Medo, controle e a adaptação

“Faremos casas de medo,
duros tijolos de medo,
medrosos caules, repuxos,
ruas só de medo e calma.

(…)

O medo, com sua física,
tanto produz: carcereiros,
edifícios, escritores,
este poema; outras vidas.”

Carlos Drummond de Andrade
In A Rosa do Povo
José Olympio, 1945

No primeiro post de 2023 eu gostaria de falar sobre três elementos que impactam nossa vida: o Medo, o controle e a adaptação. O medo é uma emoção fundamental da vida. Em seu aspecto mais basal o medo se manifesta como o fundamento de autopreservação e cautela, podendo também se manifestar na paralisia e na fuga.

Ao longo de nossa vida, crescemos com vivências de medo naturais como o medo de ficar sozinho, da escuridão, da perda/abandono, de altura que se manifestam desde a infância, outras manifestações de medo vão se construindo com o desenvolvimento do indivíduo e de acordo com cultura, como o medo da morte, medo do fracasso, medo do julgamento e rejeição.

A cultura nos oferece formas de lidar com o medo seja pela nomeação e personficação do medo – na forma de monstros, fantasmas e demônios – ou através de ações e gestos apotropaicos – bater na madeira, invocar santos, heróis ou anjos, benzer-se – que visam repelir o medo e o mal. As religiões, em última análise, são sistemas que nos protegem dos medos, nos auxiliando a enfrentar os mistérios da vida e morte.

Na medicina chinesa, o medo é associado ao movimento da água, relacionado aos rins. Essa relação não é muito clara, mas é importante entender que os rins abrigam um aspecto energético/espiritual importantíssmo que é o Shen, que pode ser traduzido como “força de vontade” ou “vondade de vida” que vem a ser o ímpeto vital que nutre as possibilidades vitais psicofísicas. O medo, em seu aspecto natural, momentâneo visa preservar a vida, mas quando em excesso ou cronificado ele afeta o fluxo da vida, ele paralisa, limita e agride o Shen, a vontade de vida – que em alguns casos poderá afetar também o orgão físico rim. Colocando em desequilibrio todo o organismo (afetando as capacidade emocional e expansiva dos Hun, associado ao fígado, gerando irritabilidade, estagnação; aumentando a preocupação e ansiedade, afeta a segurança, capacidade de autorreferência do Yi, o propósito, associado ao Baço; que vão afetar a capacidade de elaboração e coordenação da vida Shên, a mente consciente, associado ao coração.

Assim, o medo afeta o organismo/indivíduo como um todo. Com frequência, temos reações defensivas inconscientes (mecanismos de defesa) que atuam diretamente, tentando evitar a ansiedade e o medo. De nossas atividades conscientes voluntárias temos dois modos de ser ou de nos comportarmos que expressam nossa relação com o medo : o controle e a adaptação.

Quando me refiro ao controle, falo da necessidade do controle, da necessidade de organizar, de ter previsibilidade. Ou seja, a vida se torna enrijecida, contida e artificial (sem espontaneidade ou criatividade). É como se repressássemos a vida, contivéssemos seu fluxo – nos expondo tanto às secas/infertilidade (criatividade) quanto aos transbordamentos e enchentes (imprevistos). Em ambos os casos, a perda do controle é vista como uma forte ameaça à vida – como vemos nos quadros fóbico-ansiosos. Em todo caso, não conseguimos lidar com nossa história, com nossos recursos, gerando segurança para enfrentar as situações do cotidiano.

É importante entender que quando tentamos controlar o ambiente, controlar eventos futuros, controlar exaustivamente nossas reações e dos outros, estamos tentando controlar o nosso medo/insegurança projetados nessas situações. Essa necessidade de controle é o eco do medo, que também se manifesta como ansiedade.

Por outro lado, falamos da adaptação. Esta se expressa como a flexibilidade, a capacidade de acolher e mudar/responder ao que nos advém. É importante entender que, naturalmente, pode vir acompanhada de sofrimento diante ás situações da vida, contudo, não há uma negação do medo. A adaptação é um modo de atravesar as tempestades da vida. Esther Harding, importante analista junguiana da primeira geração, afirmou sobre um diálogo que teve com Jung em 1924, quando foi abordado o medo.

Disse ele: “Tenha medo do mundo, porque é grande e forte; e tema os seus demônios interiores porque são muitos e brutais; mas não tenha medo de si mesma, porque esse é o seu Eu”. Eu disse que temia abrir a porta, com receio que meus demônios saíssem e destruissem. Jung respondeu: ” Se você os encerra, também seguramente destruírão. A única maneira de delimitar o Eu é pelo experimento. Vá tão longe quanto deseja ir, e não tardará em descobrir que foi até onde suas próprias leis permitem. Se sentir medo, seja corajosa o bastante para fugir. Encontre um buraco para esconder-se, pois essa é a ação de um homem bravo, e assim fazendo você estará exercendo coragem. Em breve o impulso de covardia estará extinto e a coragem tomará o seu lugar.” Eu disse: “Mas como eu parecerei irremediavelmente instável e cambiante!” Ele replicou: “Então seja instável. Uma nova estabilidade se reafirmará. Vivemos para as outras pessoas ou para nós mesmos? Este é o lugar onde uma pessoa deve aprender a verdadeira abnegação, o altruísmo autêntico.” (HULL, McGuire, 1989, p. 43)

Esse diálogo entre Esther Harding e Jung indica o ponto essencial da adaptação, que inclui o medo, a fuga, o enfrentamento e acima de tudo a abertura a experiência. E, para isso, precisamos de uma profunda honestidade conosco, assim como reconhecimento de nossas habilidades, de nosso caminho, dos nossos erros e acertos. Nos permitindo o pulsar da vida, ora nos recolhendo, ora nos expandindo.

Na intodução do livro “O medo da Vida”, Alexander Lowen afirma

A neurose não é, em geral, definida como medo da vida, mas é exatamente isso. A pessoa neurótica tem medo de abrir seu coração ao amor, teme estender a mão para pedir ou para agredir; amedronta-a ser plenamente si mesma. Podemos explicar esses temores psicologicamente. Quando abrimos o coração ao amor, ficamos vulneráveis ao risco da mágoa; quando estendemos os braços à frente, arriscamo-nos à rejeição; quando agredimos, há a possibilidade de sermos destruídos (LOWEN, 1989, p.11).

A vida é fluxo, movimento e transformação. O medo desse fluxo gera a necessidade de controle, em grande parte, relacionada ao desconhecimento de quem somos, o distanciamento de nossas potencialidades e nossa história. Quando nos abrimos a vida nos expomos às mudanças e naturalmente nos adaptamos – exatamente o que acontece quando entramos no mar ou mesmo numa piscina, onde pouco a pouco nosso corpo se ajusta à flutuação, ao movimento da àgua ou das ondas, não controlamos o mar, mas nos ajustamos ao fluxo respeitando nossos limites e os limites do mar.

Com esse olhar que Jung afirmou acerca da prática da psicoterapia

“O que viso é produzir algo de eficaz, é um produzir um estado psíquico, em que meu paciente comece a fazer experiências com seu ser, um ser em que nada mais é definitivo nem irremediavelmente petrificado; é produzir um estado de fluidez, de transformação e de vir a ser”(Jung, 1999, p. 43-4).

A individuação é um exercício diário de adaptação, de fluir na vida, amadurecendo e transformando-se a cada encontro – com ou sem medo.

Referencias bibliográficas

LOWEN, Alexander, O Medo da Vida, São Paulo, Summus, 1989

JUNG, A Prática da Psicoterapia,Petrópolis: Vozes, 1999.

McGUIRE, William., ; HULL, R. F. C., C.G. Jung: Entrevistas e Encontros; Ed.Cultrix, São Paulo, 1982.

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico Junguiano, Supervisor Clínico, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Pós-graduando em Acupuntura Clássica Chinesa (IBEPA/FAISP). Formação em Hipnose Ericksoniana. Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos” Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 99316-6985. / e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes /Instagram @fabriciomoraes.psi

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