Algumas palavras sobre o “Arquétipo do Herói” e o Complexo de poder

05 de novembro 2010

Uma das imagens arquetípicas mais conhecidas é a do herói. Os heróis são personagens fundamentais em todas as mitologias

Entretanto eu gostaria de pensar o herói de uma forma menos “arquetípica”, para pensarmos sua manifestação pessoal, isto é, através do complexo. Digo isso, pois, muitas vezes já reparei que ao falarmos de processo de enfrentamento,  onde se manifesta a dinâmica do herói, nos referimos sempre ao arquétipo e, geralmente, nos esquecemos do complexo envolvido.

Mas, para pensarmos essa dinâmica arquetípica, devemos considerar primeiro alguns aspectos do herói, seguindo a explanação de Joseph Campbell.

O Mito Herói

Etimologicamente,  ήρως (héros) talvez se pudesse aproximar do indo-europeu servä, da raiz ser-, de que provém o avéstico haurvaiti, “ele guarda” e o latim seruäre, “conservar, defender, guardar, velar sobre, ser útil”, donde herói seria o “guardião, o defensor, o que nasceu para servir”.(BRANDÃO, 1987, p.15)

Quando falamos em Herói, falamos de uma personagem mítico que vive no limiar entre o mundo humano e o mundo dos deuses. Por vezes, o herói é defensor do cosmos, protegendo o mundo contra as  forças do caos, fazendo com que o mundo continue existindo, em outros momentos ele é o próprio agente de transformação, derrubando regimes corruptos e decadentes, propiciando a renovação da vida.

Esse “estar entre dois mundos” fez com que o herói fosse visto como sendo ele próprio estivesse entre os deuses e os homens. Entre os gregos, os heróis eram uma categoria a parte, haviam os imortais(que chamamos de deuses), os mortais (humanos) e os heróis, que em sua maioria possuíam uma ascendência divina, ou que haviam conquistado as graças de um deus. Em outras mitologias, como a nórdica, os heróis não eram filhos ou descendentes, mas protegidos ou escolhidos pelos deuses, que lhes capacitavam para uma dada missão.  Essa característica do herói, de ser um escolhido ou descendente divino, é notada na mitologia como o “nascimento milagroso”, isto é, ao nascer a criança-herói sofre a “exposição” , isto é, é exposta aos elementos ou uma grande dificuldade (Édipo foi abandonado no monte Citerão, Hércules venceu duas serpentes, Perseu foi lançado com a mãe ao mar, pelo avô, Moisés foi colocado numa cesta de junco no nilo, Harry Potter, graças ao sacrifício de sua mãe, sobreviveu ao ataque de Voldemort, etc…) de modo, que sua infância já indica os grandes feitos futuros.

A jornada do herói, como é proposta por Joseph Campbell, pode ser resumida em três atos: Partida-Iniciação-Retorno.

A Partida corresponde o inicio da aventura.

O Chamado à Aventurapode por um processo natural, isto é, pode ser consequência da vivência do herói ou o herói se coloca a disposição para realizar o feito, como no conto do circulo arturiano “Sir Gawain e o  Cavaleiro Verde” , quando no ano-novo um cavaleiro verde aparece na corte do Rei Arthur, pedindo/desafiando que um dos cavaleiros presentes lhe dê um golpe de machado no pescoço e que em um ano, fosse na capela Verde, para receber o golpe de volta, Arthur se prontifica, mas, Gawain se prontifica, solicitando que o Rei permitisse que ele assumisse o desafio. Esse é um exemplo, da aceitação natural ao chamado. 

Outra possibilidade é quando o herói é envolvido pela aventura e, quando se dá conta, já está no meio da aventura, esse “cair de pára-quedas” na aventura é muito comum nos contos de fadas. Um exemplo, são as histórias de Simbad, o Marinho, narradas nas “Mil e Uma Noites”, onde, Simbad, já velho e próspero comerciante, narra a um homem pobre e invejoso, como ele se tornou rico e prospero, e que foi o destino e lhe levou as grandes aventuras.

Esse primeiro estágio da jornada mitológica — que denominamos aqui “o chamado da aventura” — significa que o destino convocou o herói e transferiu-lhe o centro de gravidade do seio da sociedade para uma região desconhecida. Essa fatídica região dos tesouros e dos perigos pode ser representada sob várias formas: como uma terra distante, uma floresta, um reino subterrâneo, a parte inferior das ondas, a parte superior do céu, uma ilha secreta, o topo de uma elevada montanha ou um profundo estado onírico. Mas sempre é um lugar habitado por seres estranhamente fluidos e polimorfos, tormentos inimagináveis, façanhas sobre-humanas e delícias impossíveis.(CAMPBELL,2005, p.66)

Campbell aponta que o chamado pode ser recusado, quando o herói se recusa, cai sobre ele passa ter uma existência vazia, se tornando ele mesmo um vilão ou pode ser amaldiçoado pelas divindades, e muitas vezes, ele próprio deve ser salvo por um futuro herói que aceitou o chamado (discutiremos mais a frente a recusa, quando falarmos do complexo de poder).

No inicio da Aventura, há como característica o auxilio sobrenatural,isto é, alguma figura sobrenatural(como animal falante), um deus, ou um ancião ou anciã lhes dão conselhos e/ou instrumentos que lhes permitem seguir em sua empreitada. Após o encontro, com esse sobrenatural, o herói é levado ao limiar.

Chamado por Campbell, como A passagem pelo primeiro limiar, que é justamente quando o herói deixa o mundo conhecido e entra no desconhecido. Ao chegar no limiar, o herói passa pelo primeiro teste, que é enfrentar o guardião do limiar, esse guardião separa os limites do mundo conhecido, de modo, que nenhum homem comum pode atravessar esse limiar, esse guardião poderá tentar seduzir os heróis (como as sereias, a Iara, o boto), ou tentará assustar e enganar o herói levando-o a um destino trágico (como faz o coiote nos mitos indígenas norte americanos, ou o curupira em nosso folclore). Ou mesmo, poderá irá propor um desafio que pode ser o combate físico ou mesmo que herói lhe traga um objeto(quase impossível) de se conseguir.

A passagem pelo primeiro limiar pode assumir a forma de renascimento, na mitologia é representado pelo ventre da baleia,em nossa cultura o mais conhecido é o profeta bíblico Jonas, mas, outros personagens míticos como o herói irlandês, Finn MacCool, o grego Héracles, o herói trapaceiro “Corvo” dos esquimós,  o polinésio Maui, todos passaram pelo ventre da baleia ou do “grande peixe” ou do monstro marinho.

Após a travessia pelo primeiro limar, o herói é exposto as provações que vão inicia-lo num desenvolvimento de ordem superior. Aqui o herói não contará apenas com sua força ou astúcia, mas, estará por inteiro na aventura.

Tendo cruzado o limiar, o herói caminha por uma paisagem onírica povoada por formas curiosamente fluidas e ambíguas, na qual deve sobreviver a uma sucessão de provas. Essa é a fase favorita do mito-aventura. Ela produziu uma literatura mundial plena de testes e provações miraculosos. O herói é auxiliado, de forma encoberta, pelo conselho, pelos amuletos e pelos agentes secretos do auxiliar sobrenatural que havia encontrado antes de penetrar nessa região. Ou, talvez, ele aqui descubra, pela primeira vez, que existe um poder benigno, em toda parte, que o sustenta em sua passagem sobre-humana (CAMPBELL, 2005, 102.)

No caminho das provações o herói deverá enfrentar desafios de todas as ordens, seja os monstruosos ou dos prazeres. Nesse caminho, o herói será levado ao encontro e confronto das forças primordiais: o amor e o poder. Esses dois são representadas pela figura da Deusa(ora mãe, ora amante) e do Deus – Pai.

No geral, o confronto com as forças criadoras (a Deusa-mãe e o Deus-Pai), no caso da Deusa-mãe é herói a encontra como a devoradora, a que aprisiona em seu próprio útero,  vencer esta mãe primordial(caótica) é o primeiro passo para ser realmente homem, e assim, poder encontrar a deusa-rainha.

O encontro com a deusa (que está encarnada em toda mulher) é o teste final do talento de que o herói é dotado para obter a bênção do amor (caridade: amor fati ), que é a própria vida, aproveitada como o invólucro da eternidade.(CAMPBELL,2005,  p.119)

O confronto com o deus (muitas vezes figurado como monstro, o ogro) consiste num encontro e num reconhecimento. Isso pode se dar pela via do confronto direto (o deus como um monstro a ser derrotado) ou pelas tarefas que farão o pai reconhecer o filho-herói. Esse processo, permite ao herói “se tornar um com o pai” ou compreender o pai, que na verdade, é o amadurecimento, a possibilidade de vislumbrar uma dimensão, então, impossível para o mesmo.

O problema do herói que vai ao encontro do pai consiste em abrir sua alma além do terror, num grau que o torne pronto a compreender de que forma as repugnantes e insanas tragédias desse vasto e implacável cosmo são completamente validadas na majestade do Ser. O herói transcende a vida, com sua mancha negra peculiar e, por um momento, ascende a um vislumbre da fonte. Ele contempla a face do pai e compreende. E, assim, os dois entram em sintonia.(CAMPBELL,2005, p 142.)

Após completar sua busca, vencer seus desafios, o herói deve retornar a sua pátria, aqui ele também recebe, no geral, ajuda sobrenatural para realizar sua viagem de retorno ou sua fuga milagrosa.

Devemos ressaltar que apesar haver diferentes tipos de herói, a estrutura da aventura é a mesma.

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O Arquétipo do Herói e a experiência pessoal : Complexo de poder

Após observarmos a estrutura do mito do herói, podemos compreender um pouco mais acerca do arquétipo do herói. Afinal, o mito do herói é uma representação do arquétipo do herói na cultura. Não podemos perder de vista, que os arquétipos são padrões de organização psíquica, culturalmente percebemos essa organização a partir da repetição sistemática dos temas mitológicos (criação, maternidade, morte, enfrentamento de adversidades) que nos permite uma orientação nas diversas situações da vida.

Em nossa experiência pessoal, os arquétipos se configuram como um eixo temático em torno do qual as experiências pessoais serão apreendidas e ordenadas, dando origem aos complexos. Por exemplo, as experiências vinculadas a maternidade (nutrição, acolhimento/proteção) darão origem ao complexo materno.

No caso específico do herói, não há na literatura em português uma referência clara ao complexo oriundo do “arquétipo do herói”, eu particularmente, compreendo que herói é a imagem representacional do arquétipo, por isso, eu prefiro chamar essa configuração pessoal de “complexo de potência” ou “complexo de poder”.

O complexo de poder agrega a si todas as experiências do individuo no tange “enfrentamentos”, mudanças, a capacidade suportar a adversidade, frustrações. Desde cedo somos incentivados (ou não) a enfrentar a realidade externa, o meio. Um individuo que desde cedo sentiu segurança, apoio e estabilidade nas relações parentais, vai construir um repertório de experiências que vão possibilitar uma maior segurança no futuro, isto é, um complexo de potência que vai sustentar o Ego na sua relação frente a vida.

Devemos lembrar, que mesmo os que não tiveram condições de vivenciar em suas famílias experiências positivas, têm outros referenciais que são oferecidos culturalmente (que normalmente, complementam o aprendizado doméstico) que são as narrativas míticas (as mais comuns são histórias da bíblia), contos de fadas (que hoje identificamos também com os “super-heróis” ou personagens de TV e quadrinhos), identificação com pessoas (atletas ou empresários), que mobilizam o individuo a novas possibilidades.

O complexo de poder está intimamente relacionado com o aspecto teleológico da psique, isto é, o complexo de poder não só agrega as experiências de enfrentamento a si, mas, possibilita ao ego um direcionamento futuro, trazendo em si um potencial de ação e mudança, muitas vezes,  impelindo o Ego ao enfrentamento.

Como todo complexo, o de poder não foge aos aspectos históricos individuo, isto é, ele não se configura apenas como um polo criativo. Pois, quando um individuo tem mais experiências de frustração, de abandono e insegurança, sua experiência negativa também vai moldar negativamente este complexo, fazendo com que o individuo se torne por demais ansioso, temeroso, inseguro e evitando as situações de conflito, nessa forma de configuração conhecemos esse complexo pelo nome dado por Adler : complexo de inferioridade. Quando falamos do “complexo de inferioridade” devemos ter atenção, pois, saindo da perspectiva de Adler, a inferioridade em si não gera o complexo, quando nos referimos ao complexo de inferioridade estamos falando da uma face do complexo de poder.

É importante prestarmos atenção ao fato de que os complexos estão interligados, assim, as experiências muitas vezes se somam positivamente ou negativamente. Ninguém tem exclusivamente experiências positivas ou negativas na vida. Quando sofremos muito em nossa vida, a tendências é nos tornarmos defensivos, evitando mais sensações de dor, achamos que não damos conta das experiências ou das situações. Muitas vezes, gerando sentimentos e pensamentos negativos em relação a nós mesmos. No geral, desvalorizando as conquistas que tivemos na vida e assim, podemos não perceber o lado criativo do complexo de poder.

Em psicoterapia é importante observarmos quais são os complexos que estão em relação com o complexo de poder, que fortalecem a perspectiva negativa frente a vida. Uma vez que o individuo perceba essas relações, para assim, se permitir novos movimentos. No geral, o complexo de poder está intimamente ligado a ansiedade, pois, nele reside grande parte da nossa referencia de confiança e segurança.

A ansiedade é uma função de proteção natural, que evita que assumamos riscos desnecessários, entretanto, com o nosso mundo contemporâneo, onde as realidade é fluida, regida pelas incertezas, a nos leva  sempre é sempre questionar “será que dou conta?” e cada passo que damos é sempre um passo rumo as duvidas. A ansiedade exagerada ou o excesso de insegurança expressam nossa dificuldade não só de lidar “com o que vai vir”, mas, também, de lidar com nossa história, com nossas conquistas, perdemos a noção das possibilidades. A ansiedade, como uma sensação de despreparo para a vida, gera uma limitação em nossa percepção de realidade, que se resume se daremos conta ou não.

Quando nos remetemos ao arquétipo do herói, temos uma referencia interessante: o herói nunca da conta de tudo sozinho. Sempre recebe o “auxilio sobrenatural” ou a ajuda de amigos. Por isso, quando compreendemos que os mitos são modelos exemplares (segundo Eliade), que nos orientam em como reagir nas mais diversas situações da vida, nós temos um excelente instrumento de referência para além da experiência individual.

Sofremos com a ansiedade, quando tentamos “ dar conta de tudo sozinhos” cometemos,  o que na mitologia grega seria o “pecado do herói”, isto é, a “hybris”, a desmensura, excesso, ou o orgulho, que não nos permite compreender o nosso real papel e que nos conduz ao fracasso. Indo na Na vida aprendemos o quanto precisamos dos outros, aprendemos que crescer é crescer juntos. É interessante que nos contos de fadas contemporâneos nos dizem justamente isso, quando lemos “O Senhor do Anéis”, “Harry Potter” ou “Percy Jackson”, vemos a importância de compreender que “heroísmo” ou “enfrentamento” não significa que tenha de ser “sozinho”.

Quando associamos o complexo de poder ao arquétipo do herói, podemos compreender não só o que fazemos, mas, sobretudo, o que devemos fazer. Nossa psique visa sempre o desenvolvimento, isto é, o crescimento individual e coletivo. Muitas vezes, nós fazemos escolhas que geram estagnação, paralisando nossa vida. Muitas vezes, quando recusamos o chamado a aventura isto é, recusamos o nosso próprio desenvolvimento (seja pelo medo ou por não termos, naquele momento, melhores opções) podemos gerar o adoecimento.

Com freqüência, na vida real, e com não menos freqüência, nos mitos e contos populares, encontramos o triste caso do chamado que não obtém resposta; pois sempre é possível desviar a atenção para outros interesses. A recusa à convocação converte a aventura em sua contraparte negativa. Aprisionado pelo tédio, pelo trabalho duro ou pela “cultura”, o sujeito perde o poder da ação afirmativa dotada de significado e se transforma numa vítima a ser salva. Seu mundo florescente torna-se um deserto cheio de pedras e sua vida dá uma impressão de falta de sentido — mesmo que, tal como o rei Minos, ele possa, através de um esforço tirânico, construir um renomado império. Qualquer que seja, a casa por ele construída será uma casa da morte; um labirinto de paredes ciclópicas construído para esconder dele o seu Minotauro. Tudo o que ele pode fazer é criar novos problemas para si próprio e aguardar a gradual aproximação de sua desintegração. (CAMPBELL, 2005, p. 66-7 )

O complexo de poder (assim, como sua contrapartida impessoal, o arquétipo do herói) nos impele ao futuro, nos incomoda sempre que estagnamos, ou nos gera ansiedade ou temor – não para nos paralisar, mas, para nos alertar dos perigos para assim criarmos novas estratégias, buscarmos ajuda, criar novos meios.

Referencias Bibliográficas

BRANDÃO, Junito. Dicionário Mítico-Etimológico. Petrópolis: Vozes, 1997, vol. I.

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. 10. ed. São Paulo:Cultrix/Pensamento, 2005

 

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

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