Scrooge e os Espíritos do Natal : Sintomas, Símbolos e Processo de Individuação

(20 de dezembro de 2011)

No natal de 1843,  Charles Dickens publicou um pequeno conto que se tornou um dos maiores ícones da literatura natalina. Este conto tinha como titulo “A Christmass Carol” cuja tradução mais precisa seria “Um canto(ou cântico) de Natal”, mas, é conhecido como “Um conto de Natal” ou “Uma aventura de Natal”. Passados 168 anos de sua publicação, este conto recebeu adaptações para o cinema (“Um conto de Natal” (1938), “Os fantasmas Contra-atacam” 1988 e “Os fantasmas de Scrooge” 2009) e com animações como “O conto de Natal de Mickey”(1983), Barbie uma canção de Natal(2008) . Vale lembrar que o próprio “tio Patinhas”, em inglês “Uncle Scrooge”, foi inspirado no personagem de Charles Dickens.

Antes de comentarmos o conto, iremos relembrar-lo. Para tanto, eu usei uma versão digital do conto de Dickens, intitulado de “uma aventura de Natal”. Como nesta versão digital não há paginação correta para impressão citarei apenas o texto, sem referências. Caso você tenha interesse em ler o conto clique aqui . Para Ilustrar, usarei imagens do filme “Um conto de Natal” de 1938.

Breve Resumo de Um cântico de Natal

(CONTÉM SPOILERS: Se você não conhecer o conto ou quiser ver um desses filmes, leia ou assista antes, pois neste post contaremos o enredo e o final! Caso você lembre da narrativa pode pular esta parte.)

(Em negrito citação do texto digital)

Em Londres do século XIX, havia um homem chamado Ebenezer Scrooge,“Ora, Scrooge era um nome bastante conhecido na Bolsa, e sua assinatura era um documento valioso, onde quer que ele a colocasse.” Sua casa comercial se chamava Scrooge&Marley. Apesar do sócio de Scrooge, Jacob Marley, ter falecido há 7 anos, Scrooge nunca mudou o nome da firma. Fazia exatamente 7 anos que ele havia morrido, justamente numa véspera de natal.

Scrooge era um homem solitário e avarento. Que detestava todo e qualquer desperdício. E era assim que ele considerava o Natal. Desperdício de tempo e dinheiro.

No geral, Scrooge só tinha por perto seu fiel funcionário Bob Cratchit, um homem simples, dedicado, que suportava trabalhar nas mais miseráveis condições que Scrooge impunha. Era casado e tinha vários filhos dentre eles “Tinzinho”.

“Pobre Tinzinho! Trazia umas muletinhas, e suas
pernas eram sustentadas por um aparelho de metal.”

Nesta véspera de Natal, como fazia de hábito, o sobrinho de Scrooge, Fred, veio a sua loja para convidado-lo para comemorar o Natal com sua família. Isso irritou Scrooge, que via no Natal uma grande besteira. Apesar disso, Fred, um homem alegre, otimista, não se abalou com a posição do tio.

Nessa mesma tarde, Scrooge recebeu a visita de um homem que pedia doações para os necessitados. Scrooge não lhe deu ouvidos, dizendo que não daria nada. Pois, nada tinha a ver com isso, os necessitados que fossem para a prisão ou asilos.

Nessa noite, Scrooge recebe uma estranha visita. Era seu antigo sócio que havia falecido 7 anos antes. Marley tinha preso a si correntes e nessas correntes estavam livros e cadernos, iguais aos que usava quando trabalhava. Marley contou a Scrooge, que ele estava condenado a arrastar aquelas correntes devido a vida que ele viveu. Mas, ele disse que para Scrooge ainda haveria uma chance, pois, naquela noite ele seria visitado por 3 espíritos do Natal.

O primeiro espirito se apresentou a Scrooge, conforme havia sido dito por Marley. O primeiro Espírito se apresentou como o Espirito dos Natais passados. Ele levaria Scrooge visitar alguns locais.

Primeiro, o espírito o levou ao colégio interno onde estudava e, onde passava os feriados e o natal sozinho.

Depois, levou ao ano em que sua irmã levou a noticia que ele não passaria o natal sozinho mais. Com essa visão, o espirito lembrou a Scrooge de sua querida irmã, que morreu cedo. Deixando apenas seu único sobrinho, Fred, deixou-o constrangido.

O espirito passou por cenas de sua juventude, até leva-lo a ver sua ex-noiva, a quem perdeu por ter se deixado levar pelo dinheiro. O espirito o levou a ver sua antiga amada, que se casou e teve filhos com outro homem, enquanto Scrooge vivia em função do dinheiro.

Após, a visita ao passado, apareceu em seu quarto o segundo espirito, o Espirito do Natal Presente, que o levou para passear (invisível) pela cidade.

A primeira parada foi na casa de Bob Cratchit, onde ele pode ver a família e a modesta ceia de natal de seu fiel funcionário. Toma conhecimento do problema do “Tinzinho”, filho de Bob, que tinha problemas de saúde e deficiência física.

Muito surpreendeu Scrooge quando no momento de levantar o brinde.

Subitamente, ergueu os olhos ao ouvir pronunciar seu nome.
– À saúde do senhor Scrooge! dizia Bob. A saúde de meu patrão, graças ao qual estamos hoje em festa! (…)

É preciso, de fato, que seja dia de Natal, replicou a mulher, para que se beba à saúde de um homem tão detestável, ladrão, cruel e sem coração como o senhor Scrooge. (…)- Se eu beber à saúde dele; será só por você e por ser dia de Natal, mas não por ele mesmo.

Em seguida, o Espirito o levou a casa de seu sobrinho Fred, que bebia, jogava e se divertia com a família. Quando veio o assunto do encontro de entre ele e Scrooge. Ele dizia, que seu propósito seria todos os anos convidar o tio para jantar com eles. Por fim, após muita conversa, Fred, levanta o brinde.

Assim, pois, à saúde do tio Scrooge!
– ótimo! A saúde do tio Scrooge!exclamaram todos.
– Um feliz Natal e um feliz ano novo a este querido cavalheiro! exclamou o sobrinho de Scrooge. Que este voto, que ele não aceitará de mim, possa ser para ele o portador de mil felicidades! Portanto, à saúde do tio Scrooge!

Após visitar seu sobrinho, Scrooge foi levado para casa, onde Scrooge aguardou a terceira visita. O terceiro espirito era uma figura sombria, encapuzada, não falava, apenas apontava o caminho. Era o espirito dos natais futuros. O espirito o levou pelas ruas da cidade, até a bolsa, onde ouviu conhecidos conversando sobre alguém que havia falecido, mas, que ninguém tinha interesse em ir ao velório.Posteriormente, o levou a uma cabana, onde pessoas falavam de um morto, do qual haviam saqueado seus bens. Scrooge foi levado ate o quarto onde estava o morto do qual falavam, mas, ele não teve coragem de levantar os lençóis que o cobriram Scrooge pediu para que o espirito o levasse para algum lugar onde alguém tivesse alguma emoção pelo morto, o espirito o levou a um casal que tinha dívidas com o  morto, a emoção que ele viu foi de alegria, pois, o falecido era um credor impiedoso. Scrooge pediu que o levasse a um lugar onde houvesse uma expressão de doçura pelo morto. Ele foi levado por ruas conhecidas até a casa dos Cratchts, lá seu fiel empregado, ainda se lamentava por ter perdido também seu filho, o “Tinzinho”. Por fim, vendo que a hora avançava, Scrooge pede que o espirito revele quem era o morto. O espirito o leva até o cemitério e, entre os túmulos, numa lápide abandonada ele vê o seu próprio nome: Ebenezer Scrooge. Ele fica desesperado, pergunta se ainda há uma chance de mudar o futuro, mas, quando se deu por si, já estava no em seu quarto.

Ao verificar que estava no seu quarto, e perceber  e ainda tinha tempo afirmou:

Quero viver no passado, no presente e no futuro, repetiu Scrooge, saltando do leito. A lembrança dos três espíritos virá em meu auxílio para tanto.

Ao amanhecer no Natal, Scrooge se levantou tratou de começar a mudar sua vida, a partir das revelações dos espíritos do Natal. Agradecido por ter ainda chance viver, passou a ser simpático com as pessoas, mandou entregar um peru, para ao almoço de natal da família de Cratchit, ao encontrar o homens q lhe solicitaram uma doação, reviu sua posição e fez uma doação que assustou aos homens. Em seguida, se dirigiu a casa de seu sobrinho Fred, assustando a todos com sua presença, mas, ele aproveitou cada momento, desse dia de Natal. No dia seguinte, no trabalho, aumentou o salario de Bob Crachit, de quem se tornou não só um bom patrão, mas, um bom amigo.

Scrooge cumpriu a palavra, e ainda foi muito além. Fez tudo quanto havia resolvido fazer e ainda fez mais. Com referência ao pequeno Tini – que não morreu –, Scrooge foi para ele verdadeiramente um segundo pai. Em breve, tinha-se tornado o melhor amigo, o melhor patrão, o melhor homem que jamais se encontrou em nossa velha cidade ou em qualquer outra velha cidade.(…) Seu coração estava alegre e feliz, e isso lhe a bastava. Ele não teve relações com os espíritos, mas manteve a melhor das relações com seus semelhantes, e diziam mesmo que não havia nenhuma pessoa que festejasse com mais entusiasmo as festas de Natal”

Sintomas, Símbolos e Processo de individuação

Apesar de já ter visto os filmes, conhecer a história, ler o texto do Charles Dickens foi profundamente emocionante para mim. O texto de Dickens é atemporal, pois, fala da realidade da alma. Por isso, eu gostaria de ressaltar que o nosso objetivo não é analisar o texto, mas, nos analisar pelo texto. O texto permite que possamos olhar a nossa própria realidade e perceber o Scrooge que existe em cada um de nós. Todo texto ou material arquetípico nos serve como espelho para percebermos nossa própria existência.

E o que seria Scrooge em nossa vida? Seria um desenvolvimento unilateral da consciência. Isto é, é quando a consciência e as funções do Ego se identificam com um certo grupo de valores negligenciando os demais aspectos da totalidade da experiência psíquica. Esse fenômeno poderia ser explicado como “alguém que acredita ser apenas aquilo que gostaria de saber a respeito de si mesmo” (JUNG, 2000a, p. 145).

No caso do Scrooge, no conto de Dickens, ele se identificou com sua avareza, com o ganho de dinheiro, acreditando que não era nada mais que isso. Aparentemente, isso lhe era suficiente. Scrooge, em sua avareza, vivia como se numa ilha de solidão e conforto. Sim, conforto, afinal, era a realidade que ele se permitia viver e acreditava que era a única realidade que ele possuía. Devemos, entretanto, tomar cuidado de não identificar a unilateralidade com aspectos como “avareza” ou “dedicação excessivamente ao trabalho”, qualificando-a com o que a cultura classifica como negativo. Devemos compreender que toda identificação da consciência que negue a totalidade da vida é negativa. Mesmo que possamos associar com coisas positivas, p. ex., um pai que se dedica a todas atividades de sua igreja, colocando-a acima de sua vida familiar pode provocar a mesma situação de unilateralidade descrita acima.

A unilateralidade pode também ser compreendida como um desequilíbrio na dinâmica psíquica ou mesmo um entrave ao desenvolvimento do individuo. Esse desequilíbrio vai gerar no inconsciente uma tentativa reequilibrar o sistema. Essa tentativa de “chamar atenção da consciência” é expressa por meio de símbolos.

Segundo Jung,

“chamamos de símbolo um conceito, uma figura ou um nome que nos podem ser conhecidos em si, mas cujo conteúdo, emprego ou serventia são específicos ou estranhos, indicando um sentido oculto, obscuro e desconhecido.” (JUNG, 2000b, p.189)

Os símbolos possuem um significado desconhecido ou obscuro porque emergem do inconsciente, não são uma criação da consciência. Os símbolos se manifestam como uma tentativa de redirecionar ou modificar a atitude da consciência,  são “tentativas naturais de lançar uma ponte sobre o abismo muitas vezes profundo entre os opostos, e de equilibrar as diferenças que se manifestam na natureza contraditória de muitos símbolos.”(JUNG, 2000b, 259).O símbolo constitui um terceiro elemento, distinto da consciência e do inconsciente, de modo a tentar unificar essas duas instâncias. É importante compreendermos que o que chamamos de símbolo engloba praticamente todas as manifestações do inconsciente, tais como sonhos, atos falhos, chistes, sintomas. Por serem “naturais” isto é, por fazerem parte da organização psíquica natural do homem, os símbolos são compreendidos como uma expressão saudável da psique, mesmo que em sua manifestação possa gerar sofrimento ao Ego.

Geralmente falamos de sintomas quando nos referimos a uma determinada manifestação psíquica que perturba a consciência, indicando assim, uma neurose. De forma geral, Jung compreendia a neurose como um desequilíbrio, uma divisão na psique ocasionada principalmente pela atitude unilateral da consciência.

No caso a história os símbolos que indicam a dissociação de Scrooge são: fantasma de Marley e os  três espíritos do Natal. Apesar do fantasma de Marley ocupar um local secundário na narrativa, ele anuncia a unilateralidade e adverte acerca das consequências dos atos de Scrooge. Do mesmo modo, em nossa vida cotidiana temos “avisos” acerca de nossa unilateralidade, eles podem ser expressos por sonhos, “brincadeiras” de amigos e colegas sobre nossas atitudes, distanciamento de amizades. Muitas vezes, esses elementos anunciam a necessidade de mudança, e quando esses avisos são percebidos evita-se um mal maior.  Sendo mais específico na narrativa de Dickens, Marley anuncia o encontro com os espíritos. Em nossas vidas, esse anuncio já um fim de relacionamento(divórcio), perda do emprego, que antecedem a crise e/ou a explosão dos sintomas.  Muitas vezes não nos damos conta da vida que levamos até essa “primeira explosão” e identificamos como o “surgimento da neurose” nesse momento, não percebendo de todo o percurso anterior.

É nesse momento que os sintomas aparecem. No caso de Scrooge ele foi visitado por três espíritos do Natal.  Me chama profundamente atenção um dado importante, a data. O natal traz implícita a imagem do nascimento de Cristo, e, este nascimento, nos traz a imagem de um renascimento,  como o próprio Cristo afirmou “Necessário vos é nascer de novo.” (Jo. 3.7). Esse novo nascimento é o tema do conto de Dickens e reflete o processo de autorregulação psíquica, que produz  o que chamamos de neurose.

Na história de Scrooge, os espíritos de Natal indica três tempos: passado, presente e futuro. Vejamos, o que Jung fala acerca da neurose (ou dos sintomas neuróticos), no texto “A Situação Atual da Psicoterapia”

Na neurose encontra-se nosso maior amigo ou inimigo. Não se pode apreciá-lo o suficiente, a não ser que, por força do destino, alguém tenha uma atitude hostil perante a vida. (…)

O simbolismo neurótico é ambíguo; aponta ao mesmo tempo para trás e para frente, para cima e para baixo. Em geral, o para frente é mais importante do que o para trás, porque o futuro vem e o passado se vai. (…)O doente não deve aprender como se livrar da neurose, mas como suporta-la. A doença não é um peso supérfluo e, portanto, sem sentido, mas é ele mesmo; ele mesmo como o “outro” que, por comodismo infantil, por medo ou por outra razão qualquer, sempre procurou excluir. Desse modo, como afirma acertadamente FREUD,  fazemos do eu um “lugar de ansiedade”, o que nunca aconteceria se não nos defendêssemos neuroticamente contra nós mesmos. (…)

Não se deveria procurar saber como liquidar uma neurose, mas informar-se sobre o que ela significa, o que ela ensina, qual sua finalidade e sentido. Deveríamos aprender a ser-lhe gratos, caso contrário teremos um desencontro com ela e teremos perdido a oportunidade de conhecer quem realmente somos. Uma neurose estará realmente “liquidada” quando tiver liquidado a falsa atitude do eu.  Não é ela que é curada, mas ela que nos cura. (JUNG, 2000c, p.160-1) (grifos do autor)

Nesse contexto que eu sugiro que podemos pensar nos “espíritos do natal” sob a ótica dos sintomas. No texto de Dickens passa cena que Scrooge presenciou tanto no passado, presente e no futuro lhe causou profundo pesar. Cada cena lhe causava sofrimento, era angustiante ver a vida que não viveu, a vida não vivia e a impossibilidade futura. Isto, além de ver a responsabilidades por seus atos – ou pelos atos que deixou de realizar. Para Scrooge, a experiência com os espíritos correspondeu ao que Jung afirmou ser “a oportunidade de conhecer quem realmente somos.”

Os espíritos mostraram a Scrooge o que ele realmente era: com todo seu dinheiro, ele não passava pessoa pobre, solitária e miserável. Assim são nossos sintomas lançam diante de nossos olhos nossa vida, a vida que rejeitamos. Nossos medos, nossos inconfessos desejos (como nos fala Carlos Drummond de Andrade) que nos corroem a alma. Isso ocorre por necessidade psíquica. A unilateralidade patológica da consciência é uma violência contra o próprio individuo, pois, se não tratada pode significar a amputação de possibilidades de desenvolvimento e vida do individuo. A neurose é a psique gritando por socorro.

Na verdade, a neurose contém a psique da pessoa ou, ao menos, parte muito importante dela. (…) pois, na neurose está um pedaço ainda não desenvolvido da personalidade, parte precisa da psique sem a qual o homem está condenado a resignação, amargura e outras coisas hostis a vida. (JUNG, 2000c, p. 158)

Devemos observar que os sintomas de Scrooge, o levaram a considerar e desenvolver sua vida. Abrindo-o para a possibilidade que já havia em si mesmo. Os espíritos não sugeriram que fizesse nada, apenas, o confrontaram com sua própria vida. E, vendo a si mesmo, ele pode fazer novas escolhas.É como  Jung afirmou “Só aquilo que somos realmente tem o poder de curar-nos.” (Jung, 2001, p.54)

Assim, o sintoma é sempre uma tentativa de cura. Isto é, uma tentativa de modificação da postura, atitude ou unilateralidade excessiva, que se apresenta ao individuo como algo estranho a si mesmo. Sim, e é estranho, pois, o individuo já não se reconhece em sua própria vida. O símbolo/sintoma visa unificar, trazer o individuo ao dialogo, a negociação com sua própria realidade.

Esse processo de unificação, em tornar o individuo umindividuum em termos psicológicos, é o que Jung denominou processo de individuação. 

Individuação significa tornar-se um ser único, na medida em que por “individualidade” entendermos nossa singularidade mais íntima, última e incomparável, significando também que nos tornamos o nosso próprio si-mesmo.Podemos pois traduzir “individuação” como “tornar-se si-mesmo” (Verselbstung) ou “o realizar-se do si-mesmo” (Selbstverwirklichung) (…)

A individuação, no entanto, significa precisamente a realização melhor e mais completa das qualidades coletivas do ser humano; é a consideração adequada e não o esquecimento das peculiaridades individuais, o fator determinante de um melhor rendimento social. A singularidade de um indivíduo não deve ser compreendida como uma estranheza de sua substância ou de suas componentes, mas sim como uma combinação única, ou como uma diferenciação gradual de funções e faculdades que em si mesmas são universais. (…) A individuação, portanto, só pode significar um processo de desenvolvimento psicológico que faculte a realização das qualidades individuais dadas; em outras palavras, é um processo mediante o qual um homem se torna o ser único que de fato é. Com isto, não se torna “egoísta”, no sentido usual da palavra, mas procura realizar a peculiaridade do seu ser e isto, como dissemos, é totalmente diferente do egoísmo ou do individualismo. (JUNG, 2001, p. 49-50)

Assim, o processo de individuação é um processo natural, isto é, uma tendência natural da psique que visa o desenvolvimento individual e coletivo. Esta pode ser percebida no principio de Centroversão defendida por Neumann no processo de integração do  Ego, assim, como na Função Transcendente que visa unificar os opostos (consciente e inconsciente) formando um individuum.

No caso de Scrooge, o confronto com si mesmo, por meio das imagens dos espiritos do natal produziram uma atitude integradora, como ele afirma “Quero viver no passado, no presente e no futuro, repetiu Scrooge, saltando do leito. A lembrança dos três espíritos virá em meu auxílio para tanto.”  Viver a experiência do passado, presente e futuro significa viver a vida de forma integra, viver a existencia na plenitude do momento. Como o texto nos diz,

Em breve, tinha-se tornado o melhor amigo, o melhor patrão, o melhor homem que jamais se encontrou em nossa velha cidade ou em qualquer outra velha cidade, aldeia ou povoação do nosso velho mundo.

Alguns riram da mudança operada nele, mas ele os deixou rir e não se incomodou. Scrooge era bastante inteligente para compreender que nada de bom se passa em nosso planeta que não comece por provocar a hilaridade de certas pessoas. E como estas pessoas são destinadas a continuarem cegas, a Scrooge tanto fazia que elas manifestassem seus sentimentos por uma gargalhada ou por uma careta.  Seu coração estava alegre e feliz, e isso lhe a bastava.

A consideração adequada da realidade interior e exterior, isto é, das necessidades reais possibilitam que o individuo seja realmente uma “pessoa melhor”. Isso não significa que ela seja compreendida por todos, como o texto nos diz, alguns apenas acharam que ele enlouquera. Entretanto, o mais importante era viver a vida, fazer o necessário. De modo que ele pudesse se sentir inteiro, como o coração alegre e feliz. Isso não significa que deixou de ter problemas, mas, que ele os enfrentou considerando a totalidade de seu ser. Com a mudança da atitude da consciência, os sintomas não são mais necessários.

Ele não teve relações com os espíritos, mas manteve a melhor das relações com seus semelhantes, e diziam mesmo que não havia nenhuma pessoa que festejasse com mais entusiasmo as festas de Natal”

Não ter relações com os espiritos significa que eles não eram mais necessários. O natal era festejado como um simbolo vivo, um marco de reinicio. Não apenas uma data fixa, mas, um simbolo que seria vivido todos dos dias do ano, e todos os dias que de sua vida.

Olhando através do conto de Charles Dickens podemos ver a nossa realidade. Seja pelos sintomas, sonhos, eventos sincronisticos a psique sempre nos impele ao desenvolvimento, a uma consideração mais adequada de nossa vida interior e exterior. O processo de individuação não é sobrenatural ou mistico, é uma possibilidade concreta que se coloca diante de nós a cada escolha que fazemos. A busca pela integridade da alma deve ser uma constante.

Como esse post, é um post natalino, espero que todos possamos ouvir os espiritos do natal que atuam em nossas vidas. Que possamos compreender que no Scrooge que muitas vezes nos tornamos há uma possibilidade de vida vibrante. E que o Natal, data simbolizada pelo nascimento de Cristo, possa também nos inspirar a um novo nascimento.

Referências bibliográficas

JUNG, C.G. Natureza da Psique, Vozes:Petrópolis, 2000a.

JUNG, C.G. A vida Simbólica, Vozes: Petrópolis, 2000b

JUNG, C.G.  Civilização em Transição, Vozes:Petrópolis, 2000c.

JUNG, C.G. O Eu e o Inconsciente, Vozes: Petrópolis,2001.

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

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LIVRO: “A Voz e o Tempo–Reflexões para Jovens Terapeutas”- de Roberto Gambini

(24 de novembro de 2011)

Em 2008, o analista junguiano Roberto Gambini publicou pela Ateliê Editorial, o livro “A Voz e o Tempo – Reflexões para jovens Terapeutas”. Este belíssimo livro ganhou o prêmio Jabuti de 2009 na categoria “Psicologia e Psicanálise”.

Este livro marcou a comemoração de 30 anos de Roberto Gambini como analista junguiano. Com uma generosidade infinita ele nos presenteou com uma jóia de valor incalculável , ele compartilhou de sua história e sua vivência como terapeuta.

Apesar de não ter o objetivo de ser teórico ou mesmo escrever um manual de psicoterapia, Gambini expõe delicadamente o que chamamos de processo de individuação mesmo sem se referir diretamente a esta conceito junguiano.

A partir de suas experiências pessoais, desde sua graduação e pós-graduação em ciências sociais, sua atividade docente até chegar ao Instituto C.G.Jung em Zurique.  Três pontos se destacam em sua obra, são eles: a identidade Junguiana; o papel dos sonhos na terapia e a questão da transferência.

Em suas páginas, Gambini demonstra sua preocupação sobre os caminhos que a psicologia junguiana vem tomando, muitas vezes, perdendo suas características. vejamos algumas de suas falas:

A Psicologia Junguiana tem uma marca de origem, que é o paradoxo de ser uma psicologia dificil de ser transmitida. Se você sistematiza demais a Psicologia Junguiana, trai o espirito do Jung; mas se não sistematiza, você não a difunde. É a marca de origem. Não há como fugir disso. Vejam, o que está acontecendo hoje pelo mundo afora é que a Psicologia Junguiana está perdendo as suas características de origem, está se deformando. Grandes traços, grandes qualidades que ela teve estão desaparecendo. (…)(p.40)

A meu ver, o desafio da Psicologia Analítica é honrar sua marca de origem. Ninguém foge da história de sua concepção, porque é isso que nos constitui. A Psicologia Analítica foi forjada da maneira como foi, como um modo de pensar contra a corrente, e sempre foi assim. A força da Psicologia Analítica não é ter cinqüenta mil adeptos, sua força é sua profundidade. (…)(p.44)

Ser Junguiano não significa ser devoto, nem defensor acrítico, nem fechado a outras linhas, mas, por outro lado, também não implica em abandonar certas idéias apenas por serem difíceis de compreender, ou por se achar que a psicologia junguiana por si não seja suficiente para embasar uma identidade intelectual ou terapêutica. Defendo a idéia de que a Psicologia Junguiana estabelece um estilo bastante diferenciado de pensar e trabalhar que da conta dos desafios que enfrenta. Considero importante o que os outros pensaram, mas, não acho bom fazer uma salada mista de idéias, porque ao fim e ao cabo já não se tem gosto de nada, o tudo vira nenhum. (p.68-9)

Gambini fala acerca da necessidade de atualizar Jung, trazendo sua teoria para nossa realidade contemporânea. O que nos leva a refletir a importância de um retorno a Jung. Muitas das escolas junguianas se afastam do pensamento de Jung e, apesar de se dizerem junguianas, guardam muito pouco da “marca”  junguiana.

Outro tema importante no livro, são “os sonhos” , temática que Gambini aborda de forma leve e sem se prender a questões técnicas, ele aborda a essência dos sonhos  e do trabalho com os sonhos na terapia/análise.A discussão que Gambini conduz acerca dos sonhos é extremante agradável e interessante pois, ele reflete acerca da postura ou atitude frente aos sonhos. Ressaltando que a relação com os sonhos deve ser de um dialogo, não de um interrogatório. Os sonhos se configuram como uma referência fundamental para compreender o inconsciente.

(…)na visão junguiana, um sonho é um produto natural da mente – e ele usa exatamente essa expressão – completo em si mesmo, sem disfarces nem censuras, uma declaração a respeito de um estado anterior, envolvendo desejos ou não. (p.75)

(…) Então, os sonhos, para Jung, são um dialogo entre a parte não controlada e a consciência, para fazer com que esta se reposicione, caso esteja demasiadamente unilateral ou abrigando associações de pensamentos, imagens e emoções que a autoagridem. Essa é a idéia. Agora, eu não diria que o sonho simplesmente traz solução. O sonho mobiliza o sujeito para que atinja um patamar distinto daquele em que a problemática existencial se aloja. É dessa mudança de plano que podem advir os elementos formadores de uma mudança de situação psíquica. (p.159)

(…) Nessa concepção, o sonho é uma constatação e assim deve ser encarado e tratado, como uma dado a partir do qual se começa a conhecer o paciente independentemente de seus desejos arcaicos reprimidos e até mesmo de suas associações de idéias no plano biográfico. (p. 75).

Da mesma forma, Gambini dedica páginas a questão da transferência, sem se prender a questões de ordem técnica, mas, sim de modo simples e vivencial ele discute a importância da transferência para o processo terapêutico. Reproduzo aqui o texto que ele intitulou de “Desafio Supremo”

A transferência é o desafio supremo da análise. Não existe receita. Às vezes ela é uma carga  pesadíssima, ás vezes não pesa nada, em alguns casos atrapalha, em outros ajuda. Seja como for, em toda terapia o analista está carregando para o paciente algum aspecto que este não consegue integrar e que talvez ainda nem esteja manifesto. Então é inevitável que um faça algo pelo outro, represente algo para o outro. Não se trata evidentemente de dar conselhos ou resolver problemas práticos do paciente, tarefa esta mais adequada a uma terapia ocupacional. Na esfera psíquica, alguém precisa cuidar do que ainda não nasceu e essa tarefa é do analista. Depois que veio à luz, começa-se cuidadosamente entregar o bebê para a mãe. O trabalho mais importante é na realidade aquele feito com o feto, quando só o terapeuta tem condições de enxergar e valorizar aquilo que ainda não tem cara nem nome. Portanto, aceito sentimento como dependência, gratidão, amor, cobrança, raiva, desejo de exclusividade e de atenção especial, por considerá-los como inevitáveis nessa fase de gestação. O grande teste para um analista é a hora que ele constata que consegue suportar o peso e a responsabilidade da transferência.

Às vezes uma questão transferencial, como vimos, é apontada por um sonho – então aborda-se diretamente o assunto. Caso contrario, o estilo junguiano, pelo menos segundo a Escola de Zurique, é ir vivendo o processo sem falar exaustivamente dele. Deixa-se acontecer, observa-se. Se o paciente for terapeuta, este igualmente pode se abrir com toda coragem e sinceridade. Não esmiuçamos a transferência, ficamos com a ferida doce.(p.110-111)

Apesar de citar esses três pontos de profunda reflexão teórica, o ponto maior do livro do Gambini, que o torna de leitura obrigatória é a sua confissão acerca do exercício da psicoterapia. Do alto de seus 30 anos como analista, Gambini fala de sua experiência de forma humana, sem ser professoral. Fala do exercício da psicoterapia  como uma arte, que deve ser, hora após hora, dia após dia, ano após ano, praticada, treinada, buscando sempre um refinamento maior.

Hoje, olhando para trás, vejo claramente que mesmo uma vocação tentando achar uma brecha para vir para fora e adquirir contorno, e que a depressão que me abalava nesses tempos era o avesso do nome e da forma. Foi uma dolorosa crise pessoal que ocasionou a virada. A partir do instante em que o inconsciente ejetou a figura do terapeuta e tomou corpo meu desejo de a qualquer custo ir buscar uma formação adequada, já não pude mais conceber a mim mesmo de outra forma, senão aquela que se anunciara em minha exígua sala de professor ouvindo as dores de alma de meus alunos. Hoje sou profundamente casado com minha profissão, que não pode ser outra.

(…)Quando se ouve outras pessoas falarem de outras profissões, às vezes se encontra algo análogo. tenho uma amiga, a pianista Clara Sverner, que diz ficar doente se não poder tocar de seis a oito horas por dia seu instrumento. Trata-se de uma necessidade absolutamente imperiosa. Nós também trabalhamos com isso todos os dias. Até mais. Uma vez em Zurique, num seminário,  foi mencionado o exemplo do bailarino russo Mikhail Baryshnikov que, para poder dançar como devia, tinha que treinar diariamente a musculatura do corpo durante um número análogo de horas. O analista, pela mesma razão, tem que treinar o uso de suas ferramentas. Usar bem a ferramenta é fazer uma interpretação com precisão na hora certa, detectar a voz daanima imiscuindo-se na fala exaltada de um homem, perceber um complexo se manifestando inesperadamente,  discernir a formação de um símbolo. Se você não treinar o uso  dessas ferramentas, não adianta apenas possuir teoria e intelecto. (…)

A psicoterapia, da maneira como nós a conhecemos, é uma atividade interseccional, com um fundamento na ciência e outro na arte. Esse cruzamento gera um exercício único.( p. 35-6)

Atualmente estou com 11 anos de estudo a obra junguiana. Confesso que fiquei fascinado com cada palavra e com toda a riqueza da experiência do Gambini. Lendo suas páginas, me vieram várias cenas de minha supervisão com  a Prof.Dra. Kathy Amorim Marcondes, pois, ela sempre enfatizou a relação terapeutica, valorizando a individualidade de cada um dos supervisandos, a disponibilidade, preparação e dedicação necessárias ao exercicio da psicoterapia. Trabalhando justamente essa atitude junguiana, que Gambini colaca em cada página de seu livro.

Ao ler Gambini, pude repensar minha trajetória. Suas reflexões são realmente preciosas, nos transmitindo o que é “ser junguiano” no sentido mais “clássico”. Gambini nos oferece um convite irresitível a fazermos um retorno a Jung.

· Descrição (Retirada do site da submarino)

· A Voz e o Tempo: Reflexões para Jovens Terapeutas

Este é um livro-resposta a perguntas que qual­quer terapeuta faz a si próprio: o que é “terapia”? Quais suas promessas? Como opera uma interpretação de sonho? O que é, essencialmente, a transferência? Qual a significação de seu percurso pessoal? O que o tempo faz com o analista?
Não se espere, no entanto, respostas convencionais. Respaldado nos seus trinta anos de clínica, articulando inteligência e sensibilidade, e experimentando o quanto emoção pode se tornar uma categoria cognitiva, o Autor tece reflexões instigantemente originais. Por exemplo, a visão da transferência como uma pulsão de busca de ser compreendido, dimensão arquetípica que responde a uma necessidade ainda mais urgente do que ser amado: ser conhecido, para conseguir ser. (Um outro modo de dizer que na aventura humana precisamos do Outro). Ou a idéia da interpretação de um sonho como um processo de diálise psíquica, inesperada metáfora para o processo em que a matéria do sonho sai daquele que a produziu, circula em outras veias, é como que retransfundida no analista passando pelo seu circuito emocional e daí retorna transformada, enriquecida.Ou as reflexões sobre a dor, matéria prima com que se trabalha no consultório, força criativa ou letal. E tudo isso por vezes atingindo o limite do dizível – uma das características que fazem do livro de Roberto Gambini um texto poético: nomeando, colocando em palavras percepções e realidades que confusamente sentimos, e vivemos, mas que não saberíamos expressar.
Assim, longe de constituir como que uma espécie de elenco de diretivas a jovens analistas, ou conselhos práticos de um profissional experiente e detentor de uma técnica, A Voz e o Tempo condensa aquilo que é o cerne, o caroço, o essencial para alguém que não teme ir até o limite das coisas, e que se entrega ao seu ofício como a um destino – nessa profissão em que, mais do que em qualquer outra que ao longo dos séculos o ser humano tenha inventado, se exige que o profissional entre não apenas com o seu saber, mas com tudo o que ele é.

· Editora: Ateliê

· Autor: ROBERTO GAMBINI

· ISBN: 9788574804125

· Origem: Nacional

· Ano: 2008

· Edição: 1

· Número de páginas: 221

· Acabamento: Brochura

· Formato: Médio

Referência Bibliográfica:

GAMBINI, R. A voz e o tempo: reflexões para jovens terapeutas. São Paulo: Ateliê Editorial, 2008.

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

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Psicologia da Religião–uma Leitura Clínica e Junguiana

Este texto foi escrito como base para a Palestra Realizada na Semana Acadêmica da UNES – Faculdade do Espirito Santo, Cachoeiro de Itapemirim, ES. em 27 outubro 2011[1]

Acredito que para muitos falar em “Psicologia da Religião” soa como uma novidade, mesmo para os alunos em períodos finais de graduação em psicologia. Quando falamos em psicologia da religião, a principio nos remetemos a concepção de estudo da religião a partir da psicologia. Esta concepção, nos anos 60, foi substituída por uma concepção que visava uma perspectiva de “psicologia e religião”, isto é, priorizando o dialogo com a religião. Assim, falar em “psicologia da religião” implica não só no estudo, mas, no dialogo com a religião.

Apesar deste tema ser relativamente desconhecido (e estranho a grade curricular das faculdades), mas, a “psicologia da religião” não é “nova”, pois, os estudos de psicologia direcionados ao fenômeno religioso começam no final do século XIX, a primeira obra destinada ao estudar a Religião a partir da Psicologia foi publicada por Edwin Starbuck, em 1899, com o titulo “A psicologia da Religião – um estudo empírico do desenvolvimento da experiência religiosa”, mas, a obra que efetivamente marcou o nascimento da Psicologia Religião, foi a do professor de Starbuck, William James, que em 1902 publicou “As variedades da Experiência Religiosa”. A aplicação da psicologia no estudo do fenômeno religioso nasce com a própria psicologia, e vários importantes teóricos como Jung, Freud, Piaget, Fromm, Erikson, Maslow dentre outros dedicaram inúmeras páginas para falar acerca desse fenômeno.

Apesar da Psicologia da Religião possuir um rico histórico e ter sido objeto de preocupação de vários dos ícones da psicologia, no Brasil, a psicologia da religião não se constitui uma área autônoma, pois, está dividida entre estudos da psicologia social, psicologia clínica e da ciências da religião.

Não devemos perder de vista que, ao falarmos de estudar a “religião”, não estamos reduzindo a mesma a um fenômeno psicológico. Na verdade devemos ter clareza que quando nos referimos a religião estamos falando de um fenômeno complexo, que comporta várias perspectivas de compreensão, desde o estudo próprio da religião, a teologia, história da religião, antropologia da religião, sociologia da religião, filosofia da religião. Nenhuma perspectiva possui a “verdade” acerca da religião, todas se esforçam para, na medida do possível, serem o mais fiéis na compreensão do fenômeno religioso. Devemos assim, especificar mais o que entendemos por religião, isto é, o que seria a religião segundo uma concepção psicológica? Segundo Velasco,

A religião é um fato humano complexo e específico: um conjunto de sistemas de crenças, de praticas, de símbolos, de estruturas sociais por meio dos quais o homem, nas diferentes épocas e culturas, vive uma relação com um mundo específico: o mundo do sagrado. Esse fato caracteriza-se por sua complexidade – nele põem em jogo todos níveis da consciência humana- e pela intervenção de uma intenção específica de referência a uma realidade superior, invisível, transcendente, misteriosa, da qual se fez depender o sentido ultimo da vida. (VELASCO apud ÁVILA, 2007. p. 14).

Aqui se coloca um ponto fundamental: a religião é um fato humano. Isto é, para compreender esta afirmação devemos ter clareza que falamos do homem frente ao sagrado. Assim, “suas motivações, seus desejos, suas experiências, suas atitudes, etc., expressos em seus comportamentos” (ÁVILA, 2007, p.15). Devemos frisar que ao falarmos do homem frente ao sagrado englobamos tanto as atitudes positivas, como o teísmo, quanto as negativas, como o ateísmo. Por outro lado, a religião se constitui, “uma busca de sentido em relação ao sagrado”(PARGAMENT apud ÁVILA, 2007, p.15) Deste modo, a psicologia da religião não tem por objetivo estudar “Deus” ou o “divino” ou “qualquer realidade transcendental”, isto está fora do escopo da psicologia.

Caberia mais uma observação, alguns autores preferem utilizar o termo espiritualidade a religião, pois, espiritualidade está mais relacionado a aspectos pessoais e individuais, ao passo que religião é muito amplo, abrangendo tanto aspectos pessoais quanto sociais/institucionais. Ainda sobre definições, a religiosidade pode ser compreendida como “todo comportamento, atitude, crença, que tenha um caráter religioso, independente de sua origem (a experiência pessoal, aprendizagem, tradição etc.) e de toda avaliação (maturidade, sanidade, profundidade, intensidade, etc.)” (AVILA, 2007, p. 69).

A psicologia da religião não possui uma unidade no estudo do fenômeno religioso, dessa forma, existem várias possibilidades de se aborda-la, seja pelo aspecto individual ou coletivo, seja pelas teorias psicológicas.

Em nosso caso específico, eu compreendo e estudo a religião a partir de duas referências, a primeira é a psicologia analítica, que é uma das abordagens clássicas do estudo da psicologia da religião, e a segunda é clínica, uma vez que sou psicólogo clínico.

Na abordagem junguiana, o estudo da religião ocupa um lugar de destaque, seja por facilitar a compreensão teórica acerca da teoria dos arquétipos, ou por sua implicação na prática da clínica. O próprio Jung valorizava bastante a compreensão da função da religião na vivência do individuo. Basta lembrarmos que a família do Jung foi uma fonte bem rica da diversidade de manifestações religiosas. Seu pai, seu avô e sete de seus tios eram pastores da igreja reformada. Parte de sua família se envolveu no estudo do espiritismo. Em suas Memórias, Jung relata que cedo rompeu com a religião institucional, relata também que via e sentia pena do pai que era angustiado em suas dúvidas interiores.

Suas experiências pessoais, familiares e profissionais o levaram a um estudo dedicado do fenômeno religioso. Jung percebeu que as idéias religiosas, em sua essência, eram similares e se manifestavam de modo semelhante por diferentes culturas, fato que o levou a considera-las como expressão da psique coletiva, isto é, do inconsciente coletivo. Desde modo, a religião, para Jung, possuiria uma função estruturante importante na psique – tanto coletiva, isto é, dos povos, quanto na psique individual. As narrativas, os símbolos religiosos, os sistemas de crenças seriam importantes por auxiliar ao ego a suportar a tensão tanto do inconsciente quanto do mundo exterior. Para Jung todas as religiões eram igualmente válidas. No âmbito da psicologia, não é relevante pensar se é verdadeira ou não qualquer concepção apresentada pelo cliente,

Quando a Psicologia se refere, p. ex., a concepção virginal, só se ocupa da existência de tal idéia, não cuidando de saber se ela é verdadeira ou falsa, em qualquer sentido. A idéia é verdadeira, na medida em que existe. (JUNG, 1999, p.8)

De forma geral, quando observamos os escritos de Jung, notamos que seus trabalhos ou seus estudos não se concentravam num estudo acadêmico da religião, mas, sim num estudo direcionado a prática da psicoterapia. Ou seja, Jung percebia que a relação do individuo com a religião, poderia contribuir para compreender seu adoecimento psíquico ou ser um meio útil para a resolução do conflito no qual o individuo se encontrava.

O que são as religiões? São sistemas psicoterapêuticos. E o que fazemos nós, psicoterapeutas? Tentamos curar o sofrimento da mente humana, do espírito humano, da psique, assim como as religiões se ocupam dos mesmos problemas. Assim, Deus é um agente de cura, é um médico que cura os doentes e trata dos problemas do espírito; faz exatamente o que chamamos de psicoterapia. Não estou fazendo jogo de palavras ao chamar a religião de sistema psicoterapêutico. É o sistema mais elaborado, por trás do qual se esconde uma grande verdade prática. (JUNG, 2000a, p. 167-8)

Jung compreendia que todos os sistemas religiosos, ao longo da história humana buscavam lidar os males da alma. Assim, a religião é compreendida como um meio eficaz que a desenvolvida pela humanidade para lidar com os males que afetavam o corpo e a alma. A compreensão saúde pela religiosidade antiga contemplava o homem inteiro. Não é atoa que em sua origem, nos mais diversos idiomas, os termos saúde e salvação compartilham o mesma origem

Saúde e salvação são termos co-originários, ou melhor, nasceram de um mesmo conceito e partilharam por muito tempo a mesma sorte e um mesmo significado geral, que acabou cindindo-se bem mais tarde. Trata-se do significado sânscrito do svastha(= bem-estar, plenitude), que depois assumiu a forma do nórdico heill e, mais recentemente, Heil, whole, hall nas línguas anglo-saxônicas, que indicam “integridade” e “plenitude”. A mesma coisa acontece com o termo sotería: na língua grega, segundo a qual justamente Asclépio é considerado sotér: aquele que cura e que é ao mesmo tempo “salvador”. Na língua latina é emblemático o significado de salus, termo capaz de incorporar, mesmo em época recente, tanto o significado de “saúde” como de “salvação”. É preciso, porém, lembrar que também em outras línguas acontece a mesma combinação. (TERRIN,1998 , p154)

Compreender esses aspectos históricos e culturais que aproximam a psicologia, em especial a clinica, da função psíquica das religiões nos possibilita compreender a possibilidade de seu uso correlacionado com a prática da psicoterapia. Devo esclarecer, que quando falo em “uso correlacionado” não me refiro a misturar psicologia e religião, mas, compreender o contexto simbólico do cliente, compreender suas metáforas e os elementos de suas vivências que são fundamentais para aquele individuo.

Uma das maiores dificuldades no dialogo entre a psicologia e a religião é o preparo do profissional, isto é, o despreparo. Andreia Coliath produziu uma interessante dissertação acerca da “Escolha do Terapeuta associada à denominação religiosa”, nesse trabalho, Coliath, a partir de categorias de Wulff, faz uma levantamento interessante das atitudes comuns dos psicólogos acerca da relação com o fenômeno religioso. Ela cita quatro tendências gerais de posicionamento dos psicólogos

1 – Negação literal: Esta atitude assume que a linguagem religiosa deve ser entendida de forma literal, porém rejeita todo o conteúdo nela apresentado. Os psicólogos nesta posição desconsideram a singularidade das experiências religiosas, o milagroso, e hipervalorizam os princípios formais do conhecimento. Os profissionais que adotam esta atitude tendem a ignorar a religiosidade do sujeito ou reduzem a religião a um conjunto de afirmações irracionais a serem extirpadas ou apropriadas pelas ciências para serem explicadas racionalmente. O paciente nesta posição encontra-se fechado à linguagem simbólica.

2 – Afirmação literal: “ Diz respeito a afirmação literal do objeto religioso. Os psicólogos nesta posição, aceitam os conhecimentos das teorias psicológicas, desde que não se choquem com suas crenças. É a atitude dos fundamentalistas e dos religiosos ortodoxos. Atitude frequente desses psicólogos é a de atuar a partir do ponto de vista de sua religião e da visão de mundo nela contida valendo-se basicamente de generalizações idealizadas e de um conjunto de regras de comportamento. Esta forma de atendimento choca-se com a proposta do atendimento clínico que propõe uma aceitação total do paciente.

3 – Interpretação redutiva – Vê a religião como um fenômeno social ultrapassado e ingênuo, excluindo a transcendência da linguagem e das práticas religiosas. Esta atitude assemelha-se muito com a negação literal. Os psicólogos nesta posição buscam perspectivas científicas para interpretar, a partir delas, os conteúdos religiosos. O objetivo implícito nesta atitude é o de transformar ou eliminar o campo religioso, reduzindo-o a outras áreas.

4 – Interpretação restauradora – É a atitude que considera a especificidade da experiência religiosa. Os psicólogos nessa posição examinam as crenças e posicionamentos pessoais de seus pacientes e buscam compreender e aproximar-se do fenômeno religioso abrindo-se para vivências, símbolos, metáforas, que o paciente traz. Esta atitude implica em humildade epistemológica e clareza quanto aos próprios pressupostos e adesões religiosas. (COLIATH, 2007, p. 34)

Quando pensamos essas atitudes, fica claro a necessidade de uma compreensão mais ampla do significado da religião para o paciente, assim como a necessidade de conhecer os sistemas religiosos para compreender nosso paciente a partir de seu contexto simbólico, de sua realidade específica. Infelizmente, muitos pensam nas religiões simplesmente como um sistema fechado de regras e ditames morais, perdendo, assim, o potencial que nos é oferecido pelo universo de símbolos, narrativas ou histórias significativas que são os aspectos essenciais das religiões. Tendo posse de toda a possibilidade que a religião nos oferece, podermos ter uma comunicação mais eficaz e significativa para nosso cliente, mobilizando-o por inteiro.

Uma outra grande dificuldade e talvez, a maior dificuldade, se encontra na incapacidade de muitos profissionais em lidar com suas próprias convicções religiosas, pois, muitos acabam por impô-las consciente ou inconscientemente ao paciente. Essa limitação faz com que o profissional perca seu caráter terapêutico, muitas vezes, sendo uma forma deformada de conselheiro espiritual.

Acredito ser válido, quando pensamos o dialogo da psicologia clinica com a religião, considerar as palavras de Jung,

(…)o psicoterapeuta está obrigado a um autoconhecimento e a uma crítica de suas convicções pessoais, filosóficas e religiosas, tanto quanto um cirurgião está obrigado a uma perfeita assepsia. O médico deve conhecer sua equação pessoal para não violentar seu paciente”. (JUNG, 2000b, p.154)

Essa consideração é importante pois, nos leva a pensar não só a clinica psicológica, mas, quaisquer relações humanas quem envolvam a religião devemos considerar que a importância e significado que a minha matriz religiosa tem para mim, também vai ter para uma outra pessoa, assim respeito (mais que tolerância) é a única forma se evitar a violência contra o outro.

Referências bibliográficas

ÁVILA,A. Para Conhecer a Psicologia da Religião, São Paulo, Edições Loyola, 2007

COLIATH , A.A.M. Escolha do Terapeuta Associada a Denominação Religiosa, 2007,98f. Dissertação de Mestrado –Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo. 2007.

JUNG,C.G. Psicologia e Religião, Petrópolis,: Vozes 1999a.

JUNG,C.G. Vida Simbólica Vol. I , Petrópolis,: Vozes 2000a

JUNG. C.G Civilização Em Transição. Petrópolis: Vozes, 2 ed. 2000b .

TERRIN, A.N. O Sagrado Off limits, São Paulo, SP: Edições Loyola, 1998.


[1] Publicado em 30 de outubro de 2011, no antigo blog “Jung no Espírito Santo”. A atual versão foi revista e ligeiramente modificada para a publicação no site da Comunidade Anglicana Bom Pastor (www.anglicana-es.org)

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

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Uma breve reflexão sobre “Qual a melhor abordagem psicológica?”

(11 de outubro de 2011)

Esta reflexão nasceu da leitura de uma frase no facebook que falava sobre uma breve conversa de Leonardo Boff com Dalai Lama, após ler a frase fui buscar na internet e encontrei este belíssimo texto, que é atribuído a Leonardo Boff, sobre esse encontro com Dalai Lama,

Leonardo Boff explica:

“No intervalo de uma mesa-redonda sobre religião e paz entre os povos, na qual ambos (eu e o Dalai Lama) participávamos, eu, maliciosamente, mas também com interesse teológico,

lhe perguntei em meu inglês capenga:

– “Santidade, qual é a melhor religião?” (Your holiness, what`s the best religion?)

Esperava que ele dissesse:

“É o budismo tibetano” ou “São as religiões orientais, muito mais antigas do que o cristianismo.”

O Dalai Lama fez uma pequena pausa, deu um sorriso, me olhou bem nos olhos – o que me desconcertou um pouco, por que eu sabia da malícia contida na pergunta – e afirmou: “A melhor religião é a que mais te aproxima de Deus, do Infinito”.É aquela que te faz melhor.”

Para sair da perplexidade diante de tão sábia resposta, voltei a perguntar:

– “O que me faz melhor?”

Respondeu ele:

-“Aquilo que te faz mais compassivo” (e aí senti a ressonância tibetana, budista, taoísta de sua resposta), aquilo que te faz mais sensível, mais desapegado, mais amoroso, mais humanitário, mais responsável… Mais ético… A religião que conseguir fazer isso de ti é a melhor religião…”

Calei, maravilhado, e até os dias de hoje estou ruminando sua resposta sábia e irrefutável…

(fonte: http://www.juraemprosaeverso.com.br/TextosDeConteudoMoralII/LeonardoBoffXDalaiLama.htm)

A resposta do Dalai Lama transcende a objetividade da pergunta, e nos proporciona as mais variadas possibildiades de discutir a religião. Entretanto, não é meu interesse discutir a religião enquanto rito, simbolo e teologia. Num sentido mais amplo, como fala o poeta Khalil Gibran,

Não será a religião senão todos os actos e toda a reflexão, e tudo aquilo que não é ato nem reflexão, mas encantamento e surpresa sempre emergentes da alma, mesmo quando as mãos talham a pedra ou trabalham no tear?(GIBRAN,1975 , p76.)

Deste modo, ampliando nossa percepção, podemos transpor a resposta do Dalai Lama, para a nossa “pergunta-titulo”. Afinal, “qual a melhor abordagem psicológica?” É aquela que te faz melhor.

Sei que essa afirmação pode parecer abstrata ou vaga. Contudo, devemos pensá-la com bastante atenção, e notar alguns pontos, em primeiro lugar, devemos considerar que que as abordagens psicoterápicas se desenvolveram a partir indivíduos que utilizaram o melhor de si-mesmos no desenvolvimento de suas teorias e técnicas. A marca pessoal desses pensadores é tão forte que apesar da “nome” ou “titulo” da abordagem nos identificamos pelo nome ou pelas contribuições pessoais de cada um desses autores – JUNGuianos, FREUDianos, ROGERianos, LACANianos, WINNICOTTianos, KLIENianos, REICHianos, PIAGETianos, SKINNERianos dentre inúmeros outros.

Todos os autores que marcaram a história do saber psicológico, apostaram em si-mesmos, romperam com crenças e sistemas, seguiram o caminho que lhes era mais apropriado. Eles ousaram ser eles mesmos. Buscaram ser o melhor que podiam, suas técnicas e teorias expressam esse melhor. Suas teorias lançaram luz sobre o desconhecido que os confrontava internamente e em seus pacientes. Assim, cada teoria refletiria a perspectiva de seu autor. E, por isso, para cada um deles a própria teoria era a melhor, pois, expressava sua própria realidade psique permitindo-os a se perceberem de forma diferenciada.

E, para nós? Qual a melhor abordagem? É aquela que nos possibilita compreendermos a nossa realidade psíquica – como somos e como enxergamos o mundo – de outra forma, é aquela que é significativa ou que atribui sentido a nossa existência. E, dessa forma, nos possibilita sermos melhor.

Nisto reside um ponto crucial para os junguianos, pois, ser um bom terapeuta não é uma questão exclusiva de “técnica”, mas, passa necessariamente e prioritariamente pela pessoa do terapeuta, pela integridade pessoal do terapeuta. Vejamos algumas afirmações do Jung,

“Aquilo que não está claro para nós, porque não o queremos reconhecer em nós mesmos, nos leva a impedir que se torne consciente no paciente, naturalmente em detrimento do mesmo” (Jung, 1999, p.6)

“Muito mais forte do que suas frágeis palavras é a coisa que você é. O paciente está impregnado pelo que você é – pelo seu ser real – e presta pouca atenção ao que você diz. (…) Cada passo em frente que o paciente dá pode ser uma nova etapa para o analista. Não se pode estar com alguém sem ser influenciado por essa personalidade, mas o mais provável é que se não se perceba isso;(…)” (Jung apud McGUIRE et HULL, 1984, p. 332)

“ Todo psicoterapeuta não só tem o seu método: ele próprio é esse método. “Ars totum requirit hominem”(A arte exige o homem todo) diz um velho mestre. O grande fator de cura na psicoterapia é a personalidade do médico – esta não é dada “a priori”; conquista-se com muito esforço, mas não é um esquema doutrinário. As teorias são inevitáveis, mas não passam de meios auxiliares.” (Jung, 1999. p.85)

“(…)o psicoterapeuta está obrigado a um autoconhecimento e a uma crítica de suas convicções pessoais, filosóficas e religiosas, tanto quanto um cirurgião está obrigado a uma perfeita assepsia. O médico deve conhecer sua equação pessoal para não violentar seu paciente” (Jung, 2000., p.154)

As teorias são meios auxiliares pois, favorecem o autoconhecimento do individuo e contribui para que o mesmo possa, a partir de sua experiência, contribuir para o desenvolvimento de outros, através da prática da psicoterapia. Para Jung, o fundamental é que o profissional utilizer a técnica que seja mais adequado a sua individualidade, pois, assim a técnica auxiliará efetivamente no processo dos clientes. É importante lembrarmos do provérbio chinês que Jung citava “Se o homem correto (…) usar o meio errado, o meio errado atuará de um modo correto”. — (…) — “No entanto, se o homem errado usar o- meio correto, o meio correto atuará de modo errado”. (JUNG et WILHELM, 1988, p132). O fundamental é o individuo, não a teoria ou a técnica. As abordagens são meios que serão eficazes se forem pelo individuo correto.

É nesse contexto que no Post “Algumas Reflexões sobre “Como começar a estudar a psicologia de Jung?” que Carlos Alberto, leitor do blog, fez seu comentário,

Oi Fabrício! Gostei da postura…Acredito que o começo do aprofundamento da discussão está em nos perguntarmos porque nos consideramos psicólogos de orientação junguiana ou analíticos.enfim…

Neste sentido, ao refletirmos sobre teorias, junguiana ou não, estamos nos inteirando das concepções lógicas que determinados autores, com suas vivências particulares e estudos aprofundados sobre outros autores, interpretam e atualizam um conhecimento. Me parece que então a escolha de determinada leitura e pesquisa está mais voltada para a “nossa” necessidade de se ver expressado em “nossa” maneira de interpretar o mundo. (Grifo meu, para ver comentário inteiro clique aqui)

Continuando, assim, a discussão proposta por Carlos Alberto, na minha concepção, se considerar junguiano passaria numa consideração profunda acerca do processo de individuação. Isto é, um exercicio continuo de conquista de si-mesmo, de integridade, honestidade interior e se permitir o assombro e o fascínio frente todo potencial da vida que se manifesta das mais distintas formas. Como terapeuta, isso implica em ver a vida pulsando em cada cliente, é acreditar no potencial que há em cada individuo. Mas, essa é a via junguiana.

Quando questionamos “qual a melhor abordagem psicológica?” devemos perguntar “qual a melhor abordagem psicológica para mim?” Isso porque, todas as abordagens que se consolidaram pela história e pela prática da psicoterapia são igualmente válidas. Sua eficacia depende do terapeuta que se vale dela. Por isso, é importante conhecermos os diferentes sistemas terapêuticos e sentir qual ecoa mais profundamente em minha alma.

É perceber em qual sistema eu posso me realizar, em que posso ser uma pessoa melhor, uma pessoa integra, para assim, ser um terapeuta melhor.

Referências Bibliográficas

JUNG, C.G. A PRÁTICA DA PSICOTERAPIA, Ed. Vozes, Petrópolis, RJ, 1999.

__________. Civilização Em Transição. Petrópolis: Vozes, 2 ed. 2000.

McGUIRE, W.; HULL, R.F.C, C.G.JUNG: ENTREVISTAS E ENCONTROS, Cultrix: São Paulo, 1984

JUNG, C.G. – WILHELM, R. – O SEGREDO DA FLOR DE OURO. Um livro de vida chinês, Petrópolis, Editora Vozes, 1988

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Brevíssimo comentário sobre os conceitos de Metanóia e Enantiodromia

(12 de setembro de 2011)

Dois conceitos fundamentais para a compreensão da psicologia junguiana são os conceitos de enantiodromia e metanóia. Os dois conceitos compreendem regras fundamentais naturais da dinâmica psíquica, fundamentais ao principio de equilibrio psiquico.

No primeiro caso, Jung adotou o termo “enantiodromia” fazendo uma referencia ao Heráclito, que foi o primeiro a esboçar o conceito. Enatiodromia significa “correr para o outro oposto” ou “ir para o contrario”. Aplicando esse conceito à dinâmica energética, podemos compreender que quando há uma excessiva concentração energética em um dado ponto,isto é, a uma dada postura da consciência, a a energia tende fluir ou buscar o ponto oposto como uma forma de manter o equilíbrio. Por exemplo, uma atitude excessivamente unilateral do Ego, pode ativar no inconsciente o princípio contrário. De forma que “[…] a tendência a renegar todos os valores anteriores para favorecer o seu contrário é tão exagerada quanto a unilateralidade anterior” (Jung, 2001a,p.67)

A Enatiodromia é um processo inconsciente de mudança de perspectiva, onde o oposto negado, emerge se impondo a atitude da consciência. Geralmente, isto ocorre relacionado com sintomas neuróticos.

A Metanóia significa “mudança de pensamento” ou “mudança de caminho”, esse termo de origem grega aparece nos textos biblicos, sendo traduzido como “conversão”. Por isso é importante compreender essa breve distinção, que no sentido usualmente biblico ou religioso, metanóia é aplicado no conversão ou no processo no qual o homem se rende a Deus, deixa de seguir seus caminhos para seguir os caminhos designados por Deus. O exemplo disto é a conversão de Paulo.

Em termos psicológicos, metanóia é um processo característico do processo de individuação. A metanóia “[…]não se trata de uma conversão no seu contrario, mas de uma conservação dos antigos valores, acrescidos de um reconhecimento do seu contrário.” (JUNG, 2001a, p.68). A diferença fundamental entre a enantiodromia e a metanóia está na participação da consciência. Enquanto na enantiodromia o movimento em busca do oposto puramente inconsciente, já na metanóia a busca pelo oposto, ocorre com uma participação da ativa da consciência, num movimento de integração do oposto, mas sem perder os valores anteriores. Assim, na metanóia (ou no processo de individuação) há uma consideração do individuo em sua totalidade, implicando, uma consideração ética acerca do própria existência.

A metanóia consiste numa “mudança de caminhos” na medida em que implica num alinhamento do individuo com sua totalidade, um ajustamento na relação do Ego com o Self.

Referencias

JUNG, C.G.. Psicologia do Inconsciente. Petrópolis: Vozes, 13ed. 2001a

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

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