Arquétipos, Representações Arquetípicas e o Processo de humanização

Fabrício Fonseca Moraes

Kelly Guimarães Tristão

Há pouco tempo conversamos no grupo “Aion – Estudos Junguianos” sobre arquétipos e humanização dos arquétipos. Tal conversa gerou o interesse e a sugestão para que fosse escrito um texto a esse respeito, especialmente no que tange ao aspecto da “humanização dos arquétipos”. Assim, este texto tem por objetivo revisar alguns pontos fundamentais da teoria dos arquétipos e discutir a relação das representações arquetípicas em nossa realidade psíquica.

O “Arquétipo em si”

O conceito de arquétipo é central no pensamento junguiano, contudo, frequentemente percebemos uma certa dificuldade para lidar e compreender o conceito em toda sua extensão. Um primeiro aspecto a ser considerado é a confusão entre arquétipo e imagem ou representação arquetípica.  Jung chamava a atenção para essa distinção,

Não devemos confundir as representações arquetípicas que nos são transmitidas pelo inconsciente com o arquétipo em si. Essas representações são estruturas amplamente variadas que nos remetem para uma forma básica irrepresentável que se caracteriza por certos elementos formais e determinados significados fundamentais, os quais, entretanto, só podem ser apreendidos de maneira aproximativa. O arquétipo em si é um fator psicóide que pertence, por assim dizer, à parte invisível e ultravioleta do espectro psíquico. Em si, parece que o arquétipo não é capaz de atingir a consciência. Se ouso formular esta hipótese, é porque qualquer coisa de natureza arquetípica percebida pela consciência parece representar um conjunto de variações sobre o mesmo tema fundamental. (…) parece-me provável que a verdadeira natureza do arquétipo é incapaz de tornar-se consciente, quer dizer, é transcendente, razão pela qual eu a chamo de psicóide. Além disto, qualquer arquétipo torna-se consciente a partir do momento em que é representado, e por esta razão difere, de maneira que não é possível determinar, daquilo que deu origem a essa representação. (Jung, 2000, p 150)

Para tornar mais clara essa distinção, penso que seja funcional compreender que toda vez que usamos o termo “arquétipo” seguido de um complemento, p.ex. “arquétipo da Grande mãe” ou “arquétipo do herói”, nos referindo a uma manifestação do arquétipo ou de um dinamismo arquetípico, nos referimos uma representação arquetípica. Da mesma maneira, toda vez que usamos a forma adjetivada “arquetípico” ou “arquetípica” nos referimos igualmente a uma representação ou imagem arquetípica. Quando, por outro lado,  nos referimos ao arquétipo como aquele aspecto fundamental do inconsciente coletivo, aos padrões basais de organização psíquica, nos quais o drama de nossa história evolutiva está sintetizado, aí estaremos falando do “arquétipo em si”.

Jung apresentou três aspectos importantes para pensarmos o “arquétipo em si” são eles: 1 – o arquétipo é psicóide. 2 – o arquétipo não chega a consciência. 3 – o arquétipo se torna consciente ao ser representado.

 Primeiro, devemos esclarecer o termo psicóide. Sobre esse termo, Jung afirma

Se uso o termo “psicóide”, faço-o com três ressalvas: a primeira é que emprego esta palavra como adjetivo e não como substantivo; a segunda é que ela não denota uma qualidade anímica ou psíquica em sentido próprio, mas uma qualidade quase psíquica, como a dos processos reflexos; e a terceira é que esse termo tem por função distinguir uma determinada categoria de fatos dos meros fenômenos vitais, por uma parte, e dos processos psíquicos em sentido próprio, por outra. Esta última distinção nos obriga também a definir com mais precisão a natureza e a extensão do psíquico, e de modo todo particular do psíquico inconsciente.(Jung, 2000, 116)

O psicóide se refere a um nível de realidade que não é nem propriamente físico (ou fisiológico) nem propriamente psíquico. Para melhor explicar essa realidade, Jung utilizou a imagem do fóton da física para auxiliar a compreensão desta, pois o fóton teria como propriedade se manifestar ora como partícula, ora como onda. Do mesmo modo, o arquétipo ou a realidade do inconsciente coletivo se manifesta “como algo que ora se dá como psíquico, ora como físico”( DAMIÃO, 2005, p.25). Ao evocar a teoria quântica, Jung ampliou o horizonte epistemológico da psicologia analítica compreendendo a realidade como complexa, não definida por dicotomias.

Como a psique e a matéria estão encerradas em um só e mesmo mundo, e, além disso, se acham permanentemente em contato entre si, e em última análise, se assentam em fatores transcendentes e irrepresentáveis, há não só a possibilidade mas até mesmo uma certa probabilidade de que a matéria e a psique sejam dois aspectos diferentes de uma só e mesma coisa (…) Nossos conhecimentos atuais, porém, não nos permitem senão comparar a relação entre o mundo psíquico e o mundo material a dois cones cujos vértices se tocam e não se tocam em um ponto sem extensão, verdadeiro ponto-zero. (JUNG, 2000, p. 152)

O arquétipo psicóide se coloca justamente na interseção entre a matéria e o psíquico, por isso mesmo está num ponto fundamental da experiência psíquica. Toda a possibilidade humana herdada filogeneticamente, inscrita em nosso corpo/DNA, se transforma em realidade psíquica por meio dos arquétipos. Nossa cultura, nossa percepção, nossas emoções possuem um pressuposto arquetípico fundante.  Uma vez que nossa realidade é sempre uma realidade psíquica, ou seja, não conhecemos nada que não seja a partir e por meio de nossa psique (“a psique é o eixo do mundo”[1]!), poderíamos dizer que o fundamento de nossa apreensão da realidade é arquetípico.

Como vimos, Jung considerava o arquétipo incapaz de atingir a consciência. Para compreender essa “incapacidade”, seria precisa retomar o aspecto mais fundamental da teoria dos arquétipos, ou seja, sua origem ao longo da evolução filogenética. Quando Jung aponta a hipótese de um inconsciente coletivo ele pressupõe

Assim como o corpo humano representa todo um museu de órgãos com uma longa história evolutiva, devemos esperar que o espírito também esteja assim organizado, em vez de ser um produto sem história. Por “história” não entendo aqui o fato de nosso espírito se construir por meio de tradições inconscientes (por meio da linguagem etc.), mas entendo antes sua evolução biológica, pré-histórica e inconsciente no homem arcaico, cuja psique ainda era semelhante à dos animais. Esta psique primitiva constitui o fundamento de nosso espírito, assim como nossa estrutura corporal se baseia na anatomia geral dos animais mamíferos. (JUNG, 2000a, p. 229-230)

A perspectiva da evolução filogenética aponta para compreensão de que os arquétipos (assim como os instintos) se constituíram ao longo dos milhares de anos no processo evolutivo. Isso se dá a partir da repetição de situações típicas, comuns ou vitais todos os seres humanos, que imprimiram na psique formas basais de assimilação e reação a realidade de forma que possibilitasse a sobrevivência.

Com o desenvolvimento da capacidade de simbolizar (processo intimamente associado à produção de instrumentos e linguagem), deu-se  início ao lento processo de desenvolvimento da consciência e da cultura. Através dos símbolos abriu-se um espaço entre a percepção da realidade e ação instintiva, isto é, este espaço que se abre é o espaço da representação e da imaginação. Esse processo promove a ampliação da consciência, que antes era apenas um estado de vigília, e se torna um estado consciente de representação da realidade. Assim, este se estabelece enquanto a base para a possibilidade de escolha, ou seja, o uso consciente da vontade, que é determinante para o desenvolvimento da cultura. Não podemos perder de vista, que o mundo dos arquétipos passa a ser vivenciados através da cultura e especialmente dos mitos que, em todos os tempos, ofereceram aos homens modelos exemplares que possibilitavam a vivência humana. A base dos mitos, são as dinâmicas arquetípicas vivenciadas como realidade exterior, por meio participação mística.

Até então falamos sobre o aspecto evolutivo e biológico dos arquétipos, pois, esse é o horizonte conceitual que distingue a psicologia analítica de Jung de considerações metafísicas.

Representações e Humanização

Jung afirmou que os arquétipos tornam-se presentes quando são representados ou se manifestam em imagens arquetípicas. O principal aspecto das representações arquetípicas que devemos considerar é o fato delas serem análogas aos arquétipos. Apesar de possuírem a mesma essência (visto que derivam os arquétipos), essas representações (por serem simbólicas), no geral, não comprometem a dinâmica da consciência. Se pensarmos pela perspectiva evolutiva, podemos compreender que para garantir as possibilidades do ego e das funções psíquicas superiores, o impulso arquetípico natural (“tudo ou nada”) se transformou em simbólico, ou seja, uma realidade que integra tanto o dinamismo inconsciente quanto as possibilidades conscientes. Desta forma, como símbolo, as representações arquetípicas se tornam compatíveis com a dinâmica da consciência.

Segundo Jung

Há tantos arquétipos quantas situações típicas na vida. Intermináveis repetições imprimiram essas experiências na constituição psíquica, não sob a forma de imagens preenchidas de um conteúdo, mas precipuamente apenas formas sem conteúdo, representando a mera possibilidade de um determinado tipo de percepção e ação. Quando algo ocorre na vida que corresponde a um arquétipo, este é ativado e surge uma compulsão que se impõe a modo de uma reação instintiva contra toda a razão e vontade (Jung 2000, p. 58)

O arquétipo em si representa o potencial a uma dada configuração. Contudo, quando ativado – e só sabemos sobre os arquétipos devido suas manifestações tanto coletivas (míticas e culturais) quanto  pessoais – ele assume uma forma de comportamento específica que se impõe ao dinamismo do ego de forma compulsiva.  No entanto, quando humanizado o dinamismo arquetípico se torna disponível à esfera psíquica consciente. humanizar o arquétipo significa trazê-lo a experiência humana, tornando-o parte dos dinamismos básicos a nosso processo de desenvolvimento individual e coletivo.

Para compreender o processo de humanização dos arquétipos é importante pensa-lo desde o desenvolvimento individual. Para tanto as concepções de Fordham mostram-se muito uteis neste propósito. Fordham construiu uma teoria do desenvolvimento que compreende que os processos arquetípicos estariam ativos desde a mais tenra infância.  Segundo autor “na infância as formas arquetípicas são derivadas do Self através de sua deintegração [2]”(FORHAM, 1985, 45). Para Fordham, a criança já nascia com uma unidade prestes a surgir[3], o self se dividiria espontaneamente em partes, ativando o potencial arquetípico correspondente a situação, a esse processo ele denominou de deintegração.

Em outras palavras frente a uma dado estímulo – seja ele interno como fome, ou externo como o toque – são ativados aspectos do self específicos à situação. Esses deintegrados se manifestam como um sistema de prontidão aos estímulos. Uma vez ativados esses deintegrados são atualizados pela experiência consciente e serão reintegrados novamente (em processos elaborativos, como no sono), e ao longo do processo rítmico de deintegração e reintegração, darão, em primeira instância, origem aos núcleos que formariam o núcleo do ego.

O processo de deintegração-reintegração não se limita ao processo de desenvolvimento do ego, mas, ao processamento continuo de constelação (deintegração) e atualização(reintegração) das representações arquetípicas. Segundo Fordham

Os deintegrados desenvolvem formas simbólicas e outras, em razão de sua interação com o ambiente que fornece imagens perceptivas. Estas imagens se organizam e algumas delas são usados na adaptação do organismo para o mundo externo, (atividades do ego) outras para formar imagens simbólicas internas (as formas arquetípicas) (FORDHAM, 1985, p.31 – tradução nossa) .[4]

A dinâmica de deintegração-reintegração está relacionada ao processo de humanização dos arquétipos (aqui compreendidos como deintegrados). Podemos citar a dinâmica arquetípica da Grande Mãe, onde os dinamismos básicos de nutrição (fome-alimentação-saciação) são humanizados na relação com a mãe. Do mesmo modo, a experiência de proteção/segurança que são humanizados no toque, cuidado, atenção, “holding” que possibilitam o estabelecimento de uma relação saudável com a realidade exterior, são reintegrados no registro ontológico do sujeito, dando origem ao núcleo do complexo materno.

O processo de deintegração-reintegração pressupõe a relação entre o estimulo externo e o potencial arquetípico. Pois, a representação arquetípica

(…) implica não apenas uma disposição intrapsíquica, mas também um fator proveniente do mundo. Quando dizemos que um arquétipo é “ligado” por evocação, queremos dizer que a aptidão arquetípica da psique precisa ser liberada por um fator correspondente proveniente do mundo.(NEUMANN,1992, p.68)

Na infância, o processo de humanização dos arquétipos humanos, (grande mãe, pai, anima e animus, velho sábio) precisam de pessoas humanas para serem humanizados. Assim, a relação entre a criança/indíviduo com o meio determinará a forma dessa humanização – por exemplo, o herói pode ser humanizado através de um esportista ou de um bombeiro militar, em outros casos através do traficante. O padrão basal é permanece, mas, o conteúdo é dado pelo ambiente ou das relações que indivíduo estabelecem.

O que precisamos ter clareza, é que a humanização dos arquétipos na infância é a base do desenvolvimento psíquico, especialmente em relação a formação dos complexos. Contudo, ao longo da vida as novas necessidades e situações que se apresentam ao indivíduo, podem gerar novos processos de deintegração. Isso significa dizer que a nossa história pessoal ou nosso passado pode deixar marcas profundas em nossas vidas, mas, não as define. Através da deintegração, a psique em sua dinâmica autorreguladora possibilita o processo de reparação de possíveis lapsos no desenvolvimento. Aqui a humanização dos arquétipos pode se dar tanto pela mediação da psicoterapia, de outros profissionais em relação de cuidado, pela religião e por grupos de amigos e apoio.

Referências Bibliográficas

DAMIÃO M. Jr. Experiência do Símbolo no Pensamento de C.G.Jung, Rio de Janeiro: Editora Aion, 2005.

FORDHAM, M. New developments in Analytical Psychology. Routledge and Kegan Paul Ldt, Bristol, 1957.

FORDHAM, M. Explorations into the Self. Socity of Analytical psychology(Library of Analytical Psychology v.7).London: 1895

JUNG, C.G. Natureza da Psique, Petrópolis:Vozes, 2000.

JUNG, C.G. Vida Simbólica Vol. I, Vozes, 2ª Ed., Petrópolis, RJ, 2000a.

Neumann, E. A Criança. São Paulo: Cultrix. 1992

[1]Jung, 2000, p. 154

[2] In the infancy the archeypal forms are derived form the self through itis the integration. (Fordham, 1957, p. 117)

[3] Term is used for the spontaneous division of the self into parts-a manifest  necessity if consciousness is ever to arise.

3 The deintegrates develop symbolic and other forms by reason of their interaction with the environment which provides perceptual images. These images make a pool and some of them are used in the organism ’s adaptation to the external world, (ego activities) Others to form inner symbolic images (the archetypal forms).

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Fabricio Fonseca Moraes (CRP 16/1257)

Psicólogo Clínico de Orientação Junguiana, Especialista em Teoria e Prática Junguiana(UVA/RJ), Especialista em Psicologia Clínica e da Família (Saberes, ES). Membro da International Association for Jungian Studies(IAJS). Formação em Hipnose Ericksoniana(Em curso). Coordenador do “Grupo Aion – Estudos Junguianos”  Atua em consultório particular em Vitória desde 2003.

Contato: 27 – 9316-6985. /e-mail: fabriciomoraes@yahoo.com.br/ Twitter:@FabricioMoraes

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