A SOMBRA DO AMOR: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E COMPLEXOS RELACIONAIS EM MULHERES APAIXONADAS

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Resumo

Este artigo analisa as múltiplas expressões da violência doméstica retratadas na telenovela Mulheres Apaixonadas à luz da psicologia analítica junguiana. Partindo da compreensão de que a violência íntima ultrapassa o ato físico e se estrutura como dinâmica relacional e cultural, o estudo investiga como sombra, persona, complexos e defesas traumáticas organizam comportamentos abusivos em diferentes núcleos da trama. A análise articula dimensões psíquicas, narrativas e socioculturais, examinando casos de violência moral, patrimonial, emocional, simbólica, física e geracional. Evidencia-se que tais violências emergem da interseção entre fragilidades egóicas, padrões relacionais marcados por repetição e complexos autônomos ativados no vínculo. O artigo argumenta que a novela cumpre função simbólica e social ao nomear práticas abusivas naturalizadas e ampliar a consciência coletiva sobre o fenômeno. Conclui-se que romper ciclos violentos implica não apenas responsabilização, mas também transformação psíquica, reconhecimento da sombra e reconstrução de vínculos que permitam a existência subjetiva plena.

Palavras-chave

Violência doméstica; Psicologia Analítica; Sombra; Complexos; Trauma; Persona; Relações abusivas; Telenovela; Mulheres Apaixonadas.

1. Introdução

Exibida originalmente em 2003, Mulheres Apaixonadas tornou-se um marco na imaginação cultural brasileira por expor, com rara sensibilidade, as fissuras íntimas que se escondem por trás do cotidiano doméstico. A novela não retrata apenas romances, conflitos ou dramas familiares: ela revela como o amor, quando atravessado por medo, controle, omissão e trauma, pode se converter em território de violência. O que se passa “entre quatro paredes” — lugar simbolicamente associado ao cuidado e à proteção — surge ali como cenário das mais complexas formas de sofrimento psíquico, desde a brutalidade física até microagressões que corroem silenciosamente a dignidade emocional.

A violência doméstica não se limita ao ato físico; ela se organiza como dinâmica relacional, sustentada por assimetrias de poder, feridas narcísicas, dependência afetiva, fantasias de abandono, defesas arquetípicas e segredos que moldam o destino familiar. A obra de Manoel Carlos torna visível esse campo invisível: mostra que o abuso nasce na sombra — aquilo que Jung descreve como

“a sombra pode ser integrada de algum modo na personalidade, enquanto certos traços, como sabemos pela experiência, opõem obstinada resistência ao controle moral, escapando portanto a qualquer influência. De modo geral, estas resistências ligam-se a projeções que não podem ser reconhecidas como tais e cujo conhecimento implica um esforço moral que ultrapassa os limites habituais do indivíduo. Os traços característicos da sombra podem ser reconhecidos, sem maior dificuldade, como qualidades pertinentes à personalidade, mas tanto a compreensão como a vontade falham, pois a causa da emoção parece provir, sem dúvida alguma, de outra pessoa.” (OC 9/2, §16)

A sombra se manifesta na repetição compulsiva de padrões afetivos que não puderam ser simbolizados. Quando rejeitado, o que pertence ao sujeito retorna por vias distorcidas: “os conteúdos reprimidos não desaparecem; influenciam o comportamento de maneira compulsiva” (Jung, OC 16/1, §180). É precisamente nessa compulsividade que a violência íntima se enraíza. A sombra se manifesta na repetição compulsiva de padrões afetivos que não puderam ser simbolizados. Quando rejeitado, o que pertence ao sujeito retorna por vias distorcidas. Jung explica que conteúdos incompatíveis são frequentemente “submetidos à repressão, tornando-se por isso inconscientes”, mas podem reaparecer com força quando não são integrados (Jung, OC 7/2, p. 140). Esse retorno revela não apenas o conteúdo reprimido, mas a urgência moral de assimilá-lo: “sempre que se manifesta um sentimento de inferioridade moral aparece a necessidade de assimilar uma parte inconsciente” (Jung, OC 7/2, p. 140). É nesse retorno não elaborado — nesse automatismo psíquico que busca compensação — que a violência íntima encontra terreno para se enraizar.

Nessa mesma direção, o conceito de complexo torna-se essencial para compreender os vínculos da novela. Complexos não são apenas lembranças emocionais, mas organizações afetivas que, uma vez ativadas, possuem força própria. Jung observa que “os complexos têm um efeito mais ou menos perturbador sobre o ego, dependendo do grau da sua autonomia” (Jung, 1913, §1352, apud Kalsched, 2013). Assim, quando um afeto não simbolizado é tocado no vínculo, o complexo pode assumir temporariamente o comando da relação, produzindo reações desproporcionais, explosões, fugas, paralisações ou ciclos de violência que se repetem independentemente da vontade consciente. Kalsched (2013), por sua vez, aprofunda essa compreensão ao descrever o sistema protetor arquetípico, no qual defesas internas criadas para proteger o self infantil traumatizado acabam por aprisioná-lo em padrões repetitivos de sofrimento. Assim, relações violentas não surgem do nada: emergem de histórias emocionais que antecedem o vínculo e que se ativam na intimidade, quando o ego se encontra mais vulnerável.

A persona, por outro lado, ajuda a compreender como a violência pode ser mascarada. Jung a define como

(a persona) aparentando ser individual, ela é no fundo coletiva; em outras palavras, a persona não passa de uma máscara da psique coletiva. No fundo, nada tem de real; ela representa um compromisso entre o indivíduo e a sociedade, acerca daquilo que “alguém parece ser: nome, título, ocupação, isto ou aquilo”. (OC 7/2, §246).

É por meio dela que personagens como Téo ou Marcos sustentam imagens sociais impecáveis, enquanto suas sombras operam no espaço privado. Quando a persona se torna rígida, adverte Jung, ela impede o desenvolvimento e dificulta o contato com a própria verdade — o que favorece a manutenção de comportamentos abusivos disfarçados de normalidade.

A telenovela também ilumina a dimensão cultural da violência íntima. O amor romântico — frequentemente idealizado como fusão, sacrifício e exclusividade — aparece como terreno fértil para esse adoecimento. O ciúme é romantizado; o controle é interpretado como cuidado; o silêncio da vítima é confundido com lealdade. Evan Stark (2007) descreve esse fenômeno como coercive control, uma forma de violência que não se orienta apenas pelo ataque físico, mas pela captura da autonomia e pela colonização da subjetividade. Mulheres Apaixonadas mostra esse processo com precisão clínica: a casa deixa de ser abrigo e se torna território de vigilância, medo, culpa e repetição.

No Brasil, a Lei Maria da Penha (2006) formalizaria posteriormente as cinco grandes categorias de violência doméstica — física, psicológica, sexual, moral e patrimonial —, mas a novela já encenava todas elas, articulando seus efeitos subjetivos e revelando suas origens simbólicas. O impacto social foi imediato: após o episódio em que Raquel denuncia Marcos na Delegacia da Mulher, denúncias reais aumentaram em cerca de 40% no Rio de Janeiro, evidenciando o poder da ficção como espelho cultural e dispositivo de nomeação do sofrimento.

Assim, analisar Mulheres Apaixonadas pela lente da psicologia analítica é investigar a gramática afetiva que sustenta a violência: a sombra que se infiltra no amor, os complexos que capturam o comportamento, as defesas traumáticas que aprisionam, a persona que encobre a agressão e a fragilidade egóica que impede a ruptura. O que a novela revela — e que este artigo busca aprofundar — é que a violência íntima não é ruído ocasional: é estrutura psíquica e cultural, repetida silenciosamente até ser nomeada.

Com base nesses aportes teóricos, este artigo examina quatro núcleos centrais da novela que articulam diferentes formas de violência: (1) Helena e Téo, onde a violência moral, emocional e patrimonial emerge da omissão e do segredo; (2) Raquel e Marcos, cuja relação encena o ciclo clássico da violência física e psicológica; (3) Heloísa e Sérgio, que revelam o colapso psíquico provocado pelo ciúme compulsivo e pela fusão simbiótica; e (4) Dóris e seus avós, que expõem a violência moral e afetiva dirigida à velhice. A análise articula narrativa, clínica e teoria junguiana para compreender o que essa obra ainda nos ensina sobre os modos como o amor se torna sombra — e como a violência se perpetua quando não pode ser vista.

2. Fundamentos Teóricos: Sombra, Persona, Complexos e Trauma na Compreensão da Violência Íntima

Compreender a violência doméstica como fenômeno psicológico exige atravessar o território subterrâneo onde se formam as estruturas que moldam o comportamento relacional. Antes de ser ato, a violência é afeto não simbolizado; antes de ser gesto, é história emocional condensada; antes de ser grito, é silêncio psíquico. A psicologia analítica oferece conceitos que iluminam esse subterrâneo — sombra, persona, complexos e sistemas de defesa traumáticos — permitindo perceber que, por trás de cada dinâmica violenta, existe uma tentativa, ainda que distorcida, de preservar a integridade psíquica diante do medo de colapso.

2.1. A sombra: o retorno do que não pôde ser vivido

Para Jung, nenhuma violência nasce do nada. Ela é, quase sempre, o retorno do que foi recusado. A sombra contém “os aspectos obscuros da personalidade, tais como existem na realidade” (Jung, OC 9/2, §14), e quando esses conteúdos são excluídos do campo consciente, tornam-se forças autônomas que atuam com intensidade própria. “Os traços obscuros da personalidade possuem natureza emocional, certa autonomia e são de tipo obsessivo ou possessivo” (Jung, OC 9/2, §15). Assim, quando alguém se vê tomado por ciúme, ódio, controle ou agressividade, não está necessariamente desviando-se de si, mas respondendo à pressão psíquica de conteúdos que se tornaram demasiado pesados para permanecer à margem.

A sombra não é apenas um depósito moral de traços negativos, mas uma reserva energética de afetos soterrados, intensidades negadas e impulsos que o ego, para sobreviver, precisou banir. Lahorgue (2025) escreve que a sombra reúne traços incompatíveis com o padrão consciente, reprimidos ou projetados para longe da própria identidade. É precisamente essa incompatibilidade que transforma a sombra em risco: quanto mais rígida a autoconcepção consciente, mais violento o retorno do que não foi reconhecido.

Esse retorno, geralmente, não se dirige ao mundo externo de maneira difusa, mas concentra-se nos vínculos mais íntimos — porque é ali que o outro toca as regiões mais vulneráveis do psiquismo. A sombra é ativada pelo amor, pela expectativa, pela dependência e pelo medo. E quando emerge sem simbolização, não se apresenta como diálogo, mas como ataque. Jung lembra que “não há luz sem sombra, nem totalidade anímica sem imperfeição. A vida em sua plenitude não precisa ser perfeita, e sim completa” (JUNG, OC 12, §208). Onde não há aceitação, há explosão. A violência doméstica, sob essa perspectiva, não se inicia no gesto, mas na recusa. O que o sujeito não suportou em si retorna encarnado no outro.

2.2. A persona: a superfície polida que sustenta o silêncio

Se a sombra é o território dos afetos recusados, a persona é a superfície socialmente aceitável construída para esconder aquilo que ameaça a imagem que o sujeito deseja oferecer ao mundo. Jung descreve a persona como uma máscara — “uma figura de compromisso que representamos diante da coletividade”, uma “realidade bidimensional” construída a partir da psique coletiva (Jung, OC 7/2, §245–246). Ela não é falsa, mas funcional. Torna-se perigosa quando rigidamente identificada com o ego, pois a máscara passa a organizar a relação consigo e com o outro.

Uma persona rígida cria um pacto de silêncio: para manter a aparência de normalidade, o sujeito recalca o que não cabe na imagem idealizada de si mesmo. Lahorgue observa que:

“A persona nasce como ferramenta de adaptação. É uma máscara que, inicialmente, nos permite transitar pelas exigências do coletivo, mas que, quando passa a ser confundida com a própria identidade, torna-se prisão. Em vez de ponte entre o eu profundo e o mundo, torna-se muro que separa o sujeito de sua vitalidade. Por trás desse muro, cresce a sombra, não como inimiga, mas como reserva daquilo que foi expulso do campo da consciência. A persona, quando cristalizada para sustentar o pertencimento e evitar a dor do abandono, aprisiona a espontaneidade e a alma, perpetuando a cisão entre o que mostramos e o que somos. Quando confundida com a identidade verdadeira, a persona se torna a prisão que confina o Self em papéis rígidos, sufocando a espontaneidade e bloqueando o processo de individuação.”

(Lahorgue, 2025, p. 257).

É essa prisão que impede muitos agressores e vítimas de nomearem a violência — porque fazê-lo exigiria confrontar o que existe além da máscara.

A persona é, assim, um dos ambientes mais férteis para a manutenção da violência doméstica. Ela permite que o agressor esconda sua destrutividade atrás de gentileza, charme ou autocontrole. Permite que a vítima esconda a ferida atrás de competência, força ou aparência de felicidade. Permite que a família não veja, que os amigos não percebam, que o próprio sujeito não reconheça.

Por trás da aparência bem-sucedida está o campo onde a violência se germina.

2.3. Complexos: núcleos afetivos que capturam a consciência

Jung descreve os complexos como núcleos psíquicos que possuem coerência própria e um grau relativamente elevado de autonomia, capazes de interferir e mesmo desviar o curso do comportamento consciente. Ele observa que um complexo “goza de um grau relativamente elevado de autonomia” e “comporta-se, na esfera do consciente, como um corpus alienum, animado de vida própria” (JUNG, OC 8/2, §201). Um complexo não é apenas memória; é uma organização de afetos que se ativam de forma automática, rápida, intensa e independente do raciocínio. Cada complexo é um campo emocional: ele vê, interpreta, reage e decide antes que o ego participe.

Kalsched aprofunda esse conceito ao afirmar que

“todo complexo é uma unidade inseparável de um fator vigoroso e dinâmico que deriva de uma base instintiva e somática (afeto), e um fator estruturador, organizador e que confere forma, que torna o complexo disponível para a consciência como uma representação mental (imagem). Todo complexo é, por conseguinte, um ‘afeto-imagem’ […] Os complexos constituem as ‘pessoas’ dos nossos sonhos […], as ‘personalidades secundárias’ da neurose” (Kalsched, 2013, p. 96).

Quando alguém reage com explosão repentina, terror desproporcional, paralisia diante da separação ou impulso agressivo incontrolável, não está apenas “perdendo a cabeça”: está sendo capturado por um complexo cuja energia emocional ultrapassa a capacidade de regulação consciente.

Fordham, ao explicar o desenvolvimento do self, observa que complexos se formam quando experiências precoces interrompem o ciclo natural de deintegração e reintegração do ego, deixando bolsões psíquicos não metabolizados (Fordham, 1966/1993, p. 112). Knox, por sua vez, demonstra que padrões relacionais vividos repetidamente criam “modelos internos que moldam a sensação de agência e valor próprio” (Knox, 2009, p. 67). Esses modelos, quando distorcidos, tornam-se gatilhos para reações desproporcionais.

A violência íntima é, em grande medida, ação de complexos.
Não é a razão que bate, vigia, invade, mente ou retorna ao agressor — é o complexo.
E o complexo age com memória, mas sem reflexão.

2.4. Trauma e defesas arquetípicas: o guardião que se torna cárcere

A teoria de Kalsched oferece uma das chaves mais precisas para compreender ciclos de violência doméstica. Segundo ele, traumas precoces constelam um sistema de defesa arquetípico cuja função primordial é proteger o self infantil do colapso emocional. Contudo, esse mesmo sistema, ao longo do tempo, torna-se persecutório e restritivo:

“as defesas arquetípicas […] possibilitam a sobrevivência à custa da individuação. Elas garantem a sobrevivência da pessoa, porém à custa do desenvolvimento da personalidade”

(Kalsched, 2013, p. 46).

Assim, quando alguém reage com explosão repentina, terror desproporcional, paralisia diante da separação ou impulso agressivo incontrolável, não está apenas “perdendo a cabeça”: está sendo capturado por um complexo cuja energia ultrapassa a capacidade de regulação consciente.

Esse protetor cruel age como vigilante interno: impede a separação, desencadeia pânico quando o vínculo ameaça se romper, produz explosões quando o sujeito se sente ameaçado, ou sufoca o afeto com rigidez narcisista. A vítima não “volta para o agressor”; ela retorna para a ilusão de proteção criada pela própria psique traumatizada.

Fordham observa que o trauma impede que o ego se reintegre após rupturas emocionais significativas, criando regiões psíquicas perpetuamente imaturas, que funcionam como “bolsões de sofrimento não simbolizado” (Fordham, 1966/1993, p. 114). Knox aponta que traumas relacionais corroem a sensação de agência, fazendo com que o sujeito não se perceba como alguém capaz de escolha (Knox, 2009, p. 72).

A violência doméstica, sob essa lente, não é apenas ciclo comportamental; é ciclo traumático.

2.5. A sombra relacional: quando o vínculo se torna campo de batalha

A violência íntima não é fenômeno individual. Ela nasce da intersecção de dois mundos internos. Lahorgue (2025) sintetiza essa compreensão ao afirmar que

“integrar a sombra é, portanto, permitir que a vida psíquica circule com mais liberdade e autenticidade, preparando o terreno para reconhecer como essas forças atuam no campo relacional, especialmente por meio do mecanismo da projeção” (p. 262).

Não é a sombra de um sujeito isolado que cria a violência: é a atração, colisão e ressonância entre duas sombras.

Jung descreve o encontro entre duas subjetividades como um processo inevitável de transformação mútua. Ele observa que “o encontro de duas personalidades é como a mistura de duas substâncias químicas diferentes: no caso de se dar uma reação, ambas se transformam” (JUNG, OC 16/1, §163). Essa transformação não ocorre apenas em níveis conscientes, mas sobretudo num território psíquico onde influências inconscientes circulam entre as pessoas. Nos termos de Jung, o médico está “exposto às influências transformadoras” do outro, e quando essa influência atua inconscientemente, “abre-se uma lacuna em seu campo de consciência” (OC 16/1, §166), comprometendo a capacidade de perceber o outro com clareza. Essa dimensão relacional exige uma ética profunda: “Você tem que ser a pessoa com a qual você quer influir sobre o seu paciente” (OC 16/1, §167).

É nesse campo que o ciúme vira certeza, a omissão vira punição, a culpa paralisa e o desprezo se desumaniza.

A violência doméstica é o resultado dessa química psíquica: duas histórias emocionais se encontram, dois complexos se ativam, dois medos colidem, duas sombras se tocam.

E o vínculo, em vez de ser espaço de encontro, torna-se campo de batalha.

3. Dinâmicas Relacionais da Violência em Mulheres Apaixonadas

A narrativa de Mulheres Apaixonadas constrói um mosaico de vínculos onde a violência emerge como desdobramento de feridas emocionais, complexos autônomos, traumas não simbolizados e pactos inconscientes que estruturam a intimidade. A novela nunca retrata a violência como acidente ou explosão isolada; ao contrário, cada gesto agressivo está enraizado em uma história psíquica, em uma sombra não integrada, em uma persona que colapsa e em um conjunto de defesas que tentam — e falham — proteger o sujeito da dor.

A violência aparece distribuída em diversos núcleos: a omissão moral e patrimonial que marca o casamento de Helena e Téo; o terror doméstico que aprisiona Raquel na relação com Marcos; o colapso emocional e a fusão simbiótica que estruturam o vínculo de Heloísa e Sérgio; as violências morais, financeiras e emocionais que Dóris dirige aos avós; e ainda as formas mais discretas — mas igualmente lesivas — de manipulação afetiva, pressão moral e controle psicológico presentes em relações como Cláudio e Edwiges, Diogo e Marina, ou Diogo e Gracinha.

Essa constelação de violências permite analisar não apenas o fenômeno em sua pluralidade sociocultural, mas também em sua profundidade simbólica: cada vínculo é o retrato de uma forma diferente de sombra atuando na relação, seja pela via da invasão, do silenciamento, da crueldade banal, do ciúme, da mentira ou da apropriação emocional do outro.

3.1. Helena & Téo — A violência da omissão, da mentira e da captura simbólica

A violência que estrutura o casamento de Helena e Téo é uma violência sem alarde. Ela não se expressa pelo estrondo, mas pelo silêncio; não aparece na superfície, mas corrói desde dentro. O segredo mantido por Téo sobre a verdadeira filiação de Lucas funciona como eixo simbólico dessa dinâmica — uma mentira prolongada que produz rachaduras invisíveis, mas profundas, na arquitetura emocional do casamento.

A omissão, aqui, não é falha casual: é estrutura. Ao decidir sozinho qual verdade Helena poderia suportar, Téo retira da esposa não apenas a informação, mas o direito de participar da própria história. Essa violência moral e patrimonial — nos termos da Lei Maria da Penha — manifesta-se como captura da autonomia e silenciamento do outro. O gesto de esconder a verdade é gesto de controlar o destino afetivo da família.

Jung descreve a persona como

“uma simples máscara da psique coletiva […] máscara que aparenta uma individualidade, procurando convencer aos outros e a si mesma que é uma individualidade, quando, na realidade, não passa de um papel” (JUNG, OC 7/2, §245).

Em Helena e Téo, a persona conjugal — o casal sólido, maduro, estável — funciona como cortina que encobre a dificuldade de ambos em lidar com o que a vida real impõe. A máscara do casamento ideal impede o reconhecimento da ferida, sustenta a alienação e prolonga o vínculo na base da aparência.

Quando a verdade emerge, não é apenas a confiança que se rompe; é a própria imagem interna do vínculo. A sombra retorna — e retorna com força. Lahorgue (2025) descreve a sombra como “tudo aquilo que permanece inconsciente por ser incompatível com a persona ou com o ideal do ego” (p. 261), compreensão que ilumina o movimento de Téo: o retorno da verdade desencadeia culpa, paralisia, justificativas infantis. Ele não consegue sustentar o impacto da própria mentira — o que revela um ego fragilizado pela história que tentou esconder.

Helena, ao contrário, não colapsa. Jung afirma que o ego só pode suportar o que irrompe das camadas profundas quando alcança força suficiente para não se desagregar diante dos conteúdos inconscientes (OC 8/2). E é essa capacidade que a personagem encarna: ela olha para a mentira, olha para si, olha para Téo, e toma uma decisão consciente — romper. Não como vingança ou impulsividade, mas como gesto ético. Trata-se de um movimento de individuação: a escolha da verdade sobre a aparência, da lucidez sobre a convenção, do próprio caminho sobre a sombra relacional que já não podia sustentar.

A violência entre Helena e Téo é a mais silenciosa da novela — mas talvez a mais comum na vida real.

A ocultação de informações essenciais que impactam o destino afetivo e material da família insere-se na categoria de violência patrimonial — uma das dimensões formalizadas na Lei Maria da Penha — pois retira do outro o direito de decidir sobre os próprios laços e recursos

A decisão de Téo de ocultar a paternidade de Lucas não é apenas falha ética ou medo infantilizado de perder o amor de Helena — é forma concreta e estrutural de violência moral e patrimonial. A violência patrimonial, formalizada posteriormente pela Lei Maria da Penha (2006), abrange qualquer ato que retire do outro o direito de gerir sua própria vida afetiva, financeira e simbólica. No caso do casal, o segredo não é detalhe privado: ele altera a genealogia familiar, reorganiza afetos, desloca papéis parentais e produz insegurança sobre o próprio pertencimento. É como se Téo tivesse decidido, sozinho, qual história Helena teria permissão de viver.

Esse gesto revela um ponto sutil, porém decisivo: a violência não precisa ser ruidosa para ser devastadora. Há agressões que se sustentam na crença — muito comum na cultura patriarcal — de que o homem pode administrar a verdade doméstica e proteger a parceira por meio do silêncio. Esse paternalismo afetivo é forma cristalina de violência moral, pois converte a mulher em destinatária de uma narrativa produzida fora dela. É também violência patrimonial, pois compromete herança, filiação, direitos e vínculos. Helena só pode romper com Téo porque seu ego — no sentido fordhamiano — é suficientemente maduro para suportar a dor da verdade e reorganizar sua existência com lucidez.

3.2. Raquel & Marcos — O terror doméstico como expressão da sombra e do trauma

A história de Raquel e Marcos constitui o núcleo mais contundente da novela — e o mais devastador do ponto de vista psíquico. A violência não é episódio; é atmosfera. Não é exceção; é rotina. Marcos encarna a sombra masculina em sua forma mais crua: agressividade, controle, ciúme, narcisismo, explosão e frieza calculada.

Desde os primeiros capítulos, seu comportamento expressa aquilo que Jung descreve como o retorno dos afetos inconscientes que, quando não integrados, podem dominar o ego e fazê-lo perder a capacidade de autorregulação (JUNG, OC 8/2, §183). Ele não reage ao que Raquel faz, mas ao que ela simboliza dentro de seu mundo interno — a ameaça arcaica do abandono. Suas explosões violentas, seu olhar duro, sua incapacidade de suportar a autonomia da esposa revelam um ego dominado por complexos persecutórios. Kalsched (2013) ressalta que complexos são “afeto-imagens” capazes de se comportar como “personalidades secundárias”, especialmente quando alimentados por trauma precoce, podendo perturbar a coerência do ego e produzir estados dissociativos (p. 169). É isso que vemos em Marcos: ele age tomado por um outro que o habita.

Raquel, por sua vez, não permanece na relação por fraqueza, mas porque está aprisionada num sistema de defesa traumático. Em Trauma and the Soul, Kalsched descreve que, quando o trauma precoce rompe a confiança básica do self, o psiquismo cria um protetor arquetípico que tenta impedir novas experiências de vulnerabilidade. Esse guardião interno — formado a partir da experiência extrema — age como se o perigo estivesse sempre retornando e mantém a pessoa presa ao agressor, não por escolha consciente, mas porque o conhecido parece menos ameaçador do que a abertura emocional. Esse mecanismo é exatamente o que vemos em Raquel: cada tentativa de sair é bloqueada por medo, culpa, esperança e pela estrutura defensiva que se ativa automaticamente quando ela se aproxima de autonomia.

A raquete de tênis — símbolo icônico da novela — não é apenas arma. É metáfora da banalidade do mal doméstico. Um objeto cotidiano transformado em instrumento de terror. A violência torna-se parte do cenário, parte do quarto, da casa, da vida. O terror doméstico transforma a intimidade em trincheira.

Quando Raquel finalmente denuncia Marcos, a novela atravessa o país. O aumento real de denúncias após a exibição dessa cena mostra que a ficção não apenas imita a vida: ela a convoca. A violência física é, nesse núcleo, a expressão mais visível de feridas emocionais profundas — feridas que não são só de Raquel, mas de uma sociedade inteira.

3.3. Heloísa & Sérgio — O ciúme como colapso simbólico e violência psíquica

O vínculo entre Heloísa e Sérgio revela um tipo de violência doméstica menos discutida, mas extremamente frequente: a violência motivada por ciúme compulsivo, invasão, perseguição e tentativa de fusão simbiótica. Heloísa não deseja apenas amar Sérgio; deseja possuir suas fronteiras psíquicas.

Seu ciúme não é emoção; é estrutura. Heloísa vive em constante ativação de um complexo de abandono, que infiltra seus gestos com pânico e descontrole. Jung descreve que o complexo possui “coerência interior” e “um grau relativamente elevado de autonomia”, podendo atuar no campo consciente como um “corpúsculo estranho, animado de vida própria” (JUNG, OC 8/2, §201). É isso que vemos em Heloísa: ela não pensa — ela é tomada. Cada ausência de Sérgio ativa nela uma ferida que antecede o casal; cada gesto neutro é interpretado como ameaça.

Seu comportamento — vigiar, cortar roupas, controlar horários, exigir provas de fidelidade — mostra a fusão entre sombra e persona. A persona da “esposa perfeita” colapsa, e a sombra emerge como pânico, agressão e implosão interna. Lahorgue (2025) lembra que

“nos relacionamentos mais íntimos, a projeção se torna ainda mais poderosa, pois a intimidade funciona como um espelho ampliado, onde as vulnerabilidades não reconhecidas emergem com força” (p. 262).

É exatamente isso que ocorre com Heloísa: ela projeta em Sérgio sua fantasia de abandono; luta contra o que sua infância teme, não contra o que o marido faz.

Sérgio, por sua vez, ocupa o lugar menos reconhecido socialmente: o homem vítima. Sua paralisia, seu silêncio e seu esgotamento revelam a violência psíquica que sofre — a tomada do seu espaço interno, a corrosão de sua autonomia, a perda de si mesmo.

Esse núcleo expõe algo essencial: violência doméstica não se define pelo gênero do agressor, mas pela estrutura relacional. E violência psíquica é violência — mesmo sem hematomas.

3.4. Dóris, Leopoldo e Flora — A violência moral, etária e cotidiana

No núcleo de Dóris e seus avós, a novela mostra uma das formas mais profundas — e mais invisíveis — de violência doméstica: a violência moral, emocional e simbólica dirigida aos idosos. Dóris humilha, ridiculariza, explora financeiramente, ignora e despreza aqueles que a amam. Seu comportamento não nasce de impulsividade, mas de estrutura psíquica: complexos narcísicos, somados ao etarismo cultural, organizam sua crueldade.

Jung observa que a sombra pertence “ao lado obscuro da própria personalidade”, contendo aspectos que o indivíduo prefere não reconhecer e que, por isso mesmo, tendem a ser projetados no mundo exterior (OC 9/2, §19). Dóris rejeita nos avós aquilo que teme em si: vulnerabilidade, dependência, finitude. Sua violência é projeção pura — uma tentativa de destruir, fora de si, a própria fragilidade.

O sofrimento de Leopoldo e Flora é silencioso, mas devastador. O impacto desse núcleo na sociedade foi profundo: aumentaram as denúncias de maus-tratos contra idosos, e o Estatuto do Idoso ganhou visibilidade nacional. A novela revelou que violência doméstica não é apenas conjugal: é moral, é geracional, é familiar.

3.5. Cláudio, Edwiges, Diogo, Marina e Gracinha — As microviolências que sustentam o ecossistema do abuso

Além dos grandes núcleos, Mulheres Apaixonadas expõe violências sutis — mas estruturais — que revelam como o abuso se perpetua na cultura. Cláudio exerce pressão moral e sexual sobre Edwiges, tentando moldar sua subjetividade a um modelo idealizado de pureza. Esse controle, embora menos espetacular, constitui violência simbólica: a tentativa de capturar a autonomia do outro sob o pretexto de amor e moralidade. Bourdieu (1998) descreve a violência simbólica como dominação que se exerce com a cumplicidade inconsciente daqueles que a sofrem. Em Edwiges, essa cumplicidade não nasce de submissão individual, mas da inscrição psíquica de complexos culturais associados ao patriarcado, que romantizam a “pureza feminina” como garantia de valor e pertencimento.

Diogo, por sua vez, encarna uma modalidade contemporânea de violência emocional: sedução instável, irresponsabilidade afetiva e manipulação por ambiguidade. O beijo em outra mulher no dia do casamento não é apenas infidelidade; é humilhação pública, apagamento emocional e destruição simbólica da narrativa amorosa de Marina. A cena expõe como complexos culturais patriarcais organizam o desejo masculino como centro regulador dos vínculos, autorizando a desresponsabilização afetiva e transformando relações em jogos de poder. Gracinha, envolvida no triângulo, torna-se cúmplice involuntária dessa dinâmica que opera mais como estrutura cultural do que como escolha individual.

Esses microvínculos revelam a banalidade da violência afetiva na cultura brasileira. A novela mostra que violência não é apenas o golpe visível: é a palavra que fere, o abandono que corrói, a pressão que captura, a manipulação que confunde. É cultura, é patriarcado, é sombra coletiva transformada em rotina emocional.

4. Discussão — Violência, Sombra e Complexos no Campo Relacional

A análise dos núcleos de Mulheres Apaixonadas evidencia que a violência doméstica é um fenômeno multideterminado, atravessado por fatores culturais, relacionais e psíquicos. A novela explicita aquilo que a literatura contemporânea em psicologia e estudos de gênero já indica: a violência íntima não se restringe ao ato físico, mas estrutura-se como processo contínuo de controle, silenciamento e colonização afetiva (Stark, 2007). No contexto junguiano, esse processo pode ser compreendido como expressão da sombra, dos complexos e das defesas traumáticas que organizam o comportamento em situações de vulnerabilidade.

A presença da sombra é particularmente elucidativa. Jung observa que “os traços obscuros do caráter […] possuem uma natureza emocional, uma certa autonomia e, consequentemente, são de tipo obsessivo, ou melhor, possessivo” (OC 9/2, §15). Tais conteúdos emergem no campo relacional quando não encontram simbolização suficiente, sendo projetados sobre o parceiro. Esse mecanismo torna-se evidente em personagens como Marcos, Heloísa e, em outro registro, Diogo. Como discute Lahorgue (2025), conteúdos que permanecem não reconhecidos tendem a ser projetados no outro, distorcendo a percepção e intensificando reações desproporcionais (pp. 262–263).

Os complexos também oferecem uma chave interpretativa central. Jung descreve que o complexo possui “coerência interna e um grau relativamente elevado de autonomia […] comportando-se, na esfera do consciente, como um corpúsculo estranho animado de vida própria” (OC 8/2, §201). Essa autonomia complexual explica o ciclo de repetição presente no núcleo de Raquel e Marcos: a vítima tenta interromper o vínculo, mas retorna; o agressor alterna agressão, culpa e súplica. Kalsched (2013) aprofunda esse entendimento ao formular o conceito de sistema protetor arquetípico, no qual defesas primitivas desenvolvidas diante do trauma precoce tornam-se mecanismos punitivos na vida adulta. Para ele, “as mesmas defesas que protegem o self infantil acabam por restringir seu desenvolvimento”.

Outro elemento relevante é a persona. Jung a define como “uma máscara da psique coletiva […] aquilo que alguém parece ser” (OC 7/2, §245). A novela demonstra como a persona pode sustentar violências silenciosas, permitindo que comportamentos abusivos sejam socialmente invisíveis. Marcos apresenta-se como homem gentil e educado; Heloísa, como esposa devotada; Téo, como marido íntegro. No entanto, sob essas máscaras operam dinâmicas de controle, omissão, ciúme persecutório e manipulação emocional. Lahorgue (2025) discute que, quando a persona é tomada como identidade fixa, ela se converte em prisão subjetiva (p. 260), impedindo contato com afetos reprimidos e facilitando o colapso relacional.

Do ponto de vista cultural, a novela também evidencia como narrativas coletivas de gênero — especialmente no Brasil — legitimam certas formas de violência moral, emocional e simbólica. A sexualidade feminina é regulada pelo ideal de pureza (Edwiges), a classe social estrutura desigualdades afetivas (Gracinha), e o ciúme masculino é frequentemente romantizado como prova de amor (Heloísa e Sérgio). Essas dinâmicas reforçam o que Pierre Bourdieu descreve como violência simbólica — “um tipo de dominação que se exerce com a cumplicidade silenciosa daqueles que a sofrem” (Bourdieu, 1998). No registro psicológico, esses elementos reforçam complexos de inferioridade, abandono e dependência afetiva, agravando a vulnerabilidade subjetiva.

A novela, portanto, faz convergir três dimensões da violência:

  1. a estrutural, ligada a gênero, classe, cultura e moralidade;
  2. a relacional, que se expressa em controle, silêncio, humilhação e desigualdade;
  3. a psíquica, organizada pela sombra, persona, complexos e trauma.

Essa convergência é particularmente visível no núcleo de Téo e Helena. A omissão da paternidade de Lucas configura uma forma de violência moral e patrimonial. A decisão unilateral de ocultar informações que estruturam a vida familiar retira da parceira a possibilidade de escolha. Esse tipo de violência — comum na clínica — é descrito por Evan Stark (2007) como captura da autonomia, um dos eixos centrais da violência psicológica.

Também não se pode ignorar que Mulheres Apaixonadas antecipa debates jurídicos e psicológicos posteriores à sua exibição. Muitas das formas de violência retratadas — patrimonial, moral, simbólica, psicológica — seriam sistematizadas posteriormente na Lei Maria da Penha (2006). O fato de a novela ter provocado aumento de denúncias reais à época revela sua função como dispositivo cultural de simbolização e nomeação. Jung descreve, ao longo de sua obra, que a consciência se desenvolve quando conteúdos antes inconscientes podem ser reconhecidos, diferenciados e integrados à vida psíquica (JUNG, OC 18/2). Ao trazer a violência para a esfera pública, a novela amplia as possibilidades de transformação subjetiva e social.

As tramas de Mulheres Apaixonadas demonstram que a violência íntima é efeito de um alinhamento específico entre fragilidade egóica, narrativas culturais e complexos autônomos ativados. Não se trata apenas de indivíduos que falham, mas de estruturas simbólicas que produzem sujeitos predispostos a repetir padrões de controle e submissão. A cultura brasileira — marcada por fortes expectativas sobre gênero, família e amor romântico — favorece a fusão simbiótica, a idealização do cuidado e a confusão entre zelo e vigilância. É nesse caldo cultural que complexos encontram solo fértil para se expressarem de forma desregulada.

Por fim, a novela mostra que romper ciclos violentos não é gesto impulsivo, mas movimento de individuação. Personagens como Helena — cujo ego é maduro e capaz de suportar conteúdos inconscientes — conseguem interromper pactos silenciosos de violência. Outros, como Marcos e Heloísa, permanecem aprisionados pela dinâmica sombria dos complexos. Knox (2003) lembra que o desenvolvimento do self depende da capacidade de estabelecer relações seguras, nas quais o sujeito possa existir sem colapsar nas expectativas ou fantasias do outro. Onde essa segurança não existe, a violência se torna organizadora do vínculo.

Assim, Mulheres Apaixonadas não apenas representa a violência doméstica: ela a interpreta. E, ao interpretá-la, abre espaço para compreensão, reflexão e elaboração — processos essenciais tanto para a clínica quanto para a cultura.

5. Conclusão

A travessia por Mulheres Apaixonadas revela que a violência íntima não se organiza apenas nos grandes gestos, mas sobretudo nos movimentos sutis que se acumulam, se insinuam e moldam o viver. Ao acompanhar cada núcleo, percebe-se que o sofrimento não nasce de um único ponto, mas de um emaranhado de histórias, expectativas, falhas de encontro e forças psíquicas que, quando não reconhecidas, passam a dirigir o vínculo desde dentro. A novela expõe, com sensibilidade rara, a complexidade humana envolvida nesses processos — a fragilidade de quem sofre, a confusão de quem fere, e o campo relacional que se contamina quando nada pode ser dito, visto ou simbolizado.

Cada trama evidencia que a violência não é apenas ruptura, mas também rotina. Não é somente impacto, mas também permanência. Ela se insinua na forma como se fala, como se cala, como se omite, como se exige, como se teme e como se espera. Ao traduzir essas dinâmicas para a linguagem ficcional, a novela oferece ao espectador um espelho ampliado, capaz de revelar o que muitas vezes se naturaliza no cotidiano. Faz isso não ao moralizar, mas ao mostrar. Não ao simplificar, mas ao aprofundar. E, nesse gesto, convida à reflexão sobre as maneiras pelas quais relações podem se tornar espaços de aprisionamento ou de amadurecimento.

Se alguns personagens sucumbem às forças que os habitam, outros conseguem construir uma fresta de escolha. A ruptura de Helena, por exemplo, não é um ato impulsivo, mas a expressão de um ego que encontrou sustentação suficiente para não reproduzir o silêncio que o feriu. Já Raquel, Marcos, Heloísa e Dóris revelam a face mais difícil dessas experiências: quando o vínculo se converte em espelho de feridas antigas e o outro passa a carregar um papel que ninguém conscientemente escolheu desempenhar. Nessas histórias, a violência aparece como resultado de encontros que não puderam se tornar verdadeiros encontros — porque faltou palavra, tempo, segurança ou espaço psíquico para que algo diferente pudesse emergir.

Ao trazer para a cena pública formas de violência ainda pouco nomeadas à época, Mulheres Apaixonadas atuou como instrumento de consciência coletiva. O reconhecimento cultural de um sofrimento — seja ele físico, simbólico, emocional ou patrimonial — abre caminhos para sua transformação. A novela fez isso ao dar nome ao que antes permanecia indizível, ao representar situações que, por serem tão comuns, muitas vezes não eram percebidas como violência. Nesse sentido, funcionou como recurso ético e simbólico para que a sociedade pudesse olhar para si mesma com maior clareza.

Com isso, o que se evidencia é que romper ciclos violentos não é um gesto isolado, mas processo interno e relacional que demanda coragem, apoio e possibilidade de existir como sujeito. Onde essa possibilidade é negada, a violência se instala. Onde é reconhecida e sustentada, a vida psíquica pode enfim respirar, e novos modos de vínculo podem surgir. A novela, ao iluminar essas tensões, não apenas retrata a violência doméstica: ela nos lembra que toda relação — ficcional ou real — é espaço onde a destruição pode se repetir, mas também onde a transformação pode começar.

REFERÊNCIAS

JUNG, C. G. Obras completas, volume 7/2: Estudos experimentais. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2021.

JUNG, C. G. Obras completas, volume 9/1: Os arquétipos e o inconsciente coletivo. 15. ed. Petrópolis: Vozes, 2020.

JUNG, C. G. Obras completas, volume 9/2: Aion – Estudos sobre o simbolismo do si-mesmo. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 2019.

JUNG, C. G. Obras completas, volume 16/1: Prática da psicoterapia: contribuições ao problema da psicoterapia e da dinâmica da transferência. 14. ed. Petrópolis: Vozes, 2020.

FORDHAM, Michael. Explorations into the Self. London: Karnac Books, 1985.

KALSCHED, Donald. O mundo interior do trauma: defesas arquetípicas do self. São Paulo: Paulus, 2013.

KNOX, Jean. Self, Agency and Affect: Regulation of Self in Psychoanalytic Treatment. New York: Routledge, 2011.

LAHORGUE, Viviane. Rejeição da sombra e dores emocionais. In: GAETA, Irene (org.). Navegando nas profundezas da alma: dores & amores. São Paulo: [Editora], 2025.

STARK, Evan. Coercive Control: How Men Entrap Women in Personal Life. New York: Oxford University Press, 2007.

BRASIL. Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher. Brasília, DF: Presidência da República, 2006.

BRASIL. Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2003. Dispõe sobre o Estatuto do Idoso. Brasília, DF: Presidência da República, 2003.

CORREIO BRAZILIENSE. Atores da novela participam de campanha pelo fim da violência. Brasília, DF, 27 ago. 2003.

JOVEM PAN. Helena Ranaldi relata impacto emocional ao gravar cenas de agressão em Mulheres Apaixonadas. São Paulo, 2003.

O GLOBO. Denúncias de violência aumentam após capítulo da novela. Rio de Janeiro, 22 set. 2003.

SENADO FEDERAL. Debates sobre o Estatuto do Idoso citam cenas da novela Mulheres Apaixonadas. Brasília, DF, 2003.

GRUPO SICILIANO. Vendas do livro “Mulheres que Amam Demais” disparam após novela. São Paulo, 2003.

MULHERES APAIXONADAS. Direção: Ricardo Waddington. Supervisão de núcleo: Manoel Carlos. Rio de Janeiro: TV Globo, 2003. Telenovela.

Fabrício Fonseca Moraes (CRP 16/1257). Psicólogo clínico junguiano graduado pela Ufes. Especialista em Psicologia Clínica e da Família pela Faculdade Saberes; especialista em Teoria e Prática Junguiana pela Universidade Veiga de Almeida e especialista em Acupuntura Clássica Chinesa IBEPA/FAISP; com formação em Hipnose Ericksoniana pelo Instituto Milton Erickson do Espírito Santo. É professor e diretor do CEPAES. Atua desde 2004 em consultório particular. .

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