Em 2008, escrevi minha monografia de conclusão de curso na especialização em “Teoria e Prática Junguiana”, sob orientação da profa. Dra. Elizabeth Christina Cotta Mello, com o título “O Lugar da Persona”. Escolhi esse tema pelo desafio que seria pensar esse conceito visto que, no geral, é pouca a literatura Este texto é uma revisão daquela monografia, aproveitei aqui os capítulos centrais onde discuto aspectos da dinâmica da persona.
Para compreender ou ampliar o conceito de persona, acredito que devemos seu aspecto arquetípico, suas representações (míticas), sua interação na dinâmica psíquica.
A Persona
Jung chamou de persona o processo dinâmico de adaptação ao mundo das relações sócio-culturais. Para melhor compreender a escolha do termo latino persona, devemos recorrer a sua etimologia.
Na etimologia de Persona, temos
Persona, ae, f.Phoed. a máscara. Cic. a pessoa, a condição, o estado, a dignidade, o cargo de cada um. Ter. a Personagem que se representa no theatro.Cic. a pessoa, o individuo humano. Cic. a espécie, ou aparecia falsa de alguma cousa.(SOUZA, 1931, p.559)
Onde também encontramos
PERSONA, -ae, subs.f I – Sent. Próprio: 1) máscara (de teatro) (Cic. De Or. 2, 193). Daí, por extensão: 2) Papel (atribuído a essa máscara) (Cic. Phil. 2, 65). II – Sent. Figurado: 3) papel, cargo, função, caráter (Cíc. Pis. 71). 4) Individualidade, Personalidade, ator.(Cic. At. 15, 1a,2). 5) Pessoa Gramatical (Varr. L. Lat. 8,20). (FARIA, 1956, p.771)
No sentido próprio e original, persona era o nome dado a máscara utilizada pelos atores de teatro na antiguidade, acredita-se que o termo derivava de personare por onde passa o som (ou a voz humana). Contudo, desde a antiguidade o termo persona já era utilizado, como vimos, para indicar uma pessoa no exercício de seu papel social. Não tinha como função indicar o indivíduo em sua particularidade ou intimidade, mas sim em sua relação com os outros.
Devemos pensar também que máscara no teatro possuía uma dupla função: 1- expor ou tornar visível o papel ou personagem que se encena; 2 – ocultar o ator. Essa dupla função da máscara também pode ser observada em ritos religiosos onde se utilizam máscaras e trajes característicos para representar a presença da divindade, como p.ex. no Candomblé, onde a indumentária indica a presença do orixá e oculta a individualidade do adepto. Tanto nas religiões quanto no teatro, a máscara delimita o espaço entre o individuo e o coletivo, assim como nossa pele, a máscara separa o mundo exterior do mundo interior.
As máscaras presentes na cultura são expressões dessa estrutura psíquica que faz a ponte entre o “eu” e “mundo”. O termo Persona ou máscara é a imagem mais clara de representar esta dinâmica. Por isso, Jung utilizou essa imagem arquetípica, a máscara, para descrever esse fenômeno, que facilita a compreensão acerca do papel persona.
Nas definições do livro Tipos Psicológicos, Jung afirmou que,
A Persona é, pois, um complexo funcional que surgiu por razões de adaptação ou de necessária comodidade, mas que não é idêntico a individualidade. O complexo funcional da Persona diz respeito exclusivamente à relação com os objetos. (JUNG, 1991, p. 390)
Assim, experimentamos a persona na experiência pessoal como um complexo de adaptação, orientado pelas relações com objetos externos. Este complexo adaptativo se nutre das experiências provenientes da consciência coletiva. assim, a persona vai indicar um ideal social, o modo correto de ser e agir visando as exigências coletivas. Uma persona adequada vai aparentar uma totalidade psíquica, uma vez que o indivíduo é socialmente funcional, atendendo necessidades coletivas. Entretanto, o indivíduo acaba por perde contato com si mesmo, entrando numa atitude unilateral, isto é, direcionado para atender exclusivamente as demandas sociais sem dar o devido valor às exigências internas.
A persona é o complexo mais intimamente relacionado com o Ego, pois ambos estão relacionados com o processo natural de adaptação do indivíduo ao meio externo. Sobre as relações da persona com o ego discutiremos mais adiante.
O arquétipo de adaptação
No livro “A busca do Símbolo”, Whitmont, apresenta a Persona “[…] como uma imagem representacional do arquétipo de adaptação” (WHITMONT, 2002, p.140). Essa consideração é importante pois, a persona foi um termo utilizado por Jung por nos remeter a imagem da máscara do ator do teatro clássico, possibilitando que intuitivamente compreendamos sua dinâmica e sua relação com os papéis sociais que desempenhamos, contudo corremos o risco de cair num reducionismo reduzindo a persona a função de “máscara”. Assim, é fundamental termos clareza que subjacente a imagem da persona está a dinâmica arquetípica do processo de adaptação. Para compreendermos um arquétipo em sua amplitude devemos considera-los desde seus aspectos biológicos, isto é, seus processos fisiológicos básicos até seu aspecto psíquico e sua representação cultural e mítica.
Se formos pensar no âmbito fisiológico da adaptação notaremos que esta se relaciona com o processo natural de homeostase, que é a capacidade de um sistema complexo se autoregular e se manter estável. Desse processo de autorregulação natural, Jung observou que havia dinamismos distintos, identificando a persona aos processos relacionados a adaptação do organismo a realidade externa. Assim, num nível mais primitivo poderíamos pensar a persona associada aos mecanismos de controle homeostático da temperatura corporal (que visa adaptar o indivíduo ao meio onde se encontra), onde em ambientes quentes promove vasodilatação e transpiração para evitar o aquecimento excessivo do organismo, e, nos ambientes frios, atua através da vasoconstrição e dos calafrios para evitar e produzir calor.
Os processos vinculados a adaptação ao meio externo estão vinculados a pele, que é o órgão que protege e intermedia a relação de nosso organismo com meio externo. Fazendo uma ampliação, na natureza, podemos observar o processo de adaptação manifesto principalmente através da camuflagem e o mimetismo. No homem a evolução dividiu o processo de adaptação externa em duas vias: 1) adaptação ao meio externo; 2) adaptação ao meio cultural.
A adaptação ao meio externo deixou de ser um processo puramente fisiológico, passando a ser um processo determinado pela cultura. Quando nosso organismo percebe as mudanças de clima e temperatura, em geral, nossa resposta se relaciona a uma adequação das roupas que vestimos e, não, uma adaptação fisiológica no sentido estrito do termo.
Com o desenvolvimento da cultura, dos grupos e sociedades, surgiu também o processo de adaptação ao meio cultural, similar ao processo de adaptação ao meio externo, mas, baseado em símbolos e regras culturais. Tanto nas sociedades pré-industriais e/ou pré-letradas quanto em nossa sociedade contemporânea a pintura do corpo, tatuagens, escarificações, cortes de cabelo, roupas (rituais ou não) estão intimamente relacionados com os processos de adaptação cultural. E, estão relacionados diretamente com a pele.
A pele é um dos principais veículos do arquétipo de adaptação. Seja como recipiente das manifestações culturais desse arquétipo (indumentárias, pinturas, tatuagens) quanto manifestações inconscientes e compensatórias do processo de adaptação como enrubescimento, palidez, transpiração e as doenças psicossomáticas (que denunciam, muitas vezes, problemas de adaptação).
O arquétipo de adaptação é contém em si, a possibilidade basal de adaptação tanto meio externo através dos processos fisiológicos relacionados com a pele quanto a possibilidade de identificação das estruturas culturais e se adaptar as mesmas.
Representações Míticas do Arquétipo de adaptação
Ao estudar os resíduos arcaicos e dos delírios de pacientes psicóticos, Jung se deparou com a similaridade desses fenômenos com as narrativas míticas. Com o desenvolver de seus estudos e de sua teoria, Jung observou que a dinâmica dos arquétipos e a narrativa mítica eram complementares – como se os mitos fossem uma projeção cultural da dinâmica arquetípica. Tornou-se parte do método de Jung o estudo comparativo das dinâmicas arquetípicas e a mitologia. Por isso, torna-se importante pensarmos a persona em termos míticos.
Todo mito apresenta uma série de arquétipos interligados. Dessa forma, é necessário observarmos os elementos próprios de cada dinâmica arquetípica. No caso do arquétipo de adaptação, sua dinâmica está relacionada com a possibilidade de uma melhor relação com o meio, com a resposta mais adequada ou mesmo com a apresentação mais adequada.
Para exemplificar e discutir os aspectos míticos relacionados com o arquétipo de adaptação escolhemos elementos míticos de duas tradições distintas, a saber, tradição hindu e tradição grega.
Vishnu e seus avatares
Na mitologia hindu Vishnu era um dos principais deuses, ao lado de Brahman e Shiva. Vishnu
repousando em uma solidão que apesar de transmundana sustenta toda a história do mundo, assegurando-lhe a continuação e periodicamente descendo até o seu tumulto para, na qualidade de salvador e redentor, restabelecer a justiça e ordem. (ZIMMER,1988 p.163)
Vishnu, chamado de conservador dos mundos ou de o preservador, era a divindade mais próxima dos homens, tornado-se também uma das mais veneradas. Conta-se que sempre que uma era chega ao seu ponto extremo de corrupção ou que um grande mal ameaça os homens, Vishnu se corporificava para conduzir os homens a uma nova era de harmonia, livrando-os do mal e/ou evitando que o mundo fosse destruído por Shiva.
Para cumprir sua missão de proteger o mundo, Vishnu se corporificava através de avatares, que vem do Sânscrito avatara que significa aquele de descende de deus ou mesmo encarnação do deus.
A tradição hinduísta relata dez avatares de Visnhu que desde o inicio dos tempos salvava a humanidade. 1. Matsya,o peixe – que salvou os vedas ; 2. Kurma: a tartaruga; 3. Varaha: o Javali; 4. Narasimha: o homem-leão; 5. Vamana: o anão; 6.Parashurama: homem com o machado. 7. Rama: o protagonista do Ramáyana 8. Krishna: 9. Buddha;10. Kalki: o guerreiro que virá ao final desta era para restaurar a ordem e salvar a humanidade.
Cada avatar representa o papel ou função que Vishnu deveria assumir ou desempenhar para exercer seu papel de preservador. São Personagens que Vishnu criou para se adaptar a cada situação, resolvendo os problemas dentro seu próprio contexto. Os avatares de Vishnu representam sua adaptação a cada situação. Os avatares não eram “disfarces”, mas formas de revelar o poder de Vishnu e sua possibilidade de se adaptar e se adequar para lidar com as necessidades.
Zeus e suas metamorfoses
Na mitologia grega, Zeus é um dos principais deuses olímpicos, a divindade do céu e da luz. Os mitos gregos colocam Zeus como o rei dos deuses, após ele liderar seus irmãos na luta contra os titãs, divindades relacionadas com as forças primordiais. Contudo, como uma divindade do céu e, por conseqüência, dos fenômenos atmosféricos, é um deus da fertilidade.
Zeus é, antes do mais, um deus da “fertilidade”, é ómbrios e hyéticos, é chuvoso. É deus dos fenômenos atmosféricos, como já disse, por isso que dele depende a fecundidade da terra, enquanto khthónios. (…) Essa primeira característica primeira de Zeus explica várias de suas ligações com deusas de origem ctônia, como Europa Sêmele, Deméter e outras. Trata-se de uniões que refletem claramente hierogamias de um deus, senhor dos fenômenos celestes, com divindades telúricas. (BRANDÃO, 2000, p. 499)
Zeus uniu-se a deusas e mortais tendo muitos filhos. Para concretizar essas uniões, Zeus metamorfoseava-se para se aproximar e fecundar suas escolhidas. Das metamorfoses de Zeus podemos citar o Touro forma que seduziu Europa; para fecundar Dânae, ele assumiu a forma de uma chuva dourada; para seduzir Alcmena, Zeus assumiu a forma de seu marido Anfitrião; para seduzir Leda, transformou-se num cisne; Zeus assumiu a forma de Ártemis para seduzir Calisto; para seduzir Antíope, tornou-se um Sátiro e, para seduzir Ganimedes e leva-lo para o Olimpo, Zeus tornou-se uma águia. Através da mudança de forma, Zeus adaptava-se a cada situação podendo efetuar suas conquistas.
A metamorfose é uma habilidade que característica presente nas divindades e seres fantásticos tanto nos mitos e em contos de fadas. Algumas vezes, os deuses mudavam a forma de um homem para possibilitar que ele enfrentasse sua tarefa – se adaptando melhor a situação que se configurava a sua frente. Podemos citar como exemplo, quando Atena tornou Ulisses um velho, para que ele pudesse entrar em sua casa e verificar a situação e se preparar para enfrentar os pretendentes de sua esposa.
As metamorfoses comuns as mitologias ocidentais, assim como na Índia encontramos os avatares, são expressões da possibilidade divina de adaptação. Nem as metamorfoses, nem os avatares revelam a natureza da divindade, elas apenas indicam a forma mais apropriada para exercer a atividade que lhe era própria.
A Consciência Coletiva
Para que um arquétipo seja constelado, é necessário que existam elementos correspondentes no meio externo. Esses elementos devem fornecer ao arquétipo os parâmetros necessários para que ele se constele/manifeste através de imagens e símbolos – e não apenas como impulso instintivo.
De forma geral, esses parâmetros são oferecidos pela cultura. Apesar de Jung ter sido um atendo observador da dinâmica da psique coletiva de seu tempo[1], ele não se aprofundou teoricamente no âmbito da cultura enquanto fenômeno consciente, mas focou aquele aspecto intimamente relacionado com a esfera arquetípica, isto é, com os padrões arquetípicos que se manifestam em nossa realidade.
De forma geral, o conceito de consciência coletiva não é utilizado pelos autores junguianos. Em nossa revisão bibliográfica apenas Hall (2001) considerou a consciência coletiva como uma quarta instância da estrutura psíquica. Em outros autores, consciência coletiva era usado apenas como uma generalização da consciência pessoal.
Existem, pois, quatro níveis da psique:
1) Consciência pessoal, ou a percepção consciente ordinária;
2) o inconsciente pessoal, o que é exclusivo de uma Psique individual, mas não-consciente;
3) a Psique objetiva, ou inconsciente coletivo, que possui uma estrutura aparentemente universal na humanidade e
4) o mundo exterior da consciência coletiva, o mundo cultural dos valores e das formas compartilhadas. (HALL, 2001, p.14)
Na sociologia, o conceito de consciência coletiva foi amplamente trabalhado e difundido por Émile Durkheim(1857-1917), segundo o mesmo,
O conjunto de crenças e de sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade forma um sistema determinado que tem sua vida própria; pode-se chamá-lo de consciência coletiva ou consciência comum. Sem dúvida, ela não tem por substrato um único órgão; ela é, por definição, difusa em toda extensão da sociedade; mas não tem caracteres específicos que a tornem uma realidade distinta. Com efeito, ela independe das condições particulares em que se encontram os indivíduos; eles passam e ela permanece. É a mesma no Norte e no Sul, nas grandes e nas pequenas cidades, nas mais diferentes profissões. Da mesma forma, não muda a cada geração mas, ao contrário enlaça umas às outras as gerações sucessivas. Ela é portanto uma coisa inteiramente diferente das consciências particulares, ainda que não se realize senão nos indivíduos. Ela forma o tipo psíquico da sociedade, tipo que tem suas propriedades, suas condições de existência, seu modo de desenvolvimento, tal qual os tipos individuais, ainda que de uma outra maneira. (…) Existem em nós duas consciências: uma contém os estados que são pessoais a cada um de nós e que nos caracterizam, enquanto os estados que abrangem a outra são comuns a toda sociedade. A primeira só representa nossa Personalidade individual e a constitui; a segunda é do tipo coletivo e, por conseguinte, a sociedade sem a qual não existiria. Quando um dos elementos desta última é quem determina nossa conduta, não é em vista do nosso interesse pessoal que agimos, mas perseguimos fins coletivos. (DURKHEIM, 1990, p.74-76)
O conceito de “Consciência Coletiva” de Durkheim é importante, por um lado, por oferecer uma proposta para compreender fenômenos sociais (e culturais) e por outro, nos fornecer uma referencia para pensarmos a dinâmica psíquica coletiva – complementar a psique arquetípica.
O conceito de Consciência Coletiva nos oferece uma luz para compreendermos fenômenos que transcendem a esfera individual, nos permitindo pensar fenômenos como, por exemplo, a linguagem. Acredito que uma digressão poderia ser bastante útil. Para pensarmos a linguagem, em nosso contexto, devemos considerar que na concepção junguiana, a consciência pessoal é um processo contínuo de adaptação as exigências do meio, assim, esta consciência exigiria, basicamente, de energia suficiente para se manter funcional o estado de vigília. Devemos considerar também que uma das principiais características da consciência seria seu direcionamento focal, isto é, um foco de atenção e ação.
Todos os conteúdos que não estão no foco de percepção consciente poderiam ser considerados conteúdos conteúdo subliminares e/ou inconscientes. Deste modo, seríamos obrigados a considerar a linguagem como um conteúdo inconsciente, por estar fora do campo de atenção consciente. Pois, a todo o momento pensando que estamos falando em português (ou lendo em português), nós simplesmente falamos – somente quando nos deparamos com a realidade de outro idioma que tomamos consciência de nossa linguagem.
Podemos considerar que a linguagem operaria no âmbito limiar da consciência, e, por isso está relacionada aos processos inconscientes dos complexos ideoafetivos do inconsciente pessoal – como Jung comprovou em seus estudos de associação de palavras, contudo, a linguagem não pertence ao individuo – este teria um acervo de palavras que poderia compor seu repertório verbal, este sim, como uma aquisição pessoal, mas a linguagem estaria operando numa esfera coletiva, fora do inconsciente pessoal. Do mesmo modo, não perderíamos relacionar a linguagem com os processos do inconsciente coletivo, pois, como Jung preconizava o inconsciente coletivo é formado pelos arquétipos e instintos – elementos oriundos de uma herança filogenética.
O conceito de consciência coletiva é necessário para compreender uma gama de experiências coletivas, que assim como a linguagem não podem ser reduzidas ao inconsciente.
Se o conceito de inconsciente coletivo nos possibilita compreender o enraizamento do indivíduo na história humana, no processo de constituição do Homem, a consciência coletiva nos permite compreender o enraizamento do individuo no aqui e agora, no processo coletivo do grupo que o circunda, nos possibilitando compreender a sua constituição pessoal a partir das suas relações com meio social.
A Persona e a Dinâmica da Personalidade
A persona sempre vai indicar um ideal coletivo para individuo. Este ideal irá se associar com a imagem que um individuo tem de si mesmo ou como gostaria de ser visto pelos outros. Contudo, a Persona não é uma estrutura à parte ou dissociada da personalidade. Para compreendermos a dinâmica da persona devemos pensa-la em relação com as demais estruturas da personalidade.
Assim, abordaremos as relações da Persona com Ego, com a Sombra e a Anima e Animus e self.
A Persona e o Ego
A Persona é o complexo mais intimamente relacionado com o Ego, pois ambos estão relacionados com o processo natural de adaptação do indivíduo ao meio externo. A relação entre Persona e Ego deve ser compreendida em dois momentos, o primeiro na infância e posteriormente na vida adulta.
A persona possui um papel importante para auxiliar o desenvolvimento do Ego na infância. Por ser um complexo funcional relacionado à adaptação aos estímulos externos, a persona estabelece uma identidade com Ego, que é fundamental para a aderência do Ego à consciência e o mundo exterior. Pois, a persona agrega a si os papeis sociais, que vão localizar o individuo, inicialmente, na dinâmica familiar (filho, irmão, neto, sobrinho, primo) e fornecer os elementos primários de identidade, favorecendo a constelação do Ego, assim como sua vinculação à consciência.
Ao longo da infância, a persona continua a ser importante para o desenvolvimento do Ego, pois, ao fornecer os elementos de orientação social, propicia também uma economia de energia psíquica, que vai disponibilizar ao Ego energia para o uso da consciência, isto é, no exercício da vontade.
A persona intermedia as relações do Ego com os “objetos externos”. Tal como uma máscara, a persona expõe uma face ou papel para o mundo e oculta ou protege Ego. Essa função de, simultaneamente, expor e proteger o Ego nas relações com o mundo exterior é importante por auxiliar na estabilidade do Ego, evitando que as pressões e exigências do mundo exterior gerem ansiedade e risco de desestruturação.
O desenvolvimento inadequado da persona vai prejudicar tanto as formas como indivíduo percebe o mundo quanto a forma como ele é percebido. Essa relação entre a Persona e o Ego vai ser determinante no contexto da adaptação do Ego.
O desenvolvimento inadequado da persona pode ser prejudicial ao desenvolvimento do ego, nesse sentido Hall(2001) aponta três das formas de desenvolvimento inadequado,
Existem, entretanto, casos de funcionamento anômalo da Persona que exigem com freqüência uma intervenção psicoterapêutica. Três destacam-se: (1) desenvolvimento excessivo da Persona; (2) desenvolvimento inadequado da Persona; e (3) identificação com a Persona a tal ponto que o Ego se sente equivocadamente idêntico ao papel social primário.
O desenvolvimento excessivo da Persona pode produzir uma personalidade que preenche com precisão os papéis sociais, mas deixa a imprecisão de que não existe, “dentro”, uma pessoa real. O desenvolvimento insuficiente da Persona produz uma personalidade que é abertamente vulnerável à possibilidade de rejeição e dano, ou de ser arrebatada ou eliminada pelas pessoas com quem se relaciona. As formas usuais de psicoterapia individual ou de grupo são de grande ajuda nessas condições.
A identificação com a Persona é um problema que se reveste de maior gravidade, em que existe uma percepção insuficiente de que o Ego é separável do papel social é vivenciado como uma ameaça direta à integridade do próprio Ego. (HALL, 2001, p.24)
Essas três possibilidades afetam diretamente o Ego, o desenvolvimento excessivo e a identificação com a persona são relativamente próximas, pois, ambas indicam um funcionamento defensivo da persona. Geralmente ocorre na infância, onde uma situação onde a criança se sente vulnerável – seja por meio de abandono, agressão ou cobrança excessiva– e, desenvolve a persona como uma forma defensiva, envolvendo a personalidade de modo a apresentar uma estrutura funcional, socialmente adequada, mas, aparentemente vazia ou artificial. Isso, porque a defesa proporcionada pela persona oculta a identidade do ego, fazendo com que o mesmo responda de forma padronizada. Não só na aparência a vida da pessoa fica “vazia” é assim que ela se sente, incapaz de ser ela mesma.
Os analistas junguianos da escola desenvolvimentista identificaram essa formação da persona como similar ao que foi descrito pelo psicanalista inglês D.W. Winnicott como “falso self”, pois, indicam o mesmo processo. Como os junguianos não deram uma maior importância as teorizações acerca da persona, temos pouco material específico. Assim, a leitura acerca do falso self possibilita uma ampliação a compreensão da dinâmica defensiva da persona.
O desenvolvimento insuficiente da persona é uma situação muito delicada pois, não protege o ego das dificuldades impostas pelo meio exterior. Essa fragilidade pode gerar muita ansiedade e, em casos extremos, a de um surto psicótico. Nesses casos tanto o processo psicoterapêutico quanto o processo de ressocialização passariam pela reconstituição da persona.
A Persona e a Sombra
Para pensarmos a relação da Persona com a Sombra é importante que façamos uma distinção do funcionamento dessas estruturas na dinâmica arquetípica e da dinâmica pessoal. Abaixo segue uma citação do texto Sobre o conceito de Sombra, publicado em nosso site em 28 de junho de 2010.
Na esfera arquetípica, a persona está relacionada com a imagem idealizada de adaptação e adequação cultural. Deste modo, a persona arquetípica vai indicar o ideal de “homem perfeito”, contudo, sem a totalidade da experiência humana Assim, a persona vai refletir toda a “luz” da cultura e da razão coletiva. A persona, como veículo da cultura, da consciência e razão, vai estar associada à moral e aos mais altos valores culturais. Em culturas que valorizam a introspecção ou a busca espiritual, a persona arquetípica tende a se vincular ao “santo”, “profeta” ou “asceta” que abandona sua individualidade pelos valores e bens comuns. Em sociedades guerreiras seria o herói guerreiro que se sacrifica (como sacrifício da individualidade) em prol do grupo. Os modelos que regem uma cultura estão intimamente relacionados com a Persona, uma vez que esta é representa o “pacto social”, um ícone da cultura.
Por outro lado, a Sombra arquetípica é como um buraco negro que atrai tudo para a esfera dos instintos, visando a satisfação dos mesmos. Nesse aspecto, a Sombra é a radicalização do que somos enquanto espécie, de todos nossos instintos – em seus aspectos mais arcaicos. A natureza da Sombra é contrária e refratária a cultura, deste modo, as representações culturais da Sombra vão indicar algo perigoso, nocivo e que deve ser evitado. Esta incompatibilidade se deve ao fato da cultura se desenvolver a partir de um “sacrifício” da esfera instintual, isto é, da Sombra arquetípica. Podemos observar nos mitos de criação, onde os heróis ou deuses civilizadores matam monstros para ordenar o universo (como no caso de Marduk que mata sua avó, Tiamat e do combate de Zeus e Tifon), ou vencem os deuses primordiais (como no caso da guerra entre os deuses olímpicos e os titãs) ou a perda do paraíso eterno (no caso do mito judaico cristão). A Sombra representa o mal, a destrutividade ou negatividade quando observada pela ótica da cultura e da Persona. A Sombra arquetípica é o veículo e meio de manifestação dos instintos e a Persona arquetípica é veículo da cultura.
Na esfera pessoal, a Persona representa o pacto social. É um complexo que forma a partir de elementos coletivos associados a fatores individuais, mas com predominância dos elementos coletivos. Através da Persona o indivíduo se torna um ser social. Atua como uma referência coletiva para o Ego, isto é, um ideal de Ego que serve orientação para o Ego, mas, que aprisiona e impede o desenvolvimento do individuo, isto é, o processo de individuação.
Por outro lado, a Sombra pessoal, corresponde a historia do individuo organizada no inconsciente pessoal por meio dos complexos. Na Sombra, os complexos atuam como são testemunhas da história do indivíduo e fornecem ao Ego os elementos de históricos de identidade. A Sombra vai remeter o indivíduo às suas próprias experiências, ignorando as necessidades coletivas. (MORAES, 2010)
A Persona e a Sombra confrontam o Ego com a polaridade Coletiva e pessoal da existência.
A Persona e a Anima/Animus
Na dinâmica psíquica, tanto a persona quanto a Anima/Animus possuem a função relacional, isto é, a Persona vai intermediar a relação do Ego com o mundo externo e a Anima/Animus com o mundo interno. Desse modo, Anima/Animus e persona estabelecem entre si uma relação de oposição e compensação.
Na dinâmica psíquica, a Anima/Animus se constela à medida que a constelação da Persona, sua identificação com Ego, se configura. Isso ocorre, pois, com o desenvolvimento do Ego e sua adaptação à realidade se forma um hiato entre a consciência do Ego e a realidade do inconsciente.
Assim, na mesma proporção que o Ego vincula-se ao externo, por meio da Persona, a Anima/Animus vai se configurar e se projetar em objetos externos como forma de interagir com o Ego, levando-o a considerar o inconsciente por meio das projeções.
Desse modo, a Persona e a Anima/Animus foram um sistema compensatório, pois, quanto maior for a identificação entre o Ego e a Anima, maior será a inadequação na relação com as relações sociais e com as escolhas com o mundo externo. Do mesmo, quanto maior a identificação com do Ego a Persona, maior será os conflitos internos e a formação de símbolos (sintomas), na tentativa de equilibrar o sistema.
Jung (2001b) afirma que no processo de individuação é necessário que o Ego de diferencie tanto da Persona quanto da Anima/Animus. De modo, que o Ego possa interagir com tanto com o inconsciente quanto com o mundo da cultura de modo adequado.
A relação adequada do eixo Anima/Animus–Ego–Persona favorece o enraizamento do Ego no Si-mesmo, isto é, o eixo Ego-Self. Isso porque, o Ego passa a ter uma dimensão mais clara da realidade psíquica sem ser conduzindo pelas demandas sociais nem pelas projeções de complexos. Uma vez que integrados, a Persona e Anima, passam contribuir com a estruturação do Ego, possibilitando o relacionamento adequado com do Ego com o Self, isto é, com a totalidade psíquica – que envolve tanto o mundo interno quanto externo.
A Persona no Processo de Individuação
A Psique é um sistema, isto é, como um conjunto de estruturas/elementos que interagem entre si de forma mais ou menos harmônica. O sistema psíquico é representado pelo arquétipo do Self.
O Self é um conceito que abarca a organização e dinâmica psíquica. Todos os padrões de organização psíquica (tanto pessoais quanto coletivos) expressam aspectos de realidade do Self. Quando nos referimos aos arquétipos ou complexos, estamos falando do Self ou da totalidade psíquica que, por meio de um processo de “auto-clivagem”, que Fordham denominou deintegração, se manifesta por meio de aspectos parciais – deintegrados – que são constelados de acordo com a necessidade da vida do individuo. Cada um desses aspectos ou deintegrados possuem autonomia e uma dinâmica característica, que secompensam e se equilibram mutuamente. No processo de individuação, esses deintegrados são reintegrados constelando o Self.
Desde modo, cada elemento da estrutura psíquica vai revelar uma face do Self, assim, a compreensão de que toda estrutura psíquica é uma manifestação parcial do Self, nos permite compreender que todos os elementos psíquicos são aspectos funcionais do Self e estão relacionados com todas estruturas que formam a realidade psíquica.
A Persona também é um aspecto parcial e que expressa o Self. A persona exprime a função adaptativa do Self, mas, essa função não deve ser compreendida como reativa ao meio, pois, através da Persona o individuo se manifesta e interage com o mundo.
Marie-Louise Von Franz discutindo a relação do Ego e o Self, faz uma interessante comparação, ela afirma que “[…] o ego é como o olho do Simesmo, somente ele é capaz de ver e vivenciar como o Si-mesmo nasceu” (1999, p.232). Aproveitando essa interessante comparação, poderíamos dizer que se o Ego é a olho do Self, a persona seria a boca – poderíamos, inclusive, nos relembrar a origem etimológica, onde Persona vem de per sonare, isto é, por onde o som passa ou por onde a voz passa como um indicativo da máscara do ator clássico. Assim, persona indica o modo como o Self se expressa nas relações sociais e com o meio.
O processo de individuação é o processo no qual o individuo “se torna quem se é”, isto é, constela o Self, por meio do processo de reintegração dos aspectos parciais, que vão constelar o Self. Apesar desse processo atingir seu clímax na crise da meia idade, ele se desenrola durante toda a vida.
A primeira metade da vida é marcada pelo processo de constelação dos arquétipos funcionais na experiência pessoal do individuo. A Persona assume um papel importante na constelação do Ego, em sua manutenção como centro organizador da consciência.
Ao longo da vida, a função da Persona é intermediar a relação Eu-Outro, como uma ponte indicando a forma mais adequada do Ego se relacionar com a meio externo. Contudo, quando Ego assume uma atitude neurótica, a persona pode também se dissociar, impondo ao Ego uma dinâmica estritamente pautada na dinâmica social. Por outro lado, devemos considerar que sempre que um complexo é constelado, é ativado seu elemento correspondente tanto no Ego quanto na Persona. Por exemplo, um complexo materno constelado, vai ativar o elemento de identidade “filho” no Ego e o padrão de comportamento adequado a identidade de “filho” na Persona.
Desse modo, é importante compreendermos a persona está relacionada com todo o sistema psíquico. Da mesma forma que toda ação ou atitude da consciência vai provocar uma reação inconsciente, toda dinâmica e manifestação do inconsciente vai provocar uma mudança na consciência e na forma como o individuo vai se relacionar com o mundo exterior, isto implica necessariamente em mudanças na dinâmica da Persona.
No processo de individuação, a assimilação da Persona significa, antes de tudo, uma reorganização da relação com o mundo. Assim, a reintegração da Persona faz com que ela assuma sua função natural de fornecer ao Ego os padrões sociais de comportamento, de modo a servir à dinâmica do eixo Ego-Self, e não apenas a ser um a voz da coletividade no individuo.
Palavras finais
O objetivo deste texto foi contribuir com a ampliação acerca do conceito de persona, tenho plena certeza que ainda há vários aspectos a serem explorados no que concerne a persona.
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SOUZA, Francisco Antonio de, Novo Diccionario Latino-Portuguez, Paris: Librarie Aillaud, 6ªed. 1931.
WHITMONT, Edward C., A Busca do Símbolo, São Paulo: Cultrix 5e. 2002
ZIMMER, Heinrich, A Conquista Psicológica do Mal, São Paulo: Palas Athena, 1988.
[1] Cf. McGuire, W., e R. F. C. Hull, C.G. Jung: Entrevistas e Encontros; Ed. Cultrix,São Paulo, 1982.
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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)
Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos” Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.
Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes
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