para pensarmos essa mudança modelo de cuidado e atenção ao sofrimento psíquico seria necessária

a libertação dos fenômenos psíquicos da maldição do espírito analítico. Isso implica uma reflexão sobre o espírito analítico, a compreensão de sua preferência pela psicopatologia e, também do fato de a psicologia ter se tornado um imponente, embora sutil, sistema para distorcer a psique motivando a crença de que há algo “errado” com ela e, em conseqüência, para analisar sua imaginação através de categorias de diagnóstico. Fazer a psique entrar na vida não significa afasta-la de sua enfermidade, mas sim da concepção doentia de si mesma, de sua pretensa necessidade de cura, conhecimento e amor profissional. (HILLMAN, 1984, p. 14)

Uma “mudança de paradigma” não exclui a necessidade de medicamentos, de diagnósticos, mas o ponto central é “servir a alma” em seu processo de transformação ou sofrimento. O modelo médico ou como Hillman denominou “espírito analítico” compreende a psique como um objeto do analista ou do terapeuta, o modelo artístico ou simbólico pressupõe a alma como agente, o analista ou terapeuta ouve a alma e lhe serve os elementos necessários para que ela se crie e recrie. Quando falo de de “ouvir a alma”, não me refiro ao “ego”, mas ao Self, isto é, a totalidade psíquica.  O que implica em anunciar ou denunciar ao ego sua responsabilidade no processo de sofrimento psíquico. É perceber que, antes de tudo, a dor também é um processo de criação.

Compreendendo a dor ou o adoecer como um processo de criação, nos aproximamos novamente das “artes” que são formas da alma se expressar e se fazer na vida.  Toda dor ou doença possui um significado, uma história – assim, nem toda dor deve ou pode ser “curada”.

Sob a égide de Hefesto

A psicoterapia ou analise se mantém ou se torna efetiva por constelar uma dinâmica arquetípica que pode ser apreendida pelo caráter mítico. Dessa forma, devemos pensar qual dinâmica arquetípica o uso da arte na terapia poderia constelar ou, em outras palavras, qual o mito revivido nessa modalidade analítica?

No mundo grego, os deuses emblemáticos do processo de criação são Apolo e Hefesto.  Apolo é o deus das artes, da poesia da música, nele o processo criativo emana naturalmente. Apolo ou Febo Apolo (brilhante Apolo) é uma divindade solar, uma divindade onde a criação brilha e encanta. Em Apolo a arte é se exprime em sua potencia última e saudável.

Hefesto, por outro lado, é o deus “imperfeito”, aleijado.  É uma divindade impar no panteão grego, é filho legitimo dos deuses olímpicos, mas sua deficiência o afastou do Olímpio, mas por sua arte ele pode se religar a casa olímpica. Existem duas versões para sua deficiência física. Na primeira, durante uma discussão entre Hera e Zeus, Hefesto “ousou tomar o partido da mãe. Zeus enfurecido, agarrou-o por um dos pés e o lançou para fora do Olimpo. Hefesto rolou pelo espaço o dia todo e somente no pôr-do-sol caiu na ilha de Lemnos(…) Com o tombo o deus ficou aleijado e maquitolava de ambas as pernas”(BRANDÃO, 1991, p.490)

Em outra versão Hesfesto foi gerado apenas pela mãe, Hera, revoltado pelo nascimento de Atena, gerada apenas por Zeus. Hesfesto teria nascido deformado e coxo. Hera,

humilhada com a fealdade  e deformação do filho, Hera o lançou do alto do Olimpo. Após rolar pelo vazio durante um dia inteiro, o infeliz caiu no mar, onde foi recolhido por Tétis e Eurínome, que o “guardaram” por nove anos numa gruta submarina, o que mostra com clareza o longo período iniciático do deus coxo. Foi nessa gruta que Hefesto fez sua longa aprendizagem: trabalhava o ferro, o bronze o os metais preciosos, tornando-se “o mais engenhoso de todos os filhos do céu”. (BRANDÃO, ibid).

Hefesto, mais que Apolo, é a divindade que traz a arte como possibilidade de superação e mudança de atitude. Hefesto o deus deformado passou nove anos “esquecido” pelos deuses, período no qual trabalhou a si mesmo, assim como trabalhava o metal. Seu trabalho criativo fez com que fosse levado novamente ao Olimpo, mas sua arte com os metais e com o fogo não o limitou a um artesão – sua arte foi apenas a abertura para novas possibilidades. Conta-se que Hefesto também lutou

bravamente contra o gigante Clício e o mata, golpeando-o com barras de ferro em brasa. Em Tróia,(…) quando o rio Escamandro ameaçou a submergir Aquiles, o deus coxo, por solicitação de Hera, avançou com suas chamas e seusopro ígneo sobre as águas do rio e o obrigou a retornar a seu leito. (BRANDÃO, ibid, p. 491)

O mito de Hefesto traz a imagem daquele que cria a si mesmo por meio da arte ou de sua arte. Neste mito temos na arte como a possibilidade de unir o ctônico e ao celeste.  A arte possibilitou que Hefesto assumisse quem ele realmente era, isto sua divindade, direito e dignidade para ir ao Olimpo, para onde foi levado [4]como um igual.

Podemos compreender a arte metalúrgica de Hefesto como uma função transcendente, que se sobrepôs a sua deficiência física, permitindo a união de opostos.

O mito de Hefesto é um mito de sofrimento, rejeição, raiva e, sobretudo, de superação. Apesar de todo o sofrimento, Hefesto que é jogado nas profundezas se ergue. Assim como seu nome diz, “o fogo nascido das águas celestiais”. Hefesto é o fogo que as águas não apagaram.

Podemos considerar Hefesto como o “deus tutelar” da arte a serviço da alma (psicoterapia) assim, a arte na psicoterapia não seria a arte dos artistas. Deveríamos distinguir a arte de Apolo e a arte de Hefesto. A primeira é a arte da expressão da alma na construção de si no mundo, um traço extrovertido, buscando a luz do sol, buscando os olhos que a contemplem, a arte de Apolo serve sobretudo ao coletivo. Já a segunda é a arte de reconstrução da alma no individuo, com um traço introvertido, ele se faz nas forjas do Etna, nas cavernas, escondida e distante dos olhos curiosos. Mas, quando se realiza é bela e digna de admiração por homens deuses.

Arte e Psicoterapia: uma quase apologia

Ao longo deste trabalho discutimos formas de pensar a arte e a psicoterapia.  O processo criativo é, sobretudo, um processo individual, seja na arte ou na psicoterapia o terapeuta é um assistente in lato sensu. Por um lado, testemunha o desvelar da alma daquele indivíduo e por outro lado, ele serve ao processo oferecendo uma possibilidade ou a técnica, como uma resposta a uma solicitação do inconsciente cliente. A contratransferência, a resposta do inconsciente do terapeuta ao cliente, seria um elemento importante para pensar o Kairós da técnica.

O uso da arte no prisma analítico é uma possibilidade de superação de uma possível cisão do arquétipo de saúde-doença. No processo de criação a interação com o material empregado possibilita uma maior relação do cliente consigo mesmo, favorecendo ao desenvolvimento da autonomia em relação ao terapeuta, que passa efetivamente a assistente, in lato sensu, da transformação do cliente. Pois, o processo do fazer envolve o indivíduo como um todo.  Isso quer dizer que em sua dinâmica o indivíduo é a “ativado” no âmbito consciente (ego) e no âmbito inconsciente pessoal (dos complexos, sua história pessoal), e no âmbito arquetípico, que é gera uma dinâmica criativa diferenciada que amplia a possibilidade de compreensão da realidade – por meio dos símbolos. Nessa tripla “ativação” surge a possibilidade de mudança de transformação.

O elemento criativo ou arquetípico é fundamental para o desenvolvimento da personalidade, não precisa ser “explorado” pelas palavras como uma “tradução da obra” ou uma interpretação do que foi feito. O fazer criativo possibilita um novo olhar do indivíduo em relação a si mesmo e em relação ao mundo que o cerca. As palavras tendem a limitar ou aprisionar o símbolo a um conjunto restrito de significados.

A evocação dos arquétipos e a correlativa liberação dos desenvolvimentos psíquicos latentes, não são processos apenas intrapsíquicos; eles ocorrem num campo arquetípico que abrange o dentro e fora, e que inclui sempre, e pressupõe, um estímulo exterior – um fator proveniente do mundo (NEUMANN, 1991, p. 68).

Dessa forma, é necessário que o cliente seja entre em contato com algo que possa evocar essa potencia criativa. Esse contato, pode ser por meio das técnicas expressivas, ou pelo método de “ampliação” de sonhos ou fantasias,  possibilitando o religar o individuo com seu potencial criativo-arquetípico.

A arte pode atuar como um catalisador importante no processo terapêutico.  Um receptáculo para as projeções, que possibilita o indivíduo um confronto especial com o inconsciente. Contudo, a arte não é a panacéia.  A técnica certa pode se tornar ineficiente em alguns casos. Jung usava o provérbio taoísta que exprime bem essa realidade “Se o homem correto(…) usar o meio errado, o meio errado atuará do modo correto.(…) No entanto, se o homem errado usar o meio correto, o meio correto atuará do modo errado”(JUNG et WILHELM, 1988, p132) No caso específico, a técnica é o dialogo, muitas vezes silencioso, entre o terapeuta e o cliente.

É necessária presença ativa (mesmo que silenciosa) do terapeuta, a aposta no potencial inconsciente de cura e desenvolvimento do cliente. Pois, se o terapeuta não confiar e não buscar o “terapeuta/médico interior do cliente” ficará ainda mais difícil para o cliente encontrá-lo. Essa atitude do terapeuta vai para além do campo das palavras ou das intervenções orais. Pois, segundo Jung,

Muito mais forte do que suas frágeis palavras é a coisa que você é. O paciente está impregnado pelo que você é – pelo seu ser real – e presta pouca atenção ao que você diz. (…) Cada passo em frente que o paciente dá pode ser uma nova etapa para o analista. Não se pode estar com alguém sem ser influenciado por essa personalidade, mas o mais provável é que se não se perceba isso; (HULL, McGUIRE, 1984, p. 332)

Assim, faço uma quase apologia da arte ou técnicas artísticas com a psicoterapia. Pois, “tudo depende, como Jung não cansava de repetir, da ‘equação pessoal’, e equação pessoal é o mito próprio de cada terapeuta” (HILLMAN, 1984,p. 23). A técnica ideal é aquela que simboliza o encontro do terapeuta com o cliente, de modo a constelar o potencial de cura necessário ao cliente.

Minha quase apologia se torna também uma quase crítica. Esta quase crítica repousa não na técnica, mas justamente, no terapeuta que usa da técnica. Digo isso pelo risco da técnica se tornar um escudo que separa o cliente do terapeuta, protegendo este ultimo do contato. Do contato com sua própria insegurança, do contato própria história, com seus conteúdos que são ativados pelo contato com o cliente.

O uso de técnicas para “determinados casos” pode valorizar a patologia em detrimento do sujeito. A técnica é um meio, não um fim. O conhecimento da técnica, a experiência com a mesma, não pode substituir o contato único com cada cliente.  Mas, esta quase crítica se torna apenas um ponto de reflexão.

Gombrich, em sua história da arte, dizia que “uma coisa que realmente não existe é aquilo a que se dá o nome de Arte. Existem somente artistas.” (GOMBRICH, 1988,p. 4) Dessa forma, pensaríamos que não existe doença, mas doentes. Nem “Psicoterapias”, mas “psicoterapeutas”. Jung dizia que “o importante já não é a neurose, mas quem tem a neurose. É pelo ser humano que devemos começar para poder fazer-lhe justiça” (JUNG, 1999, p.80).

Referencias bibliográficas

BYINGTON,C.A.B. O DESENVOLVIMENTO SIMBÓLICO DA PERSONALIDADE, in JUNGUIANA – Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 1983.

BÍBLIA. Português. BÍBLIA SAGRADA: Nova Versão Internacional. Tradução da Comissão de Tradução da Sociedade Bílbica Internacional. São Paulo: Editora Vida, 2000.

BRANDÃO. J. DICIONÁRIO MÍTICO-ETIMOLÓGICO, Vol. I, Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 1991.

GROESBECK, C.J. A IMAGEM ARQUETÍPICA DO MÉDICO FERIDO,in JUNGUIANA – Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, 1983.

GUGGENBÜHL-CRAIG, A. O ABUSO DO PODER NA PSICOTERAPIA e na medicina, serviço social e magistério, Ed. Achiamé, Rio de Janeiro, Rj, 1978.

GOMBRICH, E.H, A HISTÓRIA DA ARTE, Ed. Guanabara, 4.d. Rio de Janeiro, RJ, 1988.

HILLMAN, J. O MITO DA ANÁLISE. Ed. Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1984.

JUNG, C.G. A NATUREZA DA PSIQUE, Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 2000.

JUNG, C.G. A PRÁTICA DA PSICOTERAPIA, Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 1999.

JUNG, C.G. O ESPIRITO NA ARTE E NA CIÊNCIA, Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 1991.

JUNG, C.G. – WILHELM, R. – O SEGREDO DA FLOR DE OURO. Um livro de vida chinês, Petrópolis, Editora Vozes, 1988;

McGUIRE, W.; HULL, R.F.C, C.G.JUNG: ENTREVISTAS E ENCONTROS, Cultrix: São Paulo, 1984.

NEUMANN, E. A CRIANÇA, São Paulo: Cultrix Editora, 1991.


[1] Este artigo é uma adaptação do trabalho apresentado para a disciplina “Técnicas e Intervenções Terapêuticas”, ministrada pela prof. Dra. Kathy A. Marcondes, no curso de pós-graduação/especialização latu sensu em “Psicologia Clínica e da Família”, na Faculdade Saberes em 2007.

[2] Segundo no Livro de I Samuel, 16:23, “Sempre o espírito mandado por Deus se apoderava de Saul, Davi apanhava sua harpa e tocava. Então Saul sentia alívio e melhorava, e o espírito maligno o deixava.” (BIBLIA, p.223, 2000)

[3] Cf. JUNG, 2000

[4] Hefesto foi levado ao Olímpo, como reconhecimento de suas habilidades. “Em sua longa carreira de ferreiro e ourives divino, Hefesto multiplicou suas criações, forjando e confeccionando os mais preciosos, belos e “surpreendentes” objetos de artes que já se viram. Para vingar-se da mãe, fabricou e enviou-lhe um presente magnífico: um trono de ouro, delicado e artisticamente cinzelado. Ao recebê-lo, Hera ficou estupefacta: jamais vira coisa tão rica e tão bela, mas, ao sentar-se nele, ficou presa, sem que nenhum dos deuses pudessem liberta-la, por que só o ourives divino conhecia o segredo de atar e desatar, (…) Foi necessário enviar Dioníso, para levá-lo de volta para o Olimpo. O deus o êxtase e do entusiasmo embriagou Hefesto e, assim, foi possível guia-lo, montado num burro, à mansão divina.” (BRANDÃO, 1991, p.490)

 

 

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

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BEOWULF vs BEOWULF : UMA DISCUSSÃO ACERCA DO POEMA ÉPICO BEOWULF E DO FILME “A LENDA DE BEOWULF”[1]

 

No final do ano de 2007 a Warner Bros. Pictures e Paramount Pictures lançaram o filme de animação “A lenda de Beowulf”, baseado no poema épico anglo-saxão “Beowulf” datado do século VII d.C., mas que chegou até nós através de um manuscrito do século X.

Na animação “A lenda de Beowulf” a imagem de atores consagrados como Anthony Hopkins, Angelina Jolie e John Malkovich foi digitalizada dando um efeito misto de realidade (atores reais) e fantasia (personagens irreais). Este misto de real e fantástico na produção do filme (independente do roteiro) nos traz a imagem que é própria ao mito.

Os mitos são modelos exemplares para comportamentos e ações do homem, oferecendo ao individuo uma referência de conduta ou ação. O mito possui uma estrutura básica e relativamente imutável, que subjaz às representações da cultura e da época onde o mito floresce.  Ao despirmos o mito de seu aspecto cultural, teremos sua estrutura básica mitemas. Os mitemas correspondem, na psicologia analítica, aos arquétipos – que são elementos estruturais fundamentais do psiquismo.

Na experiência psíquica, os arquétipos são estruturas básicas relativamente imutáveis, garantindo uma organização e coerência fundamental ao psiquismo humano ao longo do tempo.  Contudo, os arquétipos possuem a capacidade de se auto-representar através de imagens que são percebidas pela consciência.  Ao  longo do tempo essas imagens  podem se transformar assumindo formas diferentes, embora seu núcleo fundamental continue o mesmo. Essas imagens arquetípicas fazem parte da vida psíquica humana e se mantém claramente perceptíveis através dos dos mitos e das religiões. Os “DEUSES são METÁFORAS de comportamentos arquetípicos e MITOS são ENCENAÇÕES ARQUETÍPICAS. Os arquétipos não podem ser completamente integrados nem esgotados em forma humana.” (SAMUELS et al.1988, p. 39). [2]

O estudo comparado da mitologia nos permite compreender a dinâmica da psique de uma época ou do espírito da época.  A variação de um mito ou da forma como é contado nos permite observar quais os aspectos mais ativos na psique coletiva de um dado período.

Neste trabalho, consideraremos o filme “A lenda de Beowulf” assim como o poema “Beowulf” como variações do mito de Beowulf, que se insere no tema mítico do herói.  Neste ínterim, propomos uma comparação entre a narrativa mítica (poética) do século X com a narrativa mítica (cinema) do século XXI.

O Poema Beowulf

O poema épico “Beowulf” é um dos mais longos e antigos poemas épicos anglo-saxônicos, possuindo 3182 versos.

Escrito em inglês antigo por volta dos anos 680 e 725, Beowulf é um longo poema de temática heróica que apresenta as principais características épicas anglo-saxãs – sobretudo a dicção típica da narrativa dos feitos bélicos e os valores específicos de conduta militar – mescladas a uma amálgama de material histórico, elemento mitológicos comuns aos povos germânicos antigos e preceitos do cristianismo. (RAMALHO, 2007, p. XI).

Como este poema não é muito conhecido em português, estaremos narrando o poema, utilizando a citação. O poema se inicia narrado brevemente o surgimento da família real dos Danos, até os dias do Rei Hrothgar,

E a glória na guerra então garantiu

Hrothgar. E o seu sucesso se seguiu

da obediência dos homens, seus amigos

de boa vontade, até vir varões

jovens – um bando. Então, ele gerou,

em sua cabeça, a idéia de construir

um salão de hidromel muito suntuoso –

igual a ele ninguém jamais veria.

(…)

As ordens dadas (eu ouvi dizer)

para essa construção, por toda a terra,

mundo-médio, (lar humano) migraram.

Rápido, veio o reconhecimento:

aquele salão era superior.

Hrothgar chamou-o Heorot, o Salão

das Hastes, pelo poder que lá havia

em suas palavras, que eram soberanas.

(versos 63-81 RAMALHO, 2007, p. 5-6).

Após o Rei Hrothgar concluir seu salão, que era cheio de convidados para os banquetes, uma criatura monstruosa passou a atacar o salão do Rei Hrothgar toda vez que havia festividades. Com os ataques freqüentes esvaziaram o salão. Durante 12 anos. a criatura chamada Grendel atacou o salão matando os convidados, o Rei Hrothgar o combateu sem sucesso.

por doze invernos tanta dor teve,

pois, o povo Danes, então passando

por essa magna mágoa. Mesmo em outros

tempos, outras gerações ouviram

(a prole do povo) patentes cantos

sobre a guerra que Grendel contra Hrothgar

travou. Atos hostis, por anos (tantos)

a perdurar – prélio sem paz. Dos Danos,

riquezas e trégua recusou Grendel.

Sábio algum esperava, nos salões,

por diferente decisão daquele

monstro márcio – o qual, à noite; matava:

(…)

Assim, êmulo de humanos, estava

o perverso monstro a perpetrar

seu mal e sua afronta, habitando Heorot

nas negras noites. Não tocava o trono –

assento-dádiva: Deus não deixava-o.

(versos 145-156; 163-167)

Os feitos de Grendel se tornaram conhecidos entre os povos.  Até chegar ao conhecimento do guerreiro Beowulf, sobrinho do Rei do Getas, que se dispõe a ir até o Rei Hrothgar e se oferecer para matar Grendel. Chegando ao rei dos Danos, e façanhas sendo comentadas – como a derrota de Beowulf, num desafio de natação para um guerreiro, chamado Breca, segundo Beowulf, ele foi derrotado devido ataques de monstros marinhos que o levaram para as profundezas, onde ele matou os monstros.

Chegando noite  combinada, o rei Hrothgar e seus homens se retiraram  do salão deixando  apenas os Beowulf e seus guerreiros getas.

Fiava o herói dos Getas na sua força

grande – graça divina. Então, da gálea

e, depois,  da cota férrea despiu-se.

A espada ornada (a melhor) entregou

ao seu criado, a ordenar-lhe que cuidasse

dos seus bélicos artefatos. Beowulf,

ao deitar-se no leito,  depôs verbos –

jactava-se no leito o herói: “Eu, cá, jamais digo

que sou, em poder de pugna, sup’rior

a Grendel – nem em façanhas de guerra.

Não venho para deixa-lo sem vida

com esta espada minha, embora isso eu

pudesse. Posto, pois, que não possui prática

de armas alguma, não há de atacar-me,

nem de me perfurar o pavês, mesmo

que possa ser, assim, tão poderoso

o terror que ele traz. Se não temer

ele lutar desarmado, sem lâmina

enfrentar-nos-emos . Que escolha Deus

sábio(Senhor sacro) o sobrevivente.

(versos 567-687)

A noite, Grendel chega, devora um dos companheiros de Beowulf, quando tenta pegar o herói, este rapidamente acorda e se ataca Grendel iniciando um combate, que por fim terminou com a fuga de Grendel mortalmente ferido – com o braço arrancado.  O prodígio de Beowulf de propagou por todos os lugares, ele foi ricamente recompensado.

A alegria durou pouco tempo, pois as mortes no salão de Heorot recomeçaram.

A sono solto dormiam. Só um

pelo noturno repouso pagava

como ocorria, quando ocupou Grendel

o salão de ouro, até o fim fazer-se-lhe

(mal vindo): após pecados, a morte;

Viu-se (era sabido) que um vingativo

ser, após o prélio, sobrevivera:

tivera que habitar temíveis águas

(fêmea guerreira nas frias ribeiras),

quando, co´a espada, ao seu único irmão Caim

matara – parente de mesmo pai –

e, marcado pela morte, do humano

júbilo fugira – fora para o ermo.

(…)

Humilhado, o algoz dos homens a umbria

da morte procurara, pois, privado de

júbilo. De desgraças jornada

a mãe fez para a desforra de seu filho –

lúgubre no âmago, de vingança ávida.

Foi a Heorot. Dormiam Danos de Anéis.

Adentrou ela o salão. Mais ataques

fez ela, então: desforra ao filho seu.

(versos 1251-1265; 1275-1282)

Beowulf se dispõe a matar a mãe de Grendel, e assim por fim ao sofrimento dos Danos. A mãe de Grendel, era uma espécie de demônio aquático, que vivia numa caverna submarina à beira de um penhasco. Beowulf recebe de um nobre uma espada chamada Hrunting que era considerada excelente, que já fora usada em muitas batalhas vitoriosas, e afirma:

(…)Ou fama, com Hrunting, hei de fazer,

ou ela há de me levar à morte” O lorde

dos Getas, depois de (com tal denodo)

expressar aqueles verbos, então,

não haveria, pois, de réplica aguardar

alguma. E a água recebeu, agitada,

ao guerreiro. Algum tempo ele gastou

para discernir o fundo. Descobriu,

logo, o estranho ser, ao encontro do qual

tal homem descia. A devoradora

(ávida) há meio século nas águas

Estava. Golpe de garra, Ao guerreiro

O monstro tocou, mas não fez mal: malha

de prélio (elos em laços) protegia-lhe

o corpo – cota contra seu cruel golpe

de odiosos dedos. Desceu, a detê-lo

p´la malha de anéis, a loba do mar

rumo ao lar seu, no  fundo.

(…)

Ele se deu conta de que estava

num adverso salão sem água – seu

as enchentes evitava. Então,

reparou luz de fogo, lume rútilo.

O bravo foi bispar aquela fêmea-

Mulher do mar. Deu, co´a espada marcial,

Golpe. Cantou, gládio de guerra, um canto

ávido: lâmina de anéis, eis a arma

na cabeça do ser cravada após

deixar a mão do herói. Mas, divisou

o ser que, lâmina de luta, o gládio

não lhe ameaçava a vida. A arma falhou,

embora fendesse os elmos e as cotas

daqueles em batalhas, destinavam-se

(mano a mano) a morrer. Pela primeira

vez, preciosa peça, a espada no prélio

não fizera lá valer sua fama.

(versos 1291-1505; 1512-1528)

Segue-se uma batalha feroz. Sem espada capaz de vencer a mãe de Grendel, Beowulf ataca de mãos nuas, estando em situação muito desfavorável.

Vira o varão u´a espada de vitórias,

entre as armas – lâmina artificiada

por gigantes. Gume rígido, glória

de lutadores. Excelente  e esplêndida,

era a melhor espada, e a maior. Obra

de gigantes, nunca os homens, nos jogos

de gládios, conseguiam combater co´ela.

De Scyld esse herói chegara-se, então,

(irado estava – letal e implacável)

à arma p´lo cinto que lhe cingia o cabo

anelado. Aflito e irado, atacara:

co´a ponta atingira, pois, o pescoço

do monstro, quando os anéis se quebraram

(de osso). Cravara-lhe o gume no corpo

fadado a falecer. Ao chão, fora ela.

Espada ensangüentada. Ele, feliz.

(versos 1557-1573)

Tendo matado a mãe de Grendel, Beowulf encontra o corpo da o corpo de Grendel, decapita-o e o leva como para o Rei Hrothgar, que o honra com mais presentes, e o louva como grande herói. O rei e Beowulf juram lealdade e amizade.  Após as comemorações, os Getas retornam para casa. Chegando em sua terra natal, Beowulf é honrado pelo rei Hygelac, seu tio, e pelo seu povo pelos seus feitos.

Ambos, por direito ancestral, ali

tinham, naturalmente, terras (mais,

porém, Hygelac possuía, por ter

posição superior). Porém, Beowulf

teria o reino, co´os tombos (na guerra

de gládios) de Hygelac e de Heardred

(sobrinho de Hereric, lá sofrendo –

Rasgado o escudo – espada de heróis:

Danos, atrozes, em triunfal ataque).

Beowulf, protetor do povo, tão bem

Reinaria sua terra natal (rei

sábio), por cinqüenta invernos. Sob ´scura

noite, começaria um dragão, contudo,

(de ouro guardião, num outeiro-sepulcro,

alta pedra) a ataca-los: via haveria –

lá dentro, dos homens desconhecia –

de achar um ladrão tão astuto, então,

que (o dragão a dormir) despojaria-o

do cintilante ouro pagão. Sob fúria,

ao acordar, ele atacaria o arrebalde.

(versos 2200-2220)

Beowulf, o mais bravo dos getas, apesar de idoso, se dispõe a proteger seu povo, com alguns bravos guerreiros, ele se prepara para enfrentar o dragão. Segue assim, até a caverna onde o monstro jazia.

Verbos ditos. Veio o dragão malévolo –

colérico. De chispas coruscante,

o monstro, outra vez, contra os seus odiosos inimigos investiu. Incendiou,

´té o cabo, o broquel com flamas em fluxo,

quais vagas. A cota não conseguiu

guardar o jovem lutador de guerra.

Mas, pele jogou sob o pavês do amigo,

com denodo, depois que  o seu ardera.

Então, o marcial rei (na mente, glória,

outra vez), co´o gládio de guerra, golpe

desferiu (o impelia a força da ira)

no crânio do ser. E quebrou-se Nægling:

gorou o antigo gládio gris de beowulf –

pelas feridas que fizera era ela

enrijada. O fado não fez o férreo

gládio o auxiliar na guerra. Forte

a mão é desse que maneou espadas

para além da dureza delas – assim

ouvi. Mas bem não estava o bravo homem.

Rumo a ele o dragão de fogo ropeu,

(p´la terceira vez, quando teve chance)

Terrível, quente e cruel: luta intentava

Co´afiadas presas prendeu-lhe o pescoço.

E Beowulf de sangue banhado estava:

O licor da vida de lá vertia um jorro.

(versos 2668-2693)

Beowulf cai desacordado. Os companheiros ou fugiram ou foram mortos pelo dragão, apenas Wiglaf ficou ao lado do rei dos Getas, auxiliando-o.

O rei, pois, aos sentidos retornou.

Então, brandiu ele sua espada afiada –

gume de guerra que estava guardado

sob seu arnês. Co´ela atravessando

o dragão, o herói, que era defensor

dos Getas ao meio cortou-o – monstro.

Fizeram o hoste ter derrota. Foi

o valor que levou dele a vida. Ambos

aniquilaram-no – nobres aliados.

(versos 2705-2713)

Mortalmente ferido, Beowulf e Wiglaf conversam pela ultima vez. Beowulf pede para ver o ouro que constara, pagando com a própria vida.  A morte de Beowulf foi honrada pelo povo. Uma grandiosa pira funerária foi erigida e ali o herói que venceu Grendel, sua mãe e o dragão, encontrou seu descanso final.

Beowulf de Hollywood

A versão cinematográfica do mito de Beowulf possuía muitas diferenças do mito do século X. A história de Beowulf segundo o filme se inicia com uma comemoração no salão de hidromel do Rei Hrothgar, que bêbado festeja com seus homens, até o som das cantorias chegam até a caverna de Grendel, que sentido “dores” devido os cantos alegres parte de sua caverna em direção ao salão, onde inicia um ataque contra os participantes do salão.  Contudo, o único homem que Grendel não podia atacar era o Rei Hrothgar. Após o ataque  Grendel retorna à caverna onde encontra sua mãe,  que o questiona sobre o que ele tinha feito e se ele tocou no rei.

Com os ataques de Grendel, o salão de Hidromel de Hrothgar é fechado. A noticia do fechamento do salão de Hrothgar chega à Beowulf, que navega até a terra do Danos em busca de glória. Uma vez na terra dos Danos, Beowulf  chega ao Rei Hrothgar prontificando-se a acabar com sua aflição. Nesse meio tempo, Beowulf é questionado sobre sua competição com Breca, da qual saiu perdedor. Beowulf  responde que lutou com monstros marinhos e por isso abandonou  a competição, respondendo de forma ofensiva a quem lhe inqueriu.

O rei Hrothgar aceita de bom grado a ajuda oferecida por Beowulf, que em meio aos festejos fica flertando com a rainha de Hrothgar. Já era noite, quando o Rei Hrothgar, bêbado, se retira e chama sua rainha para ir, Beowulf começa a retirar usa roupa e dizer que lutaria desarmado assim como Grendel, diante da rainha, se exibindo e seduzindo a rainha – por que apaixona-se, que logo após se retira para os aposentos de Hrothgar, onde é revelado que Hrothgar e a rainha Wealhtheow não tenha uma vida intima, nem herdeiros, pois a rainha se recusava a deitar junto com Hrothgar por sabe teve relação com o demônio sem nome – a mãe de grendel, sendo ele pai de Grendel.

No meio da noite, com os homens cantando, Grendel ataca o salão. Devorando e matando os homens. Ao se aproximar de Beowulf, este acorda, e inicia um combate sem armas. Quando Grendel ameaça fugir, Beowulf que o havia prendido por um braço com uma corrente, o segura, quando ele tenta sair pela porta, Beowulf arranca seu braço batendo a porta contra o mesmo.  Mortalmente ferido, Grendel foge para sua caverna, onde encontra sua mãe, conta-lhe o ocorrido e morre.  A mãe parte em busca de vingança. Enquanto isso, os homens comemoram e Hrothgar dá um chifre dourado em forma de dragão como presente a Beowulf e todos comemoram. Ela invade o sonho de Beowulf, tentando seduzi-lo para ter um filho com ele – e quando ele acorda todos seus companheiros estão mortos.

Beowulf resolve se vingar e parte em busca da mãe de Grendel, em sua caverna.  Ao encontrar a mãe de Grendel, ela fala sobre glorias do futuro que ele terá se unir a ela e lhe dar um filho.  Beowulf tenta ataca-la inutilmente.  Ela lhe promete ele será um rei invencível, sempre forte, majestoso. Como parte do acordo, ela exige que ele deixe a taça em forma de dragão que recebeu de Hrothgar, enquanto essa taça permanecer com ela o acordo tudo que ela prometeu continuará válido. Beowulf aceita.

Quando retorna ao Rei, Beowulf leva a cabeça de Grendel e afirma que matou a mãe. Hrothgar chama Beowulf para conversar e desconfia que ele não falou a verdade. Na conversa Hrothgar afirma que “ a mãe de grendel, não é mais minha maldição”. Retornando para a festa, o Rei Hrothgar declara para todos, que quando ele morresse Beowulf seria seu sucessor no trono.  Pouco depois, Hrothgar se afasta e se suicida, Beowulf é declarado rei.

Passam-se cinquenta anos. Beowulf, já velho, com cabelos brancos está num campo de batalha. Insatisfeito com as batalhas e com a vida. Apesar de ter-se casado com a rainha Wealhtheow, ele não teve filhos, nem sequer conseguia dormir com ela, o mesmo ocorre com outras mulheres. Apesar de amar Wealhtheow, Beowulf não consegue tê-la como mulher.

Numa noite, um dos servos traz a antiga taça do dragão que pertenceu a Hrothgar, assustado Beowulf questiona onde foi encontrada a taça, e lhe dizem que foi achada nos montes. Nessa mesma noite, um dragão começa assolar o reino de Beowulf. Uma vez que a taça retornou à Beowulf, o acordo com a mão de Grendel estava acabado.

O dragão passou a atacar o reino, Beowulf, pai do Dragão, tomou sobre si a responsabilidade do que estava acontecendo e pôs em direção da caverna onde estava o Dragão e sua mãe.  Lá chegando, o dragão se revela e parte para destruir o castelo e matar a rainha. Beowulf o persegue e trava uma batalha com o dragão.  Sacrificando a si mesmo, consegue matar o dragão.

Após a morte de Beowulf, ele recebe um funeral real, sendo colocado num barco fúnebre. Quando o barco está submergindo,  a mãe de Grendel e do Dragão aparece, e beija Beowulf. Depois aparece próxima a Wiglaf, o novo rei, como que se também quisesse seduzi-lo.

Entre o Poema e o Filme

Para podermos pensar e discutir o mito de Beowulf nessas duas versões devemos ressaltar algumas diferenças entre essas duas versões.

Personagem/Elemento

Poema

Filme

Beowulf

É um guerreiro orgulhoso, que busca a gloria, realizando grandes feitos. É honrado e fiel às convenções de corte.

É um guerreiro arrogante, que se impõe pela força em busca da glória.  Egocêntrico não se importa em cortejar a esposa do rei seu anfitrião.

Rei Hrothgar

Um rei sábio, corajoso que fez de tudo por seu povo.

Um rei fraco, alcoolista. No filme Horthgar nem de longe lembra um rei guerreiro.

A relação de Grendel e o Rei Hrothgar

Grendel não atacava o Rei Hrothgar porque Deus não permitia

Não atacava Grendel por ser filho de Hrothgar, e ter sido proibido pela mãe.

Grendel

É um ogro, monstro que devora carne humana

Filho de Hrothgar com um demônio marinho, ataca por estar se sentido “ferido” com as cantorias do salão de Hrothgar

Mãe de Grendel

É um ser demoníaco, um demônio marinho.

É um ser sedutor, sensual, com características reptílianas.  Após a morte de Beowulf, ela aparece no mar e posteriormente tenta sutilmente seduzir Wiglaf – o novo rei.

Dragão

É um dragão clássico. Uma gigantesca serpente.

É Filho de Beowulf, é um dragão alado e cospe fogo.

Batalha com o dragão

A batalha ocorre na caverna, no subsolo. Beowulf

A batalha em si, ocorre durante o voo do dragão, que vai até o castelo matar a rainha Wealhtheow, esposa de Beowulf

O Reino de Beowulf

Beowulf herda o reino do tio, após sua morte – Beowulf não desejava o trono, mas com a morte do tio e do primo ele era próximo na linha de sucessão, se tornando protetor do Getas

Recebe o reino de Hrothgar como se fosse uma maldição. Após, o anúncio que seria o herdeiro de Hrothgar, este se suicida entregando o trono à Beowulf.

Rainha Wealhtheow

Aparece muito pouco no poema.

É bela e sábia.

Morte de Beowulf

Durante o combate, Beowulf é mordido pelo dragão – sendo assim envenado. Ele morre pouco tempo depois de vencer do dragão.

Após, arrancar o ferir mortamente o dragão, que estava em pleno vôo, ambos caem no penhasco, morrendo juntos na praia.

Enterro de Beowulf

Beowulf é cremado numa pira funerária.

É lançando num barco funerário, que após incendiado submerge no mar.

O Mito e o Arquétipo do Herói

Quando falamos em “mito do herói” não nos referimos a um mito específico, mas a uma categoria de mitos que se referem a essa temática.  De forma geral,

A aventura do herói pode ser resumida no seguinte (…): O herói mitológico, saindo de sua cabana ou castelo cotidianos, é atraído, levado ou se dirige voluntariamente para o limiar da aventura. Ali, encontra uma presença sombria que guarda a passagem. O herói pode derrotar essa força, assim como pode fazer um acordo com ela, e penetrar com vida no reino das trevas (batalha com o irmão, batalha com o dragão; oferenda, encantamento); pode, da mesma maneira, ser morto pelo oponente e descer morto (desmembramento, crucifixão). Além do limiar, então, o herói inicia uma jornada por um mundo de forças desconhecidas e, não obstante, estranhamente íntimas, algumas das quais o ameaçam fortemente (provas), ao passo que outras lhe oferecem uma ajuda mágica (auxiliares). Quando chega ao nadir da jornada mitológica, o herói passa pela suprema provação e obtém sua recompensa. (CAMPBELL, 2003, p. 241-242)

A jornada ou aventura do herói está sempre vinculada a um momento crítico, um momento de tensão onde o herói não surge pelo ímpeto individual, ele é produzido pelo espírito da época. O surgimento, a preparação do herói, a aventura, seus feitos, sua recompensa e sua morte apontam para o processo de transformação de toda uma época. E, por isso é necessária a morte do herói. O herói, como um importante símbolo de transformação, ele surge como o agente de mudança, mas, contudo, ele também pertence à época que ele ajuda a transformar.

(…) virtualmente, todo herói é uma personagem, cuja morte apresenta um relevo particular e que tem relações estreitas com o combate, com a agonística [arte da luta atlética], a arte divinatória e a medicina, com a iniciação da puberdade e os mistérios; é fundador de cidades e seu culto possui um caráter cívico; é ancestral de grupos consangüíneos e representante protótipo de certas atividades humanas fundamentais e primordiais. Todas essas características demonstram sua natureza sobre-humana, enquanto, de outro lado, a personagem pode aparecer como um ser monstruoso, como gigante e anão, teriomorfo [forma animal selvagem] ou andrógino, fálico, sexualmente anormal ou impotente, voltado para a violência sanguinária, a loucura, a astúcia, o furto, o sacrilégio e para a transgressão dos limites e medidas que os deuses não permitem sejam ultrapassados pelos mortais. E embora o herói possua uma descendência privilegiada e sobre-humana, se bem que marcada pelo signo da ilegalidade, sua carreira, por isso mesmo, desde o início, é ameaçada por situações críticas. Assim, após alcançar o vértice do triunfo com a superação de provas extraordinárias, após núpcias e conquistas memoráveis, em razão mesmo de suas imperfeições congênitas e descomedimentos, o herói está condenado ao fracasso e a um fim trágico.” (Brelich apud. BRANDÃO, 2005, p.19).

O herói é um tema universal, isto é, está presente em todas as culturas e mitologias por representar um aspecto fundamental do ser humano.  C.G.Jung chamou esses temas universais de arquétipos. Deve-se notar, entretanto, os arquétipos não são apenas padrões culturais ou vinculados apenas à cultura, são estruturas inerentes ao ser humano, independente da cultura – a cultura vai determinar a sua forma de manifestação e expressão.

Na psicologia junguiana os arquétipos são padrões de organização psicofísica – isto é, padrões que atuam tanto no âmbito psíquico quanto somático – que se manifestam por meio de impulsos/reflexos instintivos para a execução de determinado comportamento. No sentido propriamente somático, a manifestação de um arquétipo pode desencadear reações fisiológicas correspondentes a tal comportamento, por exemplo, temos a pseudociese ou em casos de mulheres passam a produzir leite no contato com crianças recém-nascidas, que não são seus filhos e mesmo sem ter tido filhos. No âmbito psíquico a manifestação do arquétipo se dá na configuração de imagens psíquicas em sonhos, devaneios ou mesmo em idéias relativamente fixas ou persistentes com amplo poder de atração que podem subjugar o ego à sua dinâmica própria.

De forma geral, os arquétipos são reconhecidos pelas imagens culturais a eles vinculados. Em nosso caso, o arquétipo do herói ou o arquétipo cuja temática é a experiência mítica do herói, nos fala do processo de diferenciação e mudança de paradigmas.

(…) no mito do herói jamais se trata da história pessoal de um indivíduo qualquer, mas sempre de um evento transpessoal e ideal de significado coletivo. Mesmo as características quase-pessoais são de natureza arquetípica, por mais que os heróis individuais, os seus destinos e os alvos das suas respectivas lutas com o dragão possam sugerir que diferem uns dos outros.

Mesmo que interpretemos a luta e seu objetivo, no nível subjetivo, como um processo interior do herói, o evento é transpessoal. A vitória e a transformação do herói, mesmo quando apresentadas como eventos “interiores”, são para cada ser humano um evento válido, que deve ser contemplado para ser imitado na vida, ou, pelo menos, para que o sinta. Enquanto a moderna historiografia, com seu viés personalista, se inclina a representar os eventos coletivos da vida das nações e da humanidade como dependentes de impulsos personalistas de monarcas e líderes, o mito reflete a personalidade transpessoal através dos eventos singulares da vida do herói. (NEUMANN, 1995, p. 152)

Devemos, contudo, compreender que herói

etimologicamente, ήρως (héros) talvez se pudesse aproximar do indo-europeu serva, da raiz ser-, de que provem o avésticohaurvaiti, “ele guarda” e o latim seruare, “ conservar, defender, guardar, velar sobre, ser útil”, donde herói seria o “guardião, o defensor, o que nasceu para servir”.  (BRANDÃO, 2005, p. 15)

Dessa forma, o herói é aquele que se coloca a serviço de algo maior, o bem coletivo. O arquétipo do herói é o impulso à manutenção e transformação da consciência, contribuindo assim par o desenvolvimento da personalidade, isto é, do processo de individuação.

Beowulf vs Beowulf

Quando relacionamos as duas versões do mito de Beowulf, notamos uma estrutura básica e algumas diferenças marcantes.  A estrutura básica do mito de Beowulf, compartilhando do tema arquetípico do herói, é mantida – Beowulf como guerreiro em busca de glória, que vence monstros, é coroado e posteriormente tem sua grande ultima batalha onde cai vencido e vencedor.

As diferenças, entretanto, são úteis para compreendermos a necessidade e das dificuldades do homem em cada época.  Os relatos do mito segundo o manuscrito do século X, nos indicam aspectos da psique coletiva do homem daquela época.

Beowulf é um herói geta ou godo, como chamaram os romanos, uma tribo originária da Escandinávia.  No poema medieval no século X, o norte da Europa passava por um processo de transformação, a era Viking estava em franco declínio, chegando ao fim no século XI, quando os guerreiros Vikings deixaram os assaltos (saques) e invasões e criaram reinos, passando a se dedicar ao comércio. O cristianismo modificava a conduta dos povos germânicos e escandinavos e inseria uma nova concepção ética. O mito de Beowulf coloca-se nessa interseção de mudanças na psique coletiva.

No poema Beowulf é um guerreiro que parte de sua terra em busca de aventura e glória. A luta com Grendel e sua mãe, foi parte de sua preparação como herói. Sua descida a caverna marinha (um símbolo feminino e materno – caverna e mar), ao mundo urobórico marinho, nos fala de uma descida iniciática, um segundo nascimento onde beowulf vencendo a “grande mãe” de Grendel, restabelece a paz, restaurando o reinado (paterno) de Hrothgar. O sucesso de sua empreitada, é fundamental no seu retorno à casa, pois o destino lhe reservou, sem que o mesmo desejasse, o trono.

O poema retrata a transição de um guerreiro-aventureiro a um sábio rei, protetor de seu povo. O heroísmo de Beowulf não diminui com a idade – assim como o potencial do arquétipo não está restrito a juventude.

Outro aspecto importante é pouca presença do feminino no poema.  Beowulf é um guerreiro sem donzela; um rei sem rainha. A única presença feminina marcante é a mãe de Grendel, que é um feminino perigoso, urobórico, que assassina os homens.  A ausência de participação ou presença do feminino no contexto do poema nos leva a observar o modelo ideal do homem godo na alta idade média – que era o ideal guerreiro. O não encontro com o feminino impede que Beowulf atinja na velhice a verdadeira sabedoria, apesar de sua justiça ele continua sendo herói. E, por esse heroísmo é morto.

O mito Beowulf medieval nos serve de modelo para pensarmos o a consciência masculina, ergue do inconsciente, lutando contra as forças ctônicas do mundo inferior, mas que por não integrar o princípio feminino não subsiste ao encontro com a sombra-dragão.

A versão contemporânea do mito de Beowulf é igualmente rica e expressa aspectos importantes da psique coletiva contemporânea. O Beowulf de nossos dias é um guerreiro em busca de glória, mas não uma glória vinda da honra de servir, mas pelo desejo de poder. Seu individualismo (quase narcísico) se reflete no modo como insiste em fazer seu nome conhecido, bradando seu nome aos quatro ventos sempre que possível.

Na versão contemporânea, as mulheres são muito presentes na narrativa – a rainha Wealhtheow e a bela mãe de Grendel.  A atração de Beowulf pelas mulheres é evidente desde o primeiro contato com a rainha, onde se mostra “admirado” e logo após “apaixonado” – a ponto de romper com todas as regras de cortesia ao tentar seduzir a rainha Wealtheow quase que diante do rei Hrothgar.

O descaso de Beowulf com regras de cortesia, assim como a representação de Hrothgar como um rei bêbado e fracassado é um aspecto importante que para pensarmos em nossa época.  O nosso herói não respeita as tradições, nem os velhos tem nada acrescentar.

Talvez, deveríamos classificar Beowulf não como herói, mas como um “anti-herói” – ele não serve a ninguém a não ser a si mesmo e seus impulsos.   Beowulf é um herói sem referências – assim como Hrothgar é um rei sem majestade.   Hrothgar é um velho (senex) que não atingiu o auto-conhecimento e a sabedoria – necessárias guiar o herói em seu caminho de transformação.  Tanto Hrothgar quanto Beowulf, são presos ao princípio princípio feminino da  mãe Grendal, os que lhe impedem de ter um herdeiro.

O encontro de Beowulf com a mãe de Grendel aponta seu despreparo para lidar com o mundo ctônico e inferior, que o seduz e o prende num juramento – ele recebe em troca “força” e “majestade” – uma “juventude” que dura 50 anos.  Beowulf não amadurece nem frutifica.

O Beowulf medieval, estava desconectado do mundo feminino preso no mundo patriarcal das normas e tradições, também nosso Beowulf contemporâneo, está preso no mundo da grande mãe, não consegue se unir a sua alma (anima).

Se formos pensar em nosso mundo, onde também há uma perda das tradições, os idosos são asilados (ou exilados) e cada vez mais temos pessoas sem direção, adolescentes de 40 anos, adolescentes que buscam a glória a todo custo  – mesmo que seja da própria vida ou de outros.  A dificuldade de amadurecer é mostrada quando Beowulf, 50 anos depois de ser coroado continua no campo de batalha, como se envelhecesse sem perder o físico da juventude, Beowulf é um misto de herói e puer aeternus.

Podemos compreender a busca pelo Dragão – inicialmente como uma descida, o na caverna – como o encontro com a sombra, um reencontro com seus atos do passado. O que fica bem claro, visto que o dragão é o filho que busca o pai. A após ferir mortalmente o dragão e caírem do penhasco na praia, o dragão (que assume uma forma quase humana) e beowulf ficam estirados lado a lado, como iguais.

No funeral de Beowulf, a presença de mãe de Grendel em seu barco fúnebre, indica o retorno de Beowulf ao mundo materno, do qual ele nunca saiu realmente.  que não conseguiu integrar o feminino de forma criativa, o que impediu que chegasse a um desenvolvimento pleno.

Ao confrontarmos as duas versões desse mito, podemos observar que eles chegam ao mesmo ponto, por vias diferentes.  O herói que não integra o princípio feminino está fadado a uma morte desastrosa. O princípio feminino é o princípio complementar da consciência, isto é, o próprio inconsciente, sem o qual é impossível chegar à totalidade. Contudo, devemos notar, que o feminino não se restringe somente a mãe de Grendel e a rainha Wealhtheow, o dragão-sombra, não deixa de ser um símbolo do feminino. Segundo Neumann,

(…) podemos dizer que o dragão é habitualmente um símbolo do feminino.

(…) Na batalha heróica, o dragão do Feminino Terrível tem um aspecto dual. Num dos aspectos, o dragão aparece francamente para o ego como uma imagem negativa da psique, como a face aterradora do inconsciente que – como impulso e afeto, como letargia e covardia, e a tendência a desistir da luta –  (…) Isto porque, na constelação do dragão, o mundo é também um aspecto do Feminino Terrível gerador de ansiedade, que ameaça devorar o ego-herói e levá-lo de volta aos braços da Mãe-Terrível que está dentro dele, e que em seu abraço incestuoso promete a paz da morte por meio da rendição do eu. (NEUMANN, 2000, p.230-2)

Não podemos deixar, dizer que no filme fica bem claro dos aspectos reptilíneo da mãe de Grendel. O próprio dragão, viveu preso ao mundo urobórico da grande mãe, expressa os desígnios sombrios da Mãe Terrível, que envia o próprio filho para a morte no confronto com o pai.

Na sociedade guerreira gótica, onde o feminino não tinha espaço devido, o mito apontou para o perigo dessa falta, por outro em nossa sociedade, a busca uma igualdade entre os sexos não significa nem diferenciação do ego das imagens arquetípicas, nem integração dos pares opostos, no caso, o feminino(anima) no homem e o masculino (animus) na mulher, o mito de Beowulf aponta para os perigos tanto da falta quanto da submissão ao feminino, que não leva a diferenciação do ego. Em ambas versões do mito de Beowulf, podemos compreender que a não integração do feminino conduz ao um confronto desastroso com o inconsciente(dragão).

Cerca de dez séculos separam as sociedades que produziram as versões do mito de Beowulf. As diferenças entre as versões são enormes, o foco, a caracterização dos personagens, contudo há um elemento fundamental e estrutural do mito que independe da roupagem que recobre o mito, que é o núcleo arquetípico em torno do qual o mito se desenvolve.

Ao discutirmos as duas versões podemos observar que o mito de Beowulf pertence ao grupo de heróis que, como Édipo, não se diferenciaram do feminino, ficando presos ao mundo matriarcal. Cujos feitos heróicos foram ofuscados por sua tragédia.

REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BRANDÃO, Junito. Mitologia Grega, vol III, Vozes: Petrópolis, 2005.

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2003.

NEUMANN, Erich. História da origem da consciência. 10 ed. Cultrix: São Paulo, 1995.

______________. O Medo do Feminino São Paulo: Paulus: 2000.

SAMUELS, Andrew, SHORTER, B., PLAUT, F.  Dicionário crítico de análise junguiana Rio de Janeiro: Imago,  1988

RAMALHO, E. BEOWULF, Tessitura :Belo horizonte, 2007.


[1] Este artigo é uma adaptação do trabalho apresentado para a disciplina “Mitologia”, ministrada pela prof. Dra. Isabela Fernandes, no curso de pós-graduação/especialização latusensu em “Teoria e Prática Junguiana”, da Universidade Veiga de Almeida, 2008.

[2] Grifos do Autor

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

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“A divergência entre Freud e Jung”: uma Discussão Acerca dos Pressupostos básicos da Psicologia Analítica

Fabrício Moraes

Kelly Tristão

“Eu prefiro entender as pessoas a partir de sua saúde”

C.G.Jung

Em 1929, Jung publicou um breve artigo intitulado “A divergência entre Freud e Jung”[1], onde afirmou que a “[…] oposição entre Freud e eu repousa essencialmente na diferença de pressupostos básicos”(JUNG. 1989, p. 329). Nosso objetivo é discutir os pressupostos básicos da psicologia analítica, apontados nesse artigo.

O primeiro pressuposto indicado por Jung está relacionado com seu método utilizado, o método hermenêutico. A hermenêutica é um método inicialmente utilizado para a compreensão de textos sagrados, mas que foi ampliado como método de interpretação de textos em geral, assim como de expressões simbólicas.

Para compreendermos a associação do método hermenêutico à psicologia junguiana, devemos considerar que para Jung o inconsciente se manifesta como uma linguagem, assim, Jung aponta como necessário “[…] examinar as formas de manifestação do inconsciente, a fim de compreender sua linguagem.” (JUNG, 1999, p.118). Para compreender a linguagem do inconsciente, seria necessário.

[…] aplicar o mesmo método usado para a leitura de um texto fragmentário, ou que contenha palavras desconhecidas, isto é, a consideração do contexto. Pode ocorrer que o significado da palavra desconhecida seja descoberto quando comparado com uma série de passagens que a contém (JUNG, 1994, p.54).

Deste modo, para compreender a linguagem do inconsciente é necessário conhecer as formas pelas quais o inconsciente se manifesta, sejam elas pessoais, como os sonhos, devaneios, sintomas, atos falhos dentre outras; ou coletivas, como mitos, contos de fadas, religiões, arte, literatura, ideologias de massa dentre outras; através dessas manifestações poderemos – por meio de contextualização e comparação, compreender a dinâmica do inconsciente.

Na pratica clínica, o método hermenêutico é utilizado por Jung sob o nome de “amplificação”, que consistia no processo de buscar as associações do cliente sobre determinado símbolo, de forma dirigida, circulando em torno do símbolo a fim de recolher o máximo de associações pessoais ou coletivas (culturais e míticas), para melhor compreender o símbolo junto ao cliente.

A hermenêutica não constitui apenas um método de investigação, mas, uma postura epistemológica que visa compreender o conhecimento e o processo de conhecer dentro de seu contexto próprio. E assim, Jung afirma que:

Nosso modo de ser condiciona nosso modo de ver. Outras pessoas tendo outra psicologia vêem e exprimem outras coisas e de outro modo. Isto o demonstrou logo um dos primeiros discípulos de FREUD: ALFRED ADLER. Ele apresentava o mesmo material empírico de um ponto de vista bem diferente, e sua maneira de ver é, no mínimo, tão convincente quanto à de FREUD, porque também ADLER representa um tipo de psicologia que encontramos com freqüência (JUNG, 1989, p. 324).

A compreensão de que o conhecimento deve ser contextualizado, levou Jung a afirmar que a diversidade as teorias psicológicas, representam a diversidade da psique humana. As teorias seriam o resultado da interação dofenômeno observado com observador. Seria um grave equívoco excluir o observador, que é um processo histórico em curso. Jung afirmava que as teorias são confissõessubjetivas, isto é, as teorias expõem tanto o fenômeno observado quanto o observador, pois, o a compreensão do fenômeno (exposta na teoria) vai passar pela história do observador (suas experiências e referências construídas ao longo de sua vida).

Assim, as teorias psicológicas devem ser avaliadas dentro de seu próprio contexto, desta forma, todas as teorias deveriam ser respeitadas como válidas – por mais opostas que possam parecer.

No tocante à psicologia, acho melhor renunciar à idéia de que estejamos hoje em condições de fazer “afirmações verdadeiras” ou “corretas” sobre a essência da psique. O melhor que conseguimos fazer são expressões verdadeiras. Entendo por expressões verdadeiras uma confissão subjetiva e uma apresentação detalhada do que se observa subjetivamente. Alguém colocará ênfase especial na forma do que encontrou e se arvorará em autor do seu achado, outro dará mais  importância àobservação e falarádaquilo que se manifesta,valorizando sua atitude receptiva. A verdade estará provavelmente em ambos: a verdadeira expressão é a que dá forma à observação[2] (JUNG, ibid ).

O segundo pressuposto básico que Jung aponta em seu artigo, é a perspectiva teleológica ou energética. Este foi um dos pontos cruciais na divergência com Freud, pois a adoção da perspectiva energética, isto é, do conceito deenergia psíquica em 1912, marcou o distanciamento teórico entre Jung e Freud, culminando na separação definitiva em 1914.

Jung abandonou a compreensão freudiana de libido, por considerar que:

[…] os processos dinâmicos da psique não podem ser reduzidos a este ou aquele instinto específico (…) Por isso achei oportuno admitir uma grandeza hipotética, uma “energia”, como princípio de explicação psicológica e designá-la “libido”, no sentido clássico da palavra (desejo impetuoso), sem com isso fazer qualquer afirmação sobre sua substancialidade. Com essa grandeza, os processos dinâmicos podem ser facilmente explicados e sem aquela deturpação própria de uma explicação baseada em motivo concreto (JUNG, 2000, p. 13).

A adoção da perspectiva energética significou comparar o conceito de libido como o conceito de energia da física, isto é, como o potencial para realizar um trabalho ou ação. Com essa analogia, a libido se tornou neutra, ou seja, não está condicionada somente à sexualidade como propunha Freud. Jung não negava a importância da sexualidade, mas, questionava a crença freudiana de que a sexualidade era a causa única da dinâmica psíquica. Seria como dizer, que na física toda energia teria a mesma origem, por exemplo, toda energia seria hidroelétrica.  Assumindo o ponto de vista energético, Jung não afirmou nenhuma causa ou uma motivação original do psiquismo, mas sim enfatizou a finalidade da dinâmica psíquica.

Na concepção de libido ou energia psíquica proposta por Jung, a energia deveria ser avaliada em dois aspectos, o quantitativo e o qualitativo. No aspecto quantitativo, poderíamos apenas inferir sobre a quantidade ou intensidade de energia que seria direcionada a uma dada ação ou dinâmica psíquica. No âmbito qualitativo, por outro lado, a ênfase recai sobre o modo ou forma que a energia assumiu; a sexualidade, adaptação, vontade de poder, auto-preservação seriam expressões qualitativas da energia psíquica. O aspecto quantitativo e qualitativo seriam manifestações finais da energia psíquica; sendo assim, passamos a considerar o contexto final do processo psíquico, isto é, seu objetivo. Essa consideração finalista ou da finalidade da dinâmica psíquica também é chamada de teleológica.

Este pressuposto básico se reflete na clínica junguiana pela busca do sentido do sintoma, da neurose ou do sonho.  Isto porque, para Jung, havia uma intencionalidade natural nas formações do inconsciente, isto é, um direcionamento para o desenvolvimento psíquico. Um sonho ou mesmo uma neurose, não se manifesta ao acaso, nem é uma simples repetição de um drama passado, mas são tentativas de libertar o individuo de amarras que o prendem – não ao passado, mas desde o passado.  A neurose é uma tentativa natural de cura. Assim, o trabalho terapêutico se desenvolve numa tentativa de compreender para onde a neurose quer nos guiar, o que ela quer nos dizer.

Não de se deveria procurar saber como liquidar a uma neurose, mas informar-se sobre o que ela significa, o que ela ensina, qual sua finalidade e sentido.[…] Uma neurose estará realmente “liquidada” quando tiver liquidado a falsa atitude do eu. Não é ela que é curada, mas é ela que nos cura. A pessoa está doente e a doença é uma tentativa da natureza de curá-la. (JUNG, 2000, p.160-1)

Para se compreender o sentido ou a finalidade da neurose, era necessário se observar com atenção o passado, ou a história pessoal de um individuo, para entender e contextualizar as formações do inconsciente, mas sem cair num fatalismo, que reduz o indivíduo a um produto de seu passado. Uma vez compreendida a construção histórica do individuo, deve-se buscar a sentido, a finalidade que é inerente a qualquer formação do inconsciente.  Jung considerava que a perspectiva causal e a finalista eram complementares, mas, ainda assim, enfatizava a importância da perspectiva finalista, pois, “[…] em geral, o para frente é mais importante que o para trás, por que futuro vem e o passado se vai.” (ibid).

O terceiro pressuposto apontado por Jung é considerar a existência de uma função religiosa inerente ao psiquismo. Esse pressuposto é, certamente, o mais polêmico – quando mal compreendido. Para discutirmos essa função psíquica, devemos, antes de mais nada, entender o que Jung compreende por religião, que para o mesmo era “[…] uma atitude do espírito humano, atitude que de acordo com o emprego originário do termo: ‘religio’”(JUNG, 1999b, p.10).

Devemos nos atentar para o termo religio, pois o uso contemporâneo de religião, não guarda correspondência com o emprego originário de religio. Ao “[…] termo religio os vocabulários latinos atribuem, em geral, significados correntes entre os autores clássicos: ‘escrúpulo’, ‘consciência’, ‘exatidão’, ‘lealdade’ e outros afins.” (FILORAMO et PRANDI, 1999, p. 255). A concepção que comumente temos de religio como oriunda de religare, (religar, reatar), surgiu por volta do século IV d.C, com Lactâncio, como uma forma de adequar o termo religio à teologia cristã.

Deste modo, religião para Jung era uma atitude que o individuo assumia frente ao numinoso. Este termo, numinoso foi concebido por Rudolf Otto, para descrever o fenômeno do sagrado, Numen, em latim, era um termo aplicado para se referir a divindades menores ou mesmo para se referir ao que seria divino, isto é, algo que transcenderia nossa realidade, nos impactando.  Assim, Jung explicava que religião era:

[…] uma atitude o espírito humano, atitude que de acordo com o emprego originário do termo: “religio”, poderíamos qualificar a modo de uma consideração e observação cuidadosas de certos fatores dinâmicos concebidos como “potências”: espíritos, demônios, deuses, leis, idéias, ideais, ou qualquer outra denominação dada pelo homem a tais fatores; dentro de seu mundo próprio a experiência ter-lhe-ia mostrado suficientemente poderosos, perigosos ou mesmo úteis, para merecerem respeitosa consideração, ou suficientemente grandes, belos e racionais, para serem piedosamente adorados e amados” (JUNG, 1999b, p.10).

Devemos observar que Jung não defendia uma ou outra forma de crença religiosa, pois o seu foco era a atitude religiosa, isto é, uma “consideração e observação cuidadosa”, que poderia promover uma relação diferenciada do individuo consigo mesmo. Jung compreendia que todas as religiões se nutriam do mesmo substrato psíquico, possuindo raízes comuns no inconsciente coletivo. Afirmava que em”

[…] seu conteúdo doutrinário reconheço aquelas imagens que encontrei nos sonhos e fantasias de meus pacientes. Em sua moral vejo as mesmas ou semelhantes tentativas que fazem meus pacientes, por intuição ou inspiração próprias, para encontrar o caminho certo de lidar com as forças psíquicas (JUNG, 1989, p. 326).

As religiões, assim como as artes, são expressões simbólicas naturais que orientam e possibilitam o desenvolvimento do psiquismo.  Por este motivo, Jung afirmava que as religiões eram sistemas psicoterapêuticos, por favorecer que, através da identificação simbólica, o indivíduo possa ter um encontro consigo mesmo. Assim, a função religiosa é a capacidade natural da psique em criar símbolos e sistemas simbólicos e se organizar e se orientar a partir desses sistemas.

A função religiosa se manifesta como uma possibilidade de organização psíquica que não depende de instituições religiosas. Ideologias, associações podem ser uma via de manifestação desta função psíquica. Podemos citar como exemplo, a irmandade dos “Alcoólicos Anônimos”, que oferece através de suas reuniões e do estudo dos 12 passos e das 12 tradições, um contexto simbólico importante para a recuperação/mudança de atitude de seus membros.

Esta terceira característica pressupõe uma função natural de auto-regulação psíquica, que impulsiona o individuo ao desenvolvimento.

Os três pressupostos básicos – método hermenêutico, perspectiva teleológica e a função religiosa – nos permitem compreender o desenvolvimento da teoria e prática Junguiana assim como o distanciamento da psicanálise de Freud.

Referencias bibliográficas

FILORAMO,G.; PRANDI, C. As Ciências das Religiões, São Paulo: Paulus, 1999.

JUNG, C.G. Freud e a Psicanálise. Petrópolis: Vozes, 1989.

__________. Psicologia e Alquimia. Petrópolis: Vozes, 3. ed.  1994.

__________. A Prática da Psicoterapia. Petrópolis: Vozes, 7 ed. 1999.

__________. Psicologia e Religião. Petrópolis: Vozes, 6 ed. 1999b.

__________. Civilização Em Transição. Petrópolis: Vozes, 2 ed. 2000.

__________. O desenvolvimento da Personalidade. Petrópolis: Vozes, 9 ed. 2006.


[1] Este artigo faz parte do quarto volume das “Obras Completas de C.G Jung”, intitulado “FREUD E A PSICANÁLISE”

[2] Grifo do autor.

 

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

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Persona

 

Nota: O Tema da persona foi rediscutido de forma aprodunda no “Algumas considerações sobre o lugar da persona”( http://psicologiaanalitica.com/2015/05/02/algumas-consideraes-sobre-o-lugar-da-persona/ ). Este texto foi ligeiramente revisado em 07/09/2015

A persona é um dos conceitos junguianos mais conhecidos. E, também, um dos conceitos que podemos perceber em nosso cotidiano de uma forma muito simples e objetiva.

O termo persona tem origem latina o per sonnare, que  significava  (originalmente) por “onde o som passa ou ressoa”.  Era o termo que indicava as máscaras utilizadas pelos atores no teatro antigo,  que tinham a função tanto de caracterizar o personagem quanto auxiliar na projeção(ou amplificação) da voz.

Jung adotou esse termo para indicar essa formação psíquica que se relaciona diretamente com o Ego, mas tem sua constituição relacionada à consciência coletiva. A Persona tem como objetivo intermediar as relações entre o individuo e o sociedade, para tanto ela atua como uma ponte, viabilizando o contato entre o ego e os outros.  Isso é possível, pois a persona agrega a si todos os aspectos relacionados aos papéis ou funções  sociais, fornecendo ao Ego os elementos necessários para um bom ajuste social.

No geral, nos referimos a “Persona” tanto ao  conjunto dos papéis sociais desempenhados pelo individuo quanto a cada papel em sua individualidade.  Por ex., a persona de um individuo é formada pelos papel filho, esposo, pai,  profissional, amigo.  Em cada um desses papéis há um conjunto de responsabilidades e forma de proceder – em caso de neuroses, é comum os indivíduos desenvolverem personas inadequadas, como agir como “filhos” de suas Esposas.  Ou ter dificuldade em passar de um papel para outro, como por exemplo, ser sempre o “profissional”, agindo em casa com a família, como age no trabalho.

Assim, a persona é a dinâmica própria de adaptação as circunstâncias do meio, por isso, ela está ligada fortemente ao meio externo.  Devemos notar, que a persona acompanha nosso desenvolvimento e se transforma de acordo os processos de nossa vida.  Uma forma de notarmos a Persona, em nosso dinamismo inconsciente,  são nos sonhos.   Como dissemos, a persona por se relacionar a adequação e relação social, muitas vezes aparece representada nos sonhos como nossas roupas.  É muito comum (em especial quando crianças e adolescentes) sonharmos de estarmos “sem roupa” na escola indicando um certo despreparo ou uma ansiedade em relação a situação  escolar.    Dessa mesma forma, na adolescência e vida adulta se torna mais comum o sonhos onde estamos em locais com a roupa inapropriada (como estar na igreja de pijamas).

Mas, a persona nos sonhos muitas vezes nos indicam processos de transição, de transformação interna, para onde nosso desenvolvimento deve seguir, ou qual atitude o ego deve integrar. Eu me recordo de um sonho bem especial, pois, foi na época de minha formatura, no meu sonho “eu estava no prédio da psicologia, na sala de minha supervisora, (onde também ocorriam as supervisões clinicas). Eu estava sozinho, eu saia da sala e ia em direção ao pátio interno, chegando lá havia muitas pessoas, vários colegas de turma que se formavam comigo, e estavam ocorrendo uma festa. Ao ver essa festa, eu retorno pelo corredor, corro até a sala de minha orientadora (que continuava vazia) troco de roupa, colocando uma mais adequada a festa.  Saio mais seguro e vou para a festa.(o sonho acaba logo depois que eu entro no pátio). Esse sonho marcou o fim de meu período de estudante e inicio de minha vida profissional.

A mudança ou adaptação da persona nem sempre é um processo simples. Muitas vezes, tentamos fugir desses processos – que na verdade é uma fuga de nossa própria vida e de nosso desenvolvimento natural.  O Medo de enfrentar nossa vida e do momento em que vivemos é muitas vezes denunciado pela inadequação da persona, por exemplo, jovens que se casam mas, querem manter uma atitude de solteiro, como uma dificuldade de enfrentar o momento da própria e as responsabilidades que acarretam.

A Persona reflete a maturidade do Ego, por isso, muitas vezes no processo de individuação é necessário um redimensionamento da persona para que ela seja realmente adequada ao que o individuo realmente é. Assim, torna-se necessário desvincular a persona das possíveis fantasias que o individuo tem de si mesmo ou da excessiva dependência das normas externas, que impedem que o individuo se desenvolva.

 

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

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