Uma visão geral
A psicologia analítica é uma abordagem plural, com uma diversidade marcante que toca tanto a prática quanto a teoria. Desde os anos 60/70, as diferenças no modo de pensar a teoria quanto a condução analítica deram margem a diferentes classificações tentaram dar forma e delimitar essa pluralidade junguiana. Das classificações a que mais próximo chegou a ilustrar o cenário junguiano foi a do analista britânico Andrew Samuels, em seu livro “Jung e os Pós-Junguianos” (1985/1989) que classificou três grupos majoritários no campo junguiano (não excluindo a existência de outros) aos quais ele nomeou como escolas: clássica, desenvolvimentista e arquetípica.
Alguns anos depois, Samuels, no texto intitulado ” Will the Post-Jungians Survive?” (1998), revisou sua classificação afirmando as “escolas” poderiam ser melhor compreendidas “tendências”, visto que os “pós-junguianos” teriam contato com todas “escolas”, formando assim, tendências em torno de afinidades da percepção teórica e prática. A mudança de “escolas” para tendências foi importante, pois o campo junguiano não se caracteriza por uma afiliação ou alinhamento a uma instituição específica como o “Instituto de Jung de Zurique” ou a “Society of Analytical Psychology” de Londres, mas pelas leituras, estudos e pela identificação com a visão e proposta.
É importante compreender que a classificação de Samuels apesar de ser didática, de ilustrar as característas gerais dos principais movimentos junguianos desde a morte Jung, não representa uma regra, mas sim uma referência importante para se pensar a diversidade campo junguiano. James Astor, analista junguiano inglês, comentou que Michael Fordham, icone da “escola desenvolvimentista” descrita por Samuels não se via numa “escola”, ele diz que Fordham
(…) nunca pensou em seu trabalho como “desenvolvimentista”, no sentido de haver uma distinção entre “desenvolvimentista” e “arquetípico”. Essas distinções se infiltraram no discurso junguiano após um livro de Samuels no qual, escrevendo para um público mais amplo, ele esquematizou as diferenças de ênfase de várias organizações junguianas e seus membros (Samuels 1985). A objeção de Fordham a essas categorias é que elas criam confusão ao afirmar que fazem distinções que o próprio Jung não fez (Fordham, comunicação pessoal, 21 de agosto de 1994). Todo o trabalho de Jung, na visão de Fordham, é desenvolvimentista, pois esse é o núcleo de seu conceito de individuação, que diz respeito ao crescimento da personalidade.(ASTOR, 1995, p.36)
Essas considerações são importantes pois, a perspectiva ou tendência desenvolvimentista não representa uma ruptura com a obra do Jung, tão pouco é um movimento sectário. E, mesmo quando pensado como movimento dentro campo junguiano, este se possui um amplo espectro de possibilidades características como:
- Ênfase no desenvolvimento inicial da personalidade
- O papel do Self na constituição pessoal.
- Compreensão psicodinâmica do sofrimento psíquico.
- Um olhar atento à dinâmica do ego e dos processos defensivos.
- Análise da transferência-contratransferência.
- Diálogo com escolas da psicanálise.
- Diálogo com a neurociência.
Essas ênfases se sobressaltam na literatura junguiana desenvolvimentista, privilegiando a prática clínica, os processos psicodinãmicos, a compreensão dos processos de saúde-doença. Mas isso não significa uma negação ou rejeição à fenomenologia dos arquétipos, os estudos de mitologia e alquimia, esses estudos são importantes e complementam a compreensão clínica, contudo, não se perde o enfoque no processo analítico, o indivíduo sua história vem em primeiro lugar. A esse respeito, Astor, comenta:
Para mim, o estilo tradicional de análise junguiana tratou a mitologia quase como metapsicologia, buscando os mitos para ilustrar o comportamento. Fordham inverteu essa tradição e usou seu trabalho clínico com pessoas para iluminar nossos mitos contemporâneos. Ao inverter a situação, sem renunciar totalmente ao uso de mitos para elucidar o material clínico, ele não apenas prestou um grande serviço à análise junguiana, mas também forneceu uma base clínica para os próprios mitos, fundamentou-os e, assim, impedindo-os de flutuar como se fossem apenas fragmentos de uma análise à deriva em um mundo mágico. (ASTOR, 1995, p. 9)
Devemos considerar que quando falamos do desenvolvimento da personalidade damos atenção aos processos que envolvem o amadurecimento do ego, os complexos e suas relações com a consciência e o ego, assim como as relações de mediação do ego com a realidade interior e exterior – que poderia ser compreendido como relações com objetos internos e externos.
A diversidade Desenvolvimentista
Na obra “Jung e os Pós-junguianos”, Samuels toma como referência para falar da “escola desenvolvimentista” o trabalho desenvolvido por Michael Fordham e colaboradores da Society of Analytical Psychology(SAP) de Londres, pelo pioneirismo na prática da analise infantil, coerência e amplitude da obra que impactaram gerações de analistas. Contudo, como dito acima, o próprio Samuels apontou não é propriamente correto igualar ou identificar a perspectiva desenvolvimentista com a contribuição de Fordham e da SAP. Assim, podemos considerar o cenário desenvolvimentista por ao menos três caminhos:
- As contribuições de Fordham e da SAP
- As contribuições de autores independentes.
- As contribuições de Neumann
As contribuições de Fordham e da SAP
Michael Fordham (1905-1995) foi psiquiatra infantil e analista junguiano inglês,que iniciou sua prática com crianças em 1935, numa época que posição geral de Jung(que não atendia crianças) era que a criança seria como uma extensão da psique dos pais. Dentre os junguianos, Fordham foi o pioneiro na análise de crianças. A clinica infantil fez com que Fordham se aproximasse da obra de pioneiros da psicanálise de criança Melaine Klein e Donald W.Winnicott, que desenvolviam estudos e teorias naquele mesmo periodo. A ênfase do trabalho de Fordham estava na atividade do Self na infância e na pratica clínica.
Fordham frequentou a sociedade britânica de psicanálise, muitas de suas concepções se aproximavam principalmente com as de Melaine Klein, que fez que sua obra fosse idenificada como um híbrido “jung-kleiniano”. Sendo, inclusive, reconhecido pela Melaine Klein Trust como um autor associado à teoria das relações objetais de Melaine Klein.
Como um dos fundadores da Society of Analytical Psychology, Fordham influenciou a perspectiva e estudos sobre o desenvolvimento que incluía seminários de observação de bebês com suas mães. Astor comenta que
Um dos desenvolvimentos mais interessantes na análise infantil foi a criação de seminários sobre observação de bebês. Os analistas infantis em treinamento observam a interação de um bebê com sua mãe durante uma hora por semana, desde o nascimento até os dois anos de idade. Cada observação era anotada em detalhes, apresentada e discutida em um seminário conduzido por um analista infantil experiente. Essa era uma fonte rica de conhecimento e aumenta nossa compreensão não apenas das crianças, mas de pacientes de todas as idades. A observação infantil é particularmente útil para a compreensão do que Bion chamou de “elementos beta” (Bion, 1977) e do que Jung chamou de “processos psicóides”, que “pertencem à esfera do inconsciente como elementos incapazes de consciência” (Jung, 1954). (ASTOR, 1988, p.12)
A ênfase na clínica, na compreensão psicodinâmica e do desenvolvimento influenciou autores como Donald Kalsched, analista junguiano americano, que desenvolveu uma importante contribuição à teoria do trauma, pela psicologia junguiana; a Jean Knox, analista inglesa, que desenvolve aproximações da psicologia junguiana com a neurociência e teoria do apego; Marcus West que possui um trabalho importante na compreensão do transtorno borderline, dentre outros autores cuja obra busca a compreensão dos processos psicodinâmicos do sofrimento psíquico, assim como uma compreensão mais sistemática da técnica junguiana.
As contribuições de Autores independentes : hibridismo
A liberdade de pensamento é uma marca junguiana. O pensamento independente produz concepções hibridas trazendo importantes contribuições que diminuem as distâncias entre as tendências. Como exemplo dessas contribuições independentes podemos citar Mario Jacoby, com formação em Zurique, que aborda em vários de seus livros a perspectiva do desenvolvimento, diálogo com a psicanálise do Self de Kohut, com uma preocupação com a clínica e processos transferenciais, indicando uma tendência que seria desenvolvimentista mas sem uma relação com as teorias de Fordham e da escola de Londres.
Podemos citar também Nathan Schwartz-Salant, analista suiço, com formação em Zurique, apresenta uma aproximação com noções da psicanálise de Kohut e da teoria das relações objetais. Seus trabalhos em português (“Narcisismo e Transformação de Caráter”e “A personalidade limitrofe”), seu trabalho é de uma riqueza enorme, que aproxima tanto da vertente clássica quanto da arquetípica.
A importancia desses e de outros tantos autores que se comprometem com a verdade da psique, com a verdade do aprofundamento da compreensão sem se ater a um “identitarismo” ou partidarismo de escolas.
A contribuição de Erich Neumann
Erich Neumann foi de longe um dos alunos mais brilhantes de Jung que lamentavelmente veio a falecer precocemente em 1960, aos 55 anos, de câncer renal. Neumann não é “classificado” como “desenvolvimentista” segundo a visão de Samuels, mas o rótulo de “clássico” não faz justiça a sua contribuição criativa e inovadora, que desenvolveu uma forma independente de pensar, chegando a incomodar o círculo mais próximo de Jung – como foi o caso do livro “História da Origem da Consciência” cuja publicação na série “Studies from the C. G. Jung Institute” em 1949 foi rejeitada por outros discipulos de Jung.
De sua obra destacam-se três livros que abordam no desenvolvimento: “História e Origem da Consciência”, “A Grande Mãe” e “A Criança”. São três obras extremamente importantes e complementares na psicologia analítica. Nesses livros, com grande erudição, ele enfoca os estágios arquetípicos do desenvolvimento da consciência e da psique individual. Apesar de não ser baseado em experiência clínica, a teoria do Neumann desempenhou um papel importante de trazer uma alternativa à lacuna acerca do desenvolvimento infantil ao trabalho clássico.
Neumann deixou noções importantes contribuições para a psicologia junguiana como o eixo ego-Self – que foi desenvolvimento do Edinger e os dinamismos arquetípicos que foram trabalhados por Carlos Byington. Podemos citar Ceres Alves Araújo que publicou um livro “O processo de individuação no Autismo” trazendo o pensamento de Neumann para a contemporaneidade e prática.
Samuels faz uma colocação importante acerca da relação dos pensamentos de Neumann e Fordham
É possivel dizer que cada teoria é a metade de um todo. Em uma visão conjunta, os modelos de Fordham e de Neumann permitem que falemos de uma abordagem “junguiana” do desenvolvimento inicial, com importantes diferenças de opinião, que se expressam nas Escolas” (SAMUELS, 1989,p. 193)
Concluindo…
Acredito ser importante pensar a perspectiva desenvolvimentista como uma visão ampla, complementar que possibilita o amadurecimento da diagnóstico, a intervenção clínica e formação do psicoterapeuta, mas sem perder a concepção simbólica, o processo de individuação e transformação da personalidade.
A abertura ao dialogo tanto com outras escolas de psicoterapia, com a neurociência, e outras tendências junguianas fortelece o campo junguiano e o coloca como ator no campo das ciências. marca a perspectiva desevolvimentista. No Brasil, o campo junguiano é formado sobretudo por profissionais e grupos independentes cuja construção do conhecimento se na busca criativa pela compreensão da psique e dos processos que afetam os pacientes. Como perspectiva a compreensão desenvolvimentista visa em primeiro lugar o individuo, sua história e sofrimento e depois o cenário arquetípico, simbólico e o numinoso.
Referências
ASTOR, James, Introduction in SIDOLI, MARA; DAVIES, MIRANDA (Edited by), Jungian Child Psychotherapy, London: Karnac Books, 1988.
Astor, J. Michael Fordham: Innovations in Analytical Psychology. London: Routledge. , 1995
SAMUELS,Andrew. Jung e os Pós-junguianos, Rio de Janeiro: Imago, 1989.
SAMUELS, Andrew. Will the Post-Jungians Surive in CASEMENT, ANN (ed.). Post-Jungians Today: Key Papers in Contemporary Analytical Psychology. London & New York: Routledge, 1998.
Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)
Psicólogo Clínico Junguiano, Supervisor Clínico, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Especialista em Acupuntura Clássica Chinesa (IBEPA/FAISP). Formação em Hipnose Ericksoniana. Coordenador de Grupos de Estudos Junguianos. Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.
Contato: 27 – 99316-6985.
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